Você tem uma relação aberta? — Gama Revista
COLUNA

Maria Homem

Você tem uma relação aberta?

Podemos estar dentro de uma relação estável e descobrimos que estamos a viver no “Império do Eu”, cada um na bolha de sua “subjetividade”

30 de Abril de 2024

A primeira ideia que nos ocorre para responder essa pergunta é factual: uma relação aberta é aquela em que se pode fazer sexo com outras pessoas além do parceiro. E — complemento importante — sem precisar mentir. Pois desde que o mundo é mundo se pratica a não monogamia, com maior ou menor esforço de ocultá-la, e sem paridade de gênero. Na prática, os homens sempre exerceram relações abertas ocultas.

Estamos atualmente realizando então dois movimentos. As mulheres também podem ficar com outras pessoas, (quase) tanto como os homens. E isso de forma explícita e pactuada, com acordos internos e mesmo customizados. A cada relação cabe desenhar sua abertura.

Às vezes os acordos são tão detalhados para dar conta da imensa gama de possibilidades da vida que viram alvo de programas de humor. Pode amiga? E sócio? Repetir três vezes a mesma pessoa? E se apaixonar? Inevitável cair na judicialização detalhada da vida sexual-afetiva.

Mas, para além da complexidade burocrática e operacional, voltemos algumas casas no tabuleiro: o que quer dizer “aberto”? E antes ainda: o que é se relacionar com alguém?

Não custa lembrar: não se tem uma resposta óbvia para isso.

Podemos, por exemplo, estar dentro de uma relação estável e qual não é a surpresa ao descobrir que estamos a viver no “Império do Eu”. E o mais difícil deles: cada um na bolha de sua “subjetividade”dos seus gostos, desejos, convicções (às vezes agressivas), querendo falar muito e ouvir pouco. Aí nos queixamos: como está difícil se relacionar e como o mundo está egocentrado.

Desde que o mundo é mundo se pratica a não monogamia, com maior ou menor esforço de ocultá-la, e sem paridade de gênero

Descartamos essa relação e partimos para uma outra, num processo que se acelera cada vez mais e acaba por criar uma longa série de semi-relações. Cápsulas soltas que formam uma constelação estelar humana de brilho variado.

Pergunta: nessa arquitetura a gente consegue estar aberto para o outro? A abertura de si, do seu espaço, casa, coração, fantasias para uma pessoa no início necessariamente estranha? Difícil.

Mas de vez em quando surge uma pessoa que gostamos de escutar e dançar e estar com. Convidamos ela para entrar no nosso território sensível. Aí sim a relação é aberta: nos abrimos para o outro. Qualquer que seja a idade, raça, cor, sexo, religião, peso, altura, ocupação, fantasia sexual, status.

No entanto, quase sempre perdemos essa oportunidade mágica. Nem nos damos conta de que ela bateu à nossa porta. Estamos muito ocupados procurando um parceiro justamente baseado nesses indicadores, já que nos especializamos na caça da cabeça a ser escolhida para a vaga de cônjuge. Sim, somos um headhunter em busca do executivo para o posto de parceiro qualificado, cônjuge-sócio do empreendimento familiar emoldurável.

Como podemos deduzir, essa também não é uma relação muito aberta. Ela é fechada: fechada com sua classe, sua tradição, sua família e a propriedade que se quer ampliar e manter. Mesmo que esse casal tenha decidido abrir a relação e o novo pacto erótico permita vários encontros sexuais, essa relação é fechada em seu princípio.

Agora, pode ser que andando distraída na rua ou com o olhar advertido do inconsciente, algum encontro se concretize. Você está aberto para si mesmo e para seu desejo. E assim se abre para o outro.

De vez em quando surge uma pessoa que gostamos de escutar e dançar e estar com. Aí sim a relação é aberta: nos abrimos para o outro

E ele, milagre, se abre para você. Esse o real encontro. A paixão, o amor, o match. Qualquer nome que se queira dar. Aqui temos de fato uma relação aberta.

E, uma vez tendo encontrado isso, e sabendo que encontramos, a gente não quer abrir mão. A gente quer manter: fica bem junto, ri e cria e se acalma. Se sentindo cada dia mais inteiro, mais pleno de potência de tudo o que se deseja e se alcança ser.

Se, nesse caminho, a gente vive nossa sexualidade de forma plena e inteira somente com esse parceiro, tudo bem. A relação continua aberta. Se a gente partilha nossa sexualidade com outros seres, junto ou separado do parceiro, tudo bem. A relação continua aberta. Se a gente conta ou não tudo o que fez, se é com conhecidos ou desconhecidos, se tem beijo na boca ou não, se tem x, y ou z… depende de cada um. Depende de identificações e fantasias inconscientes, e ainda do momento que se atravessa nessa relação e nesta vida.

Muitas vezes se abre a relação com outros corpos para não se perder o que se tem. Para manter o casamento, a família, os filhos, o patrimônio. Para perpetuar o gozo e o sintoma.

Ou para se ampliar o que se é.

O que é uma relação aberta, afinal? Algo muito mais intrincado do que poderíamos supor. Para além das fenomenologias, depende da conexão com o núcleo vivo que pulsa em nós, deus Eros que nos habita.

Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação