Tai Nalon: "É urgente deixar claro que checagem de fatos não tem nada a ver com censura" — Gama Revista
Conversas

Tai Nalon: “É urgente deixar claro que checagem de fatos não tem nada a ver com censura”

Diretora-executiva da agência Aos Fatos afirma que decisão sobre retirada de conteúdo das redes sempre foi da Meta e vê mudanças com motivação política

Leonardo Neiva 10 de Janeiro de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Um vídeo publicado nesta terça-feira (7) pelo presidente da Meta, Mark Zuckerberg, pegou o mundo de surpresa, gerando uma série de controvérsias. O bilionário à frente da empresa, responsável pelas plataformas Instagram, Facebook e Threads, não só anunciou o fim da checagem independente de fatos nas redes como também definiu os checadores dos EUA como “politicamente tendenciosos”. E também prometeu, junto à gestão Trump, resistir a governos ao redor do mundo que estariam “pressionando por mais censura” — lugares como Europa e os “tribunais secretos” da América Latina, numa clara alusão ao trabalho do STF no Brasil.

Embora a mudança deva acontecer num primeiro momento nos EUA, ela deve se estender aos poucos a todos os países do mundo que usam as plataformas. Em entrevista a Gama, a diretora-executiva da agência de checagem Aos Fatos, Tai Nalon, apontou que classificar a atuação dos checadores nas redes como censura é em si uma desinformação. Isso porque a tomada de decisões sobre o que retirar das redes fica sempre a cargo da própria empresa, e não de agências externas. “Se existia uma percepção do próprio Zuckerberg sobre censura nas plataformas, no fim das contas, era por decisão dele e dos acionistas da empresa”, afirma a representante da agência, que atua em parceria com o Facebook desde 2018.

A Meta havia decidido instituir a checagem de fatos no Facebook em 2016, logo após a primeira eleição de Trump e em resposta a uma avalanche de críticas sobre a disseminação de desinformação na rede. Agora, além de reforçar conteúdos políticos, com o afrouxamento das regras, as redes passam a permitir certos discursos xenofóbicos, homofóbicos e transfóbicos. De acordo com as novas diretrizes publicadas no site da empresa, será possível, por exemplo, associar homossexualidade e transexualidade a doenças mentais.

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Na visão de Nalon, são “recados que mostram o alinhamento a um discurso político bastante identificado com a extrema direita e o uso de palavras-chave como identidade de gênero e imigração como pontos dissonantes”. Ela também enxerga com preocupação o impacto da mudança na busca por impedir a disseminação de informações falsas, assim como para o próprio jornalismo. “Não tem dinheiro para que o exercício jornalístico seja desempenhado da melhor maneira possível. A parceria com a Meta era muito significativa, por valorizar o jornalismo simbolicamente, financeiramente e em status”, declara.

Na conversa a seguir, a diretora-executiva do Aos Fatos aborda também os possíveis interesses por trás do anúncio de Zuckerberg e o impacto que a decisão deve ter para os usuários das redes daqui para frente.

É uma perda muito grande não só para a checagem, mas para a percepção da sociedade sobre o que são informações qualificadas

  • G |Como você interpreta o anúncio de Mark Zuckerberg e seus possíveis desdobramentos para o uso das redes?

    Tai Nalon |

    Eu vejo o anúncio do Zuckerberg como preocupante. Existe uma interpretação equivocada sobre como funciona a checagem de fatos. Ele associou essa atividade, que é uma técnica consolidada no jornalismo industrial, a políticas de censura dentro das plataformas da Meta, sobre as quais as organizações de checagem não têm qualquer ascendência. Então, se existia uma percepção do próprio Zuckerberg sobre censura nas plataformas, no fim das contas, era por decisão dele e dos acionistas da empresa. O que eu acho mais urgente é deixar claro que a checagem de fatos não tem absolutamente nada a ver com censura ou com a decisão de descontinuar o programa. Isso parece ser muito mais uma política de aproximação de uma determinada agenda que ataca checadores e jornalistas por apresentar o contraditório, uma visão crítica e informações confiáveis sobre determinados temas em disputa.

  • G |Os checadores vêm trabalhando há algum tempo com a Meta no Facebook. Como é essa relação?

    TN |

    Quero deixar claro que essa decisão está restrita aos EUA ainda. Não tem nenhuma previsão de que o programa seja descontinuado no Brasil, embora eles tenham sinalizado que pretendem descontinuar aos poucos ao redor do mundo. Os checadores trabalham desde 2016 com a Meta, a reboque da eleição do Trump, dos escândalos de disseminação de informações falsas e campanhas de influência estrangeiras que alteraram a percepção das pessoas que usavam o Facebook para se informar. Foi uma mudança significativa para o mercado da desinformação. O Facebook talvez tenha sido a vitrine mais visível, mas outras plataformas também passaram por processos de investimento em equipes que desenvolviam políticas para contenção de danos e conteúdos potencialmente perigosos. A gente não checa crimes, não analisa posts que pressupõem práticas ilegais. Estamos ali para verificar informações falsas e potencialmente enganosas que podem fazer mal para a sociedade. A relação com a Meta sempre foi cordial. Lógico que a parceria não era perfeita. Existia a percepção de que a checagem estava aquém das possibilidades de contenção da desinformação nas redes. Mas sempre houve a percepção de que era um trabalho bem integrado à cultura da empresa. Nunca recebemos nenhum tipo de reclamação sobre viés político, o tratamento sempre foi muito respeitoso. O Aos Fatos, no Brasil, foi um dos primeiros parceiros, a partir de 2018. Nunca tivemos nenhum episódio de tensão sobre decisões tomadas ou checagens publicadas. Nenhuma decisão de remoção de conteúdo passava por nós. A terceirização pressupõe que você está fora da cadeia de decisões da plataforma.

  • G |Na sua avaliação, qual o impacto hoje das medidas para a desinformação nas redes?

    TN |

    É difícil dizer, porque são muitas plataformas que funcionam de modos diferentes. Cada uma tem práticas específicas de combate à desinformação. Existem limitações técnicas também, do pareamento de imagens à identificação de padrões de desinformação em campanhas mais amplas. A gente vê a checagem de fatos como uma ponta do iceberg, porque ela é a representação material de que alguma coisa está errada nas redes. Apenas mais um registro de uma narrativa que se constrói de maneira recorrente e crescente nas plataformas, fazendo valer determinadas visões de mundo. Então, [com a mudança] acredito que a qualidade da informação vai ser bastante reduzida, porque você não vai ter mais acesso a informações analisadas por profissionais que sabem identificar fontes confiáveis. Muitas das coisas que a gente vê nas notas de comunidade do X são informações de segunda mão, que não vêm de fontes confiáveis. Isso pode simplificar demais a interpretação das pessoas sobre fatos muito complexos. E a estrutura das redes também não privilegia a nuance e a complexidade dessas discussões. Então as notas dificilmente vão resolver esse problema na Meta.

  • G |Por que o anúncio foi feito neste momento, na sua visão?

    TN |

    Creio que por conta da transição de governo nos EUA e da intenção de grandes empresários americanos de proteger os interesses de suas empresas a partir da proximidade com o novo governo. O governo Trump tem uma pegada patriótica muito grande de defesa dos interesses das empresas e da livre iniciativa estadunidense. O próprio Zuckerberg fala no vídeo que eles vão trabalhar em parceria com o governo Trump para advogar pelo que disseram ser a legislação de liberdade de expressão mais avançada do mundo. O que pretendem, na verdade, é impor uma visão de mundo sobre o que é liberdade de expressão. É um comportamento, na minha visão, hostil em relação à soberania nacional das demais nações. Ele menciona nominalmente a União Europeia e fala de cortes secretas na América Latina, numa clara referência ao STF. Existem outros recados que mostram o alinhamento a um discurso político bastante identificado com a extrema direita e o uso de palavras-chave como identidade de gênero e imigração como pontos dissonantes, em tópicos que vão passar a ser liberados sem moderação na plataforma. Quer dizer, acho muito difícil que se abandone qualquer tipo de moderação, porque isso tornaria a operação das plataformas absolutamente insustentável. Mas a gente vê um processo de flexibilização de regras.

  • G |Qual deve ser o efeito dessas medidas para o próprio funcionamento das agência de checagem?

    TN |

    Eu imagino que as organizações de checagem devem sofrer severamente com a falta do financiamento. Como sabemos, o jornalismo não vive uma grande fase em termos financeiros, não existe dinheiro para subsidiar investigações e promover segurança institucional de organizações. Então, vejo isso como mais um desdobramento da desvinculação progressiva das plataformas do apoio ao jornalismo tradicional e independente. A campanha de descredibilização do jornalismo de fato funcionou e fez com que se associar a determinadas marcas e temas pegasse mal para anunciantes. Existe também uma oportunidade de revirar essa retórica e demonstrar que, sem o serviço de checagem, qualquer jornalismo vai ser considerado equivalente a um cidadão comum, a despeito da expertise em transmitir informações bem acuradas. Vai demandar mais do usuário compreender como navegar num mar de informações que não se sabe se são confiáveis. Então, as perspectivas são bastante sombrias e não mais baseadas em decisões técnicas, mas sim políticas. Ao redor do mundo, muitos veículos foram criados para fazer checagem para esse programa da Meta. Não é o caso no Brasil ou em países maiores que têm empresas de jornalismo muito bem estabelecidas. A tendência é que algumas desapareçam, não consigam se financiar. E as que continuarem sofrerão um abalo em termos de investimento. Desconfio que as nossas checagens, mesmo não sendo mais pagas, podem subsidiar tomadas de decisões dentro dessas plataformas. Isso acontece nas notas de comunidade do X, em que usuários mandam links de checagens externas para comprovar se determinada informação é falsa. Agora, quem vai pagar para a checagem ser feita? Não tem dinheiro para que o exercício jornalístico seja desempenhado da melhor maneira possível. A parceria com a Meta era muito significativa, por valorizar o jornalismo simbolicamente, financeiramente e em status. É uma perda muito grande não só para a checagem, mas para a percepção da sociedade sobre o que são informações qualificadas.

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