Trecho de Livro: Gente às Janelas, de João do Rio — Gama Revista

Trecho de livro

Gente às Janelas

Volume reúne textos variados e críticos de João do Rio, um dos principais cronistas do país e grande homenageado da Flip 2024

Leonardo Neiva 16 de Agosto de 2024

Homenageado neste ano na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, o célebre João do Rio (1881-1921) foi muitas coisas — jornalista, escritor, tradutor, teatrólogo… —, mas se consagrou principalmente por uma delas: as provocativas crônicas que publicava nos jornais da época. Por isso, a Carambaia acerta no alvo ao lançar uma reedição da coletânea do gênero “Gente às Janelas” (2024), tanto para prolongar a homenagem a esse momento único em memória do autor quanto para celebrar os dez anos da editora. Afinal, esta nasceu de mãos dadas com João, primeiro autor publicado pelo selo.

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A obra reúne crônicas raras do escritor, coletadas de arquivos e bibliotecas nacionais e estrangeiras após quase uma década de pesquisa. Aqui, sem sair dos limites do gênero, o leitor encontra diversas facetas do autor de “A Alma Encantadora das Ruas” (Companhia de Bolso, 2008), desde o crítico social até o colunista da alta sociedade carioca. Num período em que os jornais brasileiros alternavam rebuscados textos literários e colunas repletas de opiniões políticas, João foi um pioneiro na mescla entre crônica e reportagem, misturando apuração jornalística e entrevistas a um estilo de escrita de qualidade inconfundível.

Dividido em seções temáticas, “Gente às Janelas” contempla registros do cotidiano no efervescente Rio na virada para o século 20 e das rápidas modernizações da vida na capital fluminense — sem ignorar aqueles que foram trancados para o lado de fora dessa evolução —, e oscila constantemente entre a bajulação e o sarcasmo apontados para os hábitos das classes mais abastadas. Em suas andanças pelas ruas cariocas, conversou com toda a gente, ouviu e repassou histórias, frequentou salões e favelas. Mais do que tudo isso, conquistou um enorme leitorado, tornando-se uma das figuras mais conhecidas do início da República.

Também foi criticado por abordar temas como a homossexualidade e narrar ambientes pobres, geralmente pouco citados na cidade em ascensão, além de destilar preconceitos em muitos momentos. Na crônica a seguir, parte dessa dualidade se mostra na forma como João louva, possivelmente com segundas intenções, e ao mesmo tempo ironiza a transformação de uma praia paradisíaca em nome dos interesses imobiliários — local que hoje conhecemos como Ipanema.


A Praia Maravilhosa

Há um ano alguns poetas e alguns homens de sociedade ouviam Isadora Duncan — Musa do Erecteu que passa pelo mundo como o segredo revelado da Beleza suprema. Isadora falava no deslumbramento da natureza. E de repente ela nos perguntou se conhecíamos a praia.

— O Leme?

— Não.

— Copacabana?

— A outra — outra praia…

As belezas naturais do Brasil interessam pouco os brasileiros. Nós positivamente não conhecíamos a outra praia — a praia que sobremaneira impressionara Isadora — a dançarina de gênio profundo. Ela, porém, fez questão de mostrar a sua praia.

Servia-lhe um chauffeur — titular arruinado que se entrega ao automobilismo nas garages por falta de dinheiro. O chauffeur sabia onde ficava essa praia. Era preciso ver logo! Assim despencamos da terrasse do Moderno Hotel, onde Messager ficou só fumando um charuto. Era mais de meia-noite na noite de inverno e de luar. Os automóveis passaram o Leme, Copacabana e ousadamente, ao chegar à Igrejinha, continuaram por uma rua de indizível calçamento.

— Mas é o fim do mundo.

— Não; é o Arpoador, o Ipanema.

Realmente. A rua dava numa praia sem a iluminação elétrica. Sem outra iluminação mesmo que não fosse a do luar. A do luar era tênue tão derramada estava pelas neblinas. De modo que, com o galope espumarento das ondas, em frente, e a convulsão de titãs petrificados dos montes ao fundo e aquela atmosfera de névoa — pela primeira vez vimos uma daquelas paisagens de Shelley em que a natureza parece findar-se no inebriamento espiritual da sua própria luxúria.

— Como é belo! Como é belo! — dizia Isadora em êxtase.

— Estamos em frente ao Country-Club! Que pena não podermos cear…

E há um ano eu guardava a lembrança desse passeio como qualquer coisa de irreal e de infinitamente belo — como se naquela noite tivesse vivido o Prometeu desse mesmo Shelley, sagrado poeta. Há dias, numa sessão de cinematografia — um jornal da semana que, com habilidade inteligente, executa há tempos o jovem cinematografista Alberto BoteIho —, tornei a ver Ipanema, não na bruma de um luar de inverno, mas ao sol, com detalhes de beleza maravilhosos.

As belezas naturais do Brasil interessam pouco os brasileiros

— É de fato muito bonito!

— V. não conhece ainda Ipanema.

— Conheço sob o prisma Shelley e sob o prisma Isadora.

— Os poetas revelam, os homens realizam. Quer conhecer Ipanema sob o prisma Raul Kennedy de Lemos e Companhia Construtora? É impossível que não o impressione essa realização para a qual concorrem todas as pessoas de verdadeiro gosto — realizando assim um dos mais belos trechos do Rio — a praia maravilhosa.

O meu desejo era grande de conhecer Ipanema — de verdade, sem Shelley, sem Isadora, sem cinematógrafo. Fazia uma tarde linda. O primeiro automóvel que tomamos levou-nos lá em menos de vinte minutos. A surpresa primeira e agradável foi ver a rua há um ano intransitável — asfaltada. O meu guia explicou:

— Ainda há um pequeno trecho — cerca de quatrocentos metros — por calçar. A Prefeitura decerto não deixará de executar esse trabalho. Com o trabalho de valorização empreendido por Kennedy de Lemos, os terrenos que eram vendidos a três e quatro contos o lote estão sendo vendidos já a oito, dez e mais. Só em impostos de transmissão a Prefeitura ganha com isso. Veja depois o aumento do imposto predial.

Mas nos dávamos na praia com a enorme Avenida Meridional macadamizada.

— Quem macadamizou isto?

— O próprio Raul Lemos. Ele tem um gênio empreendedor. É moço. Ficou-lhe mais de 100 contos o trabalho. E ficou apenas por tal preço, porque a crise de trabalho fez com que muitos operários lhe fossem oferecer a colaboração com salários reduzidos. V. pode imaginar o futuro deste trecho do Rio. Lembra-se do que era o Leme há quinze anos?

— Devem lembrar-se as pessoas mais ou menos velhas.

— Pois era o deserto. Dentro de cinco anos, a Praia Maravilhosa será o bairro mais elegante e mais belo da cidade que a Jane Catulle Mendès denominou La ville merveilleuse. Santos Dumont ficou tão impressionado que vai mandar construir aqui uma villa.

Eu não via mais a paisagem lunar, de um ano atrás. Via uma cidade monumental surgindo, ao sol da tarde. Eram ruas a alinhar; eram turmas de trabalhadores calçando algumas dessas ruas; eram caminhões-automóveis cruzando-se carregados de material; era o movimento dos bonds, que só aparecem quando há no lugar vida própria; era principalmente nas ruas que percorríamos nas casas novas em folha, os estabelecimentos comerciais, indicadores de que o crescimento do bairro se fazia vertiginoso.

Eu não via mais a paisagem lunar, de um ano atrás. Via uma cidade monumental surgindo, ao sol da tarde

— O que se executou este ano! — tornava o meu informante. O prolongamento da linha de bonds de Ipanema numa extensão de 1.600 metros; a construção de um ramal da linha de tramways para o Leblon numa extensão de 3 mil metros; a construção de uma parte da Avenida Meridional com 1.600 metros de extensão a macadam betuminoso — o melhor calçamento no gênero, e toda essa obra em formação. Até o fim do ano há mais 2 mil metros de ruas calçadas.

— Caramba!

— E com planos maiores tais como a ponte que deve ligar o Leblon à Gávea, a linha circular de bonds. Para que o bairro surgisse neste cenário excepcional realmente belo, sem o charivari de mau gosto de Copacabana e Leme — Raul Kennedy de Lemos formou a Companhia Construtora Ipanema. Dispondo de material próximo a companhia constrói muito mais em conta e a prazo longo em prestações, que equivalem aos aluguéis que eternamente pagam aos proprietários aqueles que não podem ter de pancada a quantia para ter a sua casa.

— E o prazo?

— Dez anos, com a possibilidade de menos tempo porque são aceitas quando possíveis as prestações para amortização mais rápida.

Tinha o nosso automóvel enveredado por uma rua que ia dar a uma colossal serraria.

— Da Empresa?

— A serraria tem várias seções. Ocupará uns 2 mil operários. É bem uma grande fábrica de construções de casas. Casas de luxo. São todas de cimento armado e no seu preparo empregam-se madeiras brasileiras, que até hoje só serviam para móveis de luxo — jacarandá, óleo-vermelho, pau-marfim, pau-cetim. Venha ver uma casa que construímos por 40 contos, com o pagamento em prestações.

Saltamos adiante. Havia quatro vilas de fachada elegante. Entramos numa delas ainda vazia. Quem conhece o desconforto das habitações de aluguel no Rio, com paredes empinadas, portas de pinho pintadas, escadas que rangem, banheiros incríveis e forrações ignóbeis — tem pela comparação verdadeiro pasmo. A casa em que estávamos, com os tetos, as janelas e as portas de óleo vermelho, soalhos em mosaico, sala de banho vasta, e a disposição confortável dos interiores ingleses — era uma casa de luxo.

— Mas, com esta crise, haverá quem se abalance?…

— Os terrenos sobem de preço de semana a semana. Já não há um só de frente para o mar. E as encomendas de construções aumentam na proporção. Pode imaginar dentro de três a quatro anos o que será a Praia Maravilhosa — sendo dentro do mais belo cenário do Rio — a 45 minutos de bond da Avenida Central — o bairro onde todas as casas serão grandes ou pequenos palacetes feitos com elegância e arte…

Os terrenos sobem de preço de semana a semana. Já não há um só de frente para o mar

O meu guia fez depois o automóvel parar no Country-Club — para o aperitivo da tarde. Subindo as escadas dessa sociedade tão refinadamente distinta, eu quis concentrar na retina esse outro momento da Praia Maravilhosa — o momento em que uma cidade imprevista e bela desabrocha na beleza irreal e profunda do trecho mais admirável do Rio. E vendo aquele trabalho febril e os palácios brancos sob o carmesim do ocaso, entre o verde-azul do mar, lembrei um outro esforço à beira do deserto, feito há anos por capitalistas belgas — a cidade em que todas as casas são belas e de luxo — Heliópolis, construída de repente a uma hora do Cairo…

O Rio estendeu-se pelas praias. Contornou o Pão de Açúcar e continuou no Leme, em Copacabana. O novo bairro é o derradeiro ponto dessa reticência de casarias. Mas é o ponto final mais formoso de uma cidade — uma nova cidade toda bela num pedaço de terra tão linda, que, sem exageros, é impossível contemplar sem lhe dar o verdadeiro nome: — a Praia Maravilhosa.

Publicada originalmente no jornal O Paiz, em 23 de maio de 1917. Após a publicação desse texto, João do Rio teria sido presenteado pela construtora tão elogiada com dois terrenos em Ipanema — confirmando a fama de “cavador” sustentada por seus detratores. Com isso, ele e D. Florência, sua mãe, tornaram-se uns dos primeiros moradores do novo bairro.

Produto

  • Gente às Janelas
  • João do Rio
  • Carambaia
  • 272 páginas

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