Observatório da Branquitude
Fika, com K mesmo
Que a gente debata política, economia, sociedade, sem perder a leveza, o deboche e o sonho de transformação
Em texto anterior, já apresentei o livro “Lost in Translation”, de Ella Frances Sanders. Ele ocupa um lugar de destaque no meu escritório e, ao longo deste ano, se tornou um escape prazeroso da rotina, em algumas tardes de trabalho. Com uma xícara de café na mão, passei a abrir uma página aleatória do compêndio para me deliciar com a descoberta de novas palavras e seus significados.
Na semana passada, me deparei com a encantadora palavra sueca Fika, que significa “reunir-se em torno de um café comendo doces para dar um respiro em meio à rotina, batendo papo por horas”. O significado sueco nos apresenta uma imagem idealizada de encontro — uma mesa farta com docinhos. No Brasil, essa prática se manifesta de diversas formas, adaptando-se à realidade de cada comunidade. Seja em uma roda de conversa num boteco, na mureta da casa, que divide com o vizinho, ou mesmo em um ônibus lotado: aqui, transformamos espaços improváveis em lugar de troca de afetos, adaptando nossos encontros à nossa realidade, simplesmente para conversar e aproveitar a companhia uns dos outros.
Com a licença poética da apropriação da palavra sueca, dezembro tem sido um mês que eu tenho “fikado”. A intensidade de dezembro se manifesta de diversas formas. Enquanto a correria do dia a dia nos envolve, também encontramos tempo para nutrir relacionamentos. Ainda que, muitas vezes, esses encontros sejam temperados por pitadas de tensão (onde é servida torta de climão), quero me referir aos momentos mais saborosos: aqueles em torno de uma xícara de café, ou de um copo de cerveja, onde a conversa flui e a escuta é ativa.
Em dois fikas deste mês, tive a alegria de conversar com duas mulheres admiráveis, bem-sucedidas em suas carreiras e financeiramente independentes. No entanto, algo curioso me chamou a atenção: paradoxalmente, apesar de suas conquistas profissionais e da impecável gestão de suas responsabilidades domésticas, percebi um descompasso em relação ao gerenciamento de suas finanças pessoais, um aspecto que, até então, estava secundário em suas vidas. Chamou-me a atenção, felizmente, que nas metas de 2025 essa seja uma prioridade. Ambas com projetos muito concretos de apropriação desse pilar de vida, e, conhecendo ambas, sei que terão êxito neste plano.
O planejamento financeiro individual e a análise do cenário econômico são duas faces da mesma moeda
A conversa com essas mulheres me fez refletir sobre as diferentes dimensões da vida financeira. O planejamento financeiro individual e a análise do cenário econômico são duas faces da mesma moeda. Enquanto no âmbito pessoal, as metas financeiras são traçadas de forma individualizada; no âmbito macroeconômico, as decisões políticas impactam diretamente nossas vidas financeiras.
Em que pese a iniciativa de mulheres negras em organizar suas finanças, seus esforços podem ser limitados se as medidas econômicas federais não considerarem as interseccionalidades de gênero, raça, classe e outros marcadores sociais.
Afirmou o ministro da fazenda Haddad: “A reforma da renda que estamos propondo é neutra do ponto de vista fiscal”. No entanto, em 2024, é evidente que a ideia de neutralidade serve apenas para manter o poder de grupos específicos, definidos por gênero, raça e classe. É ilusório pensar que medidas econômicas sejam neutras. Estudos rigorosos, como os ministrados pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) têm se dedicado a demonstrar cientificamente como a provisão pública tem espaço para atuar de forma mais direta na redução do hiato distributivo entre brancos e negros e homens e mulheres.
A economia está presente, moldando nossas vidas, comunidades e presentes de Natal, e decidindo se conseguímos comprar aquela blusinha nova e o espumante da virada
O debate sobre economia, por vezes, pode parecer distante das celebrações de fim de ano. Mas, engana-se quem pensa que esse é um tema exclusivo de fóruns especializados. Em nossos encontros e conversas, a economia está presente, moldando nossas vidas e nossas comunidades, moldando nossos presentes de Natal, nossas festas de final de ano, decidindo se a gente consegue comprar aquela blusinha nova e o valor do espumante da virada.
A palavra “fika” nos convida a desacelerar e compartilhar experiências, mas também a refletir sobre o futuro que queremos construir. Que em nossos encontros de final de ano debatamos a necessidade de uma economia mais inclusiva, sem perder de vista os melhores memes do momento. Que a gente se desespere com o cenário eleitoral em 2026, mas que a gente sonhe em virar votos em 2025; que falemos sobre os prazeres e as dores das férias escolares, mas que tenhamos visão crítica dos corpos que atuam na economia do cuidado. Que em nossos fikas, a gente debata política, economia, sociedade, sem perder a leveza, o deboche e o sonho de transformação.
Boas festas!
Manuela Thamani é bacharel em administração de empresas (USP) e mestra em comunicação (USP). Trabalhou em multinacionais, veículos de mídia e fundações. É codiretora executiva do Observatório da Branquitude.
Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.
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