COLUNA

Círculo de Poemas

Adão Ventura ao sol

O coordenador do Círculo de Poemas, Tarso de Melo, analisa um poema de Adão Ventura, que acaba de ter sua poesia reunida na coleção

10 de Outubro de 2025

Há muitas formas e razões para admirar a poesia de Adão Ventura (1939-2004). Juntos agora pela primeira vez num único volume, seus livros andavam espalhados em edições típicas do mundo da poesia: poucas páginas, pequenas tiragens, circulação mambembe. É assim, enfim, que os poetas jogam o jogo. Apesar desses obstáculos, o nome de Adão e alguns de seus poemas seguiam lembrados por parte dos leitores, da crítica, dos seus pares. Basta folhear “A Cor da Pele: Poesia reunida” para entender o porquê, ao se deparar com uma voz impressionante: forte e precisa, altiva e sensível. Por exemplo:

*

Agora

É hora

de amolar a foice

e cortar o pescoço do cão.

— Não deixar que ele rosne

nos quintais

da África do Sul.

É hora

de sair do gueto/eito,

senzala

e vir para sala

— Nosso lugar é junto ao Sol.

*

“Agora” está nas páginas de “Texturaafro”, de 1992. Em seus poucos e curtos versos, concentra as grandes virtudes da poesia de Adão Ventura. O poema se estrutura em dois núcleos, que começam com “É hora”, ecoando o título, e são quase simétricos em sua acusação e convocação contra o “cão” do racismo, no continente africano e seus guetos, mas também na terra das senzalas e da morte nos eitos.

No poema seguinte, “Ainda”, Adão aperta um pouco mais esse nó, aproximando senzala e favela ao projetar na violência policial contemporânea (“marca de ferro/ & fogo/ chicote de polícia”) as cicatrizes da escravidão (“— lanhos/ nos ombros/ — garrote em corte/ de morte alheia”). Essa aproximação crítica tem várias faces: ela se dá entre a África e o Brasil do seu tempo, mas também entre o passado desses povos e as formas brutais que, aqui e lá, são forjadas para não deixar esse passado passar.

Também por causa daquela vida incerta e tímida dos livros de poesia, mencionada acima, é provável que quem “conviveu” com o poeta — estando próximo dele ou apenas dividindo com ele a mesma fatia da história — não tenha se dado conta do colosso que ele estava gestando entre Santo Antonio do Itambé e Belo Horizonte, Albuquerque e Brasília. É assim que, em geral, a poesia age. Deve ser uma adorável surpresa, ou melhor, um espanto tremendo — para seus contemporâneos, mas também para todos que acham que sabem o que os poetas andam fazendo — ter agora nas mãos essa reunião, que toma como título geral aquele que o poeta escolheu para seu livro decisivo de 1980.

Pode-se ver agora que, de um livro a outro, Adão Ventura foi elaborando e executando uma poética capaz de rasgar os véus da realidade em que inúmeras formas de violência, desigualdade e discriminação se unem contra a imensa maioria das pessoas, ainda mais se forem como ele: negro, pobre, descendente de escravizados, tentando se erguer a partir dos recantos do país. Afia-se aí, creio, sua lâmina implacável, mas também uma espécie de “beleza amarga” que parece pousar sobre cada palavra, exigindo nada menos que o Sol. Por isso, cada um de seus poemas contém toda a força de sua obra. Em cada uma de suas palavras, toda sua voz se levanta e combate e brilha.

Produto

  • A cor da pele: poesia reunida
  • Adão Ventura
  • Círculo de Poemas
  • 320 páginas

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Círculo de Poemas é a coleção de poesia e clube de assinatura da editora Fósforo, que lança duas publicações por mês de poetas das mais diferentes gerações, línguas e tendências. Todo mês, um poema da coleção é comentado pelo coordenador do Círculo, Tarso de Melo.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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