Felicidade Ordinária
Novo livro reúne colunas de Vera Iaconelli na Folha, em que a psicanalista reflete sobre os sofrimentos e pequenas alegrias da vida contemporânea
Se é verdade que nenhuma felicidade dura para sempre, o novo livro da psicanalista e doutora em psicologia Vera Iaconelli escolhe explorar os múltiplos momentos da vida marcados por uma felicidade cotidiana, fluida e fugaz. Reunindo alguns dos melhores textos que publicou na coluna que mantém desde 2017 na Folha de S.Paulo, ela aborda em “Felicidade Ordinária” (Zahar, 2024) relações afetivas, feminismo, masculinidade, educação, sexo e política — além, é claro, da parentalidade, em que é especialista.
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Numa era marcada por um salto nas estatísticas de ansiedade, estresse e depressão e por eventos como a pandemia e a ascensão do autoritarismo, o espaço semanal da psicanalista no jornal é um prato cheio para tratar das muitas angústias contemporâneas. No livro, ela passa por alguns dos assuntos de maior destaque nos debates atuais, como a precarização da atividade dos professores, em “Para quem pensa que escola é prédio”, e o equilíbrio impossível entre o convívio familiar e as exigências cada vez maiores do mercado de trabalho, em “Tire a camisa da empresa”.
Iaconelli também aproveita para refletir, especialmente no texto introdutório, sobre o papel da psicanálise no enfrentamento desses inúmeros problemas cotidianos. Somente quando confrontados por questionamentos éticos, ela aponta, é que conquistamos ferramentas para enfrentar nossos medos, traumas e desejos. Se “o preconceito nosso de cada dia é inevitável”, como reforça num dos textos a seguir, “a questão é o que fazemos com ele.” Afinal, compreender por que fazemos o que fazemos acaba sendo um passo crucial para lidarmos melhor com nossas experiências individuais e coletivas.
Casais com filhos
Escutamos no divã adultos reconhecendo, não sem arrependimento, que tiveram filhos porque “é isso que pessoas casadas fazem” ou porque “é a ordem natural das coisas”. Não se aventa o fato de a pessoa nunca ter gostado de bebês ou crianças, ou nunca ter desejado tornar-se responsável por alguém por anos a fio. Isso parece não vir ao caso nessa inércia reprodutiva. Têm-se filhos porque têm-se filhos, ou
seja, têm-se filhos para responder a outras questões, por vezes inconscientes e nem sempre acessíveis, tais como: provar-se adulto, competir com os próprios pais, sentir-se suficientemente “mulher” ou “homem”. Enfim, existem tantas razões e fantasias quanto sujeitos. Honestamente, nenhuma razão é muito gloriosa, afinal somos humanos, demasiadamente, e nossas motivações são sempre um pouco toscas. Talvez isso aumente o valor de cuidarmos tanto e tão extensivamente de alguém que nunca poderá corresponder às nossas fantasias. Temos filhos e, com sorte e dedicação, nos apaixonamos suficientemente por eles e eles por nós.
Para além das questões individuais, os bebês caem de paraquedas na realidade de um casal que bem ou mal já tinha um funcionamento prévio (isso quando a mulher não se vê abandonada, ato contínuo, ao conceber ou ao parir). A partir daí temos três onde havia dois pombinhos ou dois galos de briga. E três é um número difícil de conciliar. Quem vai ficar de fora do par? Papai, mamãe ou pimpolho? Isso nos faz relembrar as primeiras situações nas quais fomos parte de um triângulo amoroso, e o filhinho que fomos pode reaparecer querendo a revanche por ter sido, na melhor das hipóteses, expulso da cama dos pais. Ciúmes, ódios e grudes nos convidam a rever posições, caso contrário o sofrimento e o sintoma nos obrigarão a encarar o que ficou pendente. A chegada de outros filhos cria outros triângulos não menos trabalhosos.
Três é um número difícil de conciliar. Quem vai ficar de fora do par? Papai, mamãe ou pimpolho?
Além disso, o bebê que um dos pais sonhou não é o mesmo que o outro sonhou. E é fácil que o bebê se transforme na corda de um cabo de guerra, pois um pai pode esperar que o filho seja super bem-sucedido e independente, enquanto o outro deseja que ele seja todo amor e devoção à família, duas aspirações por vezes antagônicas. O casal que até então só tinha que decidir a cor dos armários da cozinha juntos passa a tomar decisões que determinarão o futuro da humanidade — humanidade do bebê, pelo menos — e seguem os pais, que formavam um belo casal, rumando a passos largos para o divórcio.
O casal que se bastava, ao ter um filho logo descobre que abriu a porteira para a família estendida. Porque o filho tem avó (pois é, a sua sogra!), avô, tios, primos… e cada parente tem suas próprias fantasias sobre o que deve ser e ter um bebê. Para cada mãe e pai que enche a boca dizendo MEU filho, tem uma comunidade inteira usando o mesmo pronome possessivo.
A ideia não é fazer um texto contraceptivo (embora, por vezes, seja o caso de fazer outra coisa, no lugar de ter filhos), mas apontar o automatismo do “temos filhos porque os temos”. E talvez propor que tenhamos filhos porque gostamos do slogan que circula nas redes sociais: “Quer uma vida selvagem? Tenha filhos!”. Lembremos, no entanto, que nessa selva os bichos moram dentro de nós.
O bebê que um dos pais sonhou não é o mesmo que o outro sonhou. E é fácil que o bebê se transforme na corda de um cabo de guerra
O preconceito nosso de cada dia
“Mãe, o que é bicha?”, me perguntou minha filha aos cinco anos. Ao que respondi que era um jeito de xingar meninos que namoram meninos. Ela insistiu: “Que nem o tio fulano namora tio ciclano?”. “Sim.” “Mãe, não entendi.” “O que você não entendeu, filha?” “Não entendi, por que isso é um ‘xingo’!?”
Para minha filha soava incompreensível xingar o outro de algo que a seus olhos não o desabonava, afinal qual o problema de menino namorar menino? É duro ter que apresentar o preconceito para uma criança, e mais duro ainda é quando a criança descobre, atônita, ser alvo dele. Lázaro Ramos traz em sua biografia (Na minha pele, 2017) a angústia de ter de explicar aos filhos pequenos o que é nascer negro no Brasil, diante da violência que os aguarda.
Nos iludimos ao imaginar que o preconceito seja erradicável. Somos preconceituosos de saída, uma vez que nosso cérebro economiza energia ao catalogar nossas experiências. Se você foi mordido por um cachorro, é provável que atravesse a rua diante da iminência de cruzar com um, mesmo que seja um inofensivo poodle.
Mas onde o outro “nos morde”, digamos assim? O que tememos diante do outro? O que tememos diante do sexual, do estético, do estilo de vida, da raça, da religião, enfim, das escolhas, dos desejos e das condições de existência do outro? Um amigo calvo dizia brincando que encontrar-se com um homem de peruca era uma espécie de afronta mútua. Como você exibe o que eu escondo, ou esconde o que eu exibo?
Sempre teremos as diferenças inconciliáveis, mas o mal-estar que leva à violência, esse que mata e promove injustiças, revela nossa impossibilidade de lidar minimamente conosco. Revela a incapacidade de assumirmos nossa inconsistência e o fato de sermos estrangeiros a nós mesmos. Ferreira Gullar, no poema “Traduzir-se”, tece os desfiladeiros desse desencontro com a gente mesmo: “Uma parte de mim/ é permanente:/ outra parte/ se sabe de repente”. É doloroso reconhecer que há algo em nós que sempre nos escapará, e que Chico Buarque eterniza em sua música “O que será (À flor da pele)”, de 1976: “O que será, que será, que dá dentro da gente, que não devia, que desacata a gente, que é revelia?”.
É duro ter que apresentar o preconceito para uma criança, e mais duro ainda é quando a criança descobre, atônita, ser alvo dele
É no contato com o outro que essa parte de mim emerge à revelia e me surpreende. Há formas diferentes de lidar com esse temor. A eliminação pura e simples do outro, como no caso dos jovens negros (e esse raciocínio vale para pessoas trans, mulheres, imigrantes…), pode dar a delirante sensação de que o perigo, sempre suposto como vindo de fora, está sob controle. Há quem opte pelo isolamento para não ter o desprazer do encontro duvidoso (embora, é claro, logo perceba como a vida pode ser insuportável quando eliminamos também qualquer chance de haver o encontro prazeroso). Há quem assista a injustiças e violências passivamente e negue que com isso tenha uma participação ativa no desenrolar dos fatos. Há os grupos coesos que buscam se defender das violências externas ignorando suas próprias violências internas.
O preconceito nosso de cada dia é inevitável. A questão é o que fazemos com ele, questão ética incontornável. Sair matando, criar leis nefastas, assistir impassível às violências são escolhas que revelam o ódio à nossa própria humanidade.
- Felicidade Ordinária
- Vera Iaconelli
- Zahar
- 304 páginas
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