Maria Homem
SideChat, TikTok, IA…: tecnologias para fugir de si mesmo?
Entendemos que o x da questão era uma pessoa de fato falar com outra pessoa. Podia ser constrangedor, podia convidar a que verdades viessem à tona, ou hipocrisias
A ideia pode ter sido boa: criar um ambiente em que tivéssemos a máxima liberdade de expressão, falar tudo o que vier à cabeça, sem censura, sem recalque, sem julgar nada. O sonho de qualquer análise, a famosa ‘associação livre’. Como realizar isso? Freud teve uma ideia: a pessoa deita num divã e, de costas para alguém, sem olho no olho, ela começa a falar livremente o que lhe passa pela cabeça.
Um século depois, entendemos que o x da questão era uma pessoa de fato falar com outra pessoa. Podia ser constrangedor, podia convidar a que verdades viessem à tona, ou hipocrisias, falseamentos, teatros, falso Self, performances. Então desenvolvemos novas tecnologias de conexão humana: laços sociais mediados. Nome técnico: social media. Agora não é mais olho-olho, corpo-corpo. Muito íntimo. Passou a ser olho-tela-olho. Sujeito-meio-sujeito. Intersubjetividade mediada. E as pesquisas mostram que as novas geraçoes se encontram e transam bem menos ‘presencialmente’.
Aí tem de tudo, e uma paleta de cores para a gente escolher: tem mensagem de texto, de voz, de imagem, de vídeo, emoji — nome fofo para a mediação de um símbolo para aquela coisa antiga de sentir e tentar decifrar o que a gente está sentindo e o que o outro está sentindo e também o que acho que ele quereria revelar e o que quereria esconder do que sente e assim por diante. Hoje é tudo mais rápido: é um coração. Muitos corações. Tantos que no fim me perco: pode ser “Eu te amo” ou “Estou com tanta pressa e tenho tantas pessoas para atender que vou aqui rapidinho com algo justamente ‘fofo'”.
E agora, nesse processo de trocas sociais documentadas, a gente ainda distribui pontuações: likes e dislikes, comentários e críticas, seguimentos e cancelamentos. Vivemos em um campo minado, com a tal ‘liberdade de expressão’ cada vez mais bonita na retórica e mais impossível na prática. Quem é de fato livre para se expressar?
Ninguém. Precisamos recriar um ambiente em que se possa ser e pensar e falar o que quiser. Como? Tivemos uma ideia: só pelo anonimato. Somente tirando a si mesmo da cena é que se pode falar tudo o que se quer. Sem pensar se pode ou não, se o outro vai gostar ou não, se está certo ou errado, se é original ou repetição, se vou ser aplaudido ou vaiado. Ou se é politicamente correto ou incorreto ou tenho o lugar de, olha só, “fala”. Plataformas anônimas correm na web, apps como SideChat movimentam falas e organizam ações.
Vivemos em um campo minado, com a tal ‘liberdade de expressão’ cada vez mais bonita na retórica e mais impossível na prática
Sucesso. E o que criamos foi a arena democrática perfeita onde vem à tona conteúdos recalcados de nosso ser e da nossa cultura e assim transformamos relações, fluxos e, quem sabe, instituições? Evoluímos e elaboramos? Não. Quando não precisamos falar em nome próprio ou dar a cara a tapa ou deixar o cu na reta ou qualquer uma dessas expressões que revelam que uma parte fundamental de nós está no jogo, o que surge é a barbárie. Inconscientemente nos autorizamos a regredir e deixar escoar, isso sim livremente, os afetos mais arcaicos: amor cego, ódio puro, ressentimento ancestral. Não é difícil encontrar bodes expiatórios para tanta carga represada.
Muito pesado tudo isso? Vamos nos distrair. O TikTok parece ser atualmente o maior território de trocas sociais do planeta. E que funciona assim: oferta-se o micro show de alguns milhões de pessoas sob o olhar espectador de muitos, muitos milhões de pessoas. Como em qualquer grupo humano (aliás de primatas), tem as que ficam mais confortáveis em assistir, e as que gostam mais de se mostrar.
Não importa o seu lugar no jogo, o importante é seguir na brincadeira, pois o show must go on. É um anestésico gostoso onde a gente passa horas e parece que é um remédio eficaz diante da angústia da realidade. De vez em quando dá dor de barriga de pensar que a vida está passando lá fora em algum lugar e que nem sei bem quem sou eu, o que eu gosto ou como é que se relaciona. O que fazer diante das teias de bullying e intrigas em que se transformaram as relações escolares ou corporativas em sua maioria? Jonathan Haidt pesquisa seriamente o tema e diz no seu novo livro que criamos uma “geração ansiosa”, e que estamos sofrendo.
Como as novas tecnologias poderão nos ajudar se não conseguimos resolver como estar bem com a gente e como se relacionar com o outro?
Ah isso é muito pesado. Um pouco mais de descanso mental, por favor. Agora a IA está entrando em nossas rotinas e cada um já pode criar um agente virtual personalizado e assim conversar, trabalhar e namorar (trepar também) consigo mesmo. Você dá todo o input e a ‘inteligência’ processa o seu self. O novo gpt ainda consegue ler as suas emoções faciais – melhor que sua mãe, seu cônjuge, seu espelho – e interagir contigo no tom adequado e sincero que só uma máquina consegue fazer. É verdade, ela não precisa ser amada.
Eu me pergunto, seriamente, como as novas tecnologias de interação humana vão poder nos ajudar se no fundo ainda não conseguimos resolver dois detalhes básicos: como estar bem com a gente mesmo e como se relacionar com o outro.
Partilhei com vocês um pouco do que ando trabalhando sobre o tema e que também debati com pessoas reais com quem tive a chance de conversar, comer, pensar, enfim, estar lado a lado, olho no olho, num seminário sobre Inteligência Artificial em Educação e Cultura, no Itaú Cultural.
Numa certa hora eu perguntei pra platéia quem, se pudesse escolher, seria imortal. Foi minoritário, mas vários levantaram a mão. Imagina que logo mais teremos ainda essa escolha para fazer. Nós, que nos escondemos tanto de nós mesmos, vamos ter que decidir também em que momento está bom. Deu, quero morrer.
Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.