A tentação de ditar — Gama Revista
COLUNA

Maria Homem

A tentação de ditar

Esse resto ditatorial e autoritário que pulsa em nós, que sempre flerta com um agir à margem da lei, segue impávido em inúmeros elementos da vida pública

05 de Dezembro de 2024

Todas as culturas, por mais diversas que sejam, carregam um mito de origem que lida com o conflito entre o Caos e a Ordem. No início era o Caos, o Escuro, a Angústia e, com a ajuda de alguma força, implicitamente exterior e divina, fez-se a Luz, a Organização, o Apaziguamento. Fiat Lux. Quem nunca ouviu essa expressão?

A sensação de viver na instabilidade ou no que parece totalmente fora de controle pode dar agonia para algumas pessoas. E elas pagam qualquer preço para que lhes seja restituída a promessa, mesmo que imaginária, de que haveria um agente “forte e enérgico” que vá botar a casa em ordem. E garantir uma rotina estável, sólida, segura, previsível e sob controle.

Essa ideia tem dois problemas. O primeiro é que a promessa de ordem e controle é falsa. A vida não é ordenável nem controlável. Ela é instabilidade em sua própria matriz. E, atualmente, os processos e as tecnologias se aceleram a ponto tal que a entropia do sistema aumenta. Em palavras simples, o grau de desordem de todos os sistemas parece estar vindo numa exponencial. O que aliás gera mais angústia e desordens de todos os tipos: aumentam os problemas da “saúde mental” das pessoas, dos grupos e mesmo das instituições.

O segundo problema do projeto de liderança forte para trazer ordem é o preço que se paga. Normalmente se apoia numa ideia de que quanto mais caos, mais autoritária e centralizada deve ser a liderança. O preço da força imaginariamente salvadora seria a perda das liberdades de cada um. Isso também é falso. Primeiro porque a experiência e as evidências têm mostrado que mais autoritarismo e mais controle não levam a mais ordem e estabilidade. Pelo contrário, são forças recalcantes que aumentam a pressão da panela e seu potencial explosivo no futuro, seja ele a médio ou longo prazo.

A vida não é ordenável nem controlável. Ela é instabilidade em sua própria matriz

Mas parece que ainda resistimos e não queremos abrir mão dessa fantasia. Nesse sentido, estamos lidando com uma fantasia inconsciente e arquetípica que vem operando há muito tempo em nosso psiquismo. Parece que uma parte da nossa mente está preparada para operar na crença de um Grande Líder resolvedor de todos os problemas, uma espécie de Grande Pai autoritário mas garantidor da Ordem. Big Brother ou Big Father. Führer ou Condottiere. Grande Timoneiro ou Great Leader. Tantas e tantas metáforas temos visto surgir somente nas últimas décadas. E isso que parece que já inventamos a liderança partilhada entre representantes (a famosa democracia) há uns séculos.

Quanto mais o mundo se mostra caótico, como agora, parece que a tentação de ditar e ser ditado aumenta. Regredimos a um estágio mental de desamparo, a nossos núcleos infantis e vulneráveis, e recolocamos em cena a fantasia de que haveria os competentes para ditar regras e políticas e isso casaria muito bem com o desejo de recebermos o ditado para copiar. Por favor, não quero votar nem participar de nada disso, só me diga o que tenho que fazer e como tenho que viver. Não quero ser livre pra pensar nem pra criar uma vida. Muito trabalhoso ser livre.

Alguns grupos sociais parecem ter mais afinidade com essa fantasia inconsciente de ‘ditar regras’ e ‘por ordem no barraco’, mesmo que à força

E assim os núcleos vivos e pulsantes de todas as formas de ditadura permanecem ativos. Não são colocados na mesa, debatidos, eventualmente julgados.

O filme “Ainda estou aqui” mostra isso claramente. É uma mulher que, da sombra metafórica e real da cortina do esquecimento pode se lembrar e dizer: ainda estou viva. E é a ferida e também o desejo de ditadura que pode dizer: ainda estou aqui. Os golpes autoritários fundaram a República Brasileira no final do século XIX e até hoje a refundam sempre que nossa velha crise de fundação desigual se desvela, como em 1930, 1964, quase em 2023.

E esse resto ditatorial e autoritário que pulsa em nós, que sempre flerta com um agir à margem da lei, segue impávido em inúmeros elementos da vida pública, desde artigo da Constituição Federal até a formação das polícias (algumas ainda “militares”), passando pelas hierarquias sociais e corporativas.

Alguns grupos sociais parecem ter mais afinidade com essa fantasia inconsciente de “ditar regras” e “por ordem no barraco”, mesmo que à força. Os mais explícitos são os lugares historicamente associados ao pai (Pater) e à lei, como os Padres, Pastores, Policiais, Chefes, Representantes e Líderes. Às vezes até da Nação.

Exagero sobre a permanência dessa fantasia ditatorial mal elaborada que, então, retorna sem cessar e segue impune?

Estamos tão à flor da pele que puxar o gatilho virou carne de vaca. Você está me olhando assim atravessado? Toma bala

Um policial militar “estava atuando” e fez a apreensão de uma moto. Aí achou por bem arremessar o cara da ponte. Isso causou um escândalo e o comandante da polícia teve que vir a público dar explicações. Ele achou isso “preocupante”. Na maioria de casos desse tipo, a gente até consegue “linkar com algum início positivo da ação”. Mas essa aí, o agente jogar o suspeito da ponte, aí já foi demais. Foi um “erro emocional”, algo “quase infantil”, um “erro básico”. Eu diria que pode ter sido tudo isso, mas foi sobretudo um crime.

E não é o primeiro nem aparentemente o último caso desse tipo na polícia. Outro PM estava de folga e achou por bem dar 11 tiros nas costas de um jovem negro que furtou sabão num mercado. Outro matou o rapaz do mototaxi. Outro matou um estudante de medicina.

Estamos tão à flor da pele que puxar o gatilho virou carne de vaca. Você está me olhando assim atravessado? Toma bala.

Estamos fechando um ciclo e iniciando um ano novo. Mesmo que saibamos que esses números são arbitrários e logo mais teremos somente uma terça-feira seguida de uma quarta-feira, talvez valha a pena pegar carona nos rituais simbólicos que a humanidade vem criando há milênios para nos darmos uma chance, mais uma vez. Que o ano novo nos traga a coragem de não delegar os ditados e versos da nossa vida a ninguém.

Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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