Maria Homem
Marielle e Bolsonaro: roteiro de filme (blockbuster)
Não vai precisar muita liberdade criativa pois, como vocês verão, desta vez a realidade superou a ficção
Imagino que neste momento haja, Brasil afora, muita gente boa fazendo a pesquisa para o filme ou, melhor ainda, a série de muitas temporadas que vai contar a história do Brasil recente. Primeiro, porque ao narrar a própria história a gente se conhece melhor – esse inclusive é o princípio matriz de qualquer processo analítico. Em segundo lugar, porque ainda tem uma grande parcela de nós mesmos que está em negação e tem medo de olhar no espelho e ver a imagem da milícia, da corrupção e do crime, todos muito bem organizados. E terceiro, para quem sabe ao final da série, a gente sair com aquele alívio trágico, o sentimento de que basta de impunidade e que a justiça será feita.
Aqui vai minha colaboração cidadã: o esboço do roteiro da série, por ora com 7 temporadas.
Ainda tem uma grande parcela de nós que está em negação e tem medo de olhar no espelho e ver a imagem da milícia, da corrupção e do crime, todos muito bem organizados
Obs: Não vai precisar muita liberdade criativa pois, como vocês verão, desta vez a realidade superou a ficção e ainda com um vendaval de clichê. (Spoiler: o polícia era o bandido. O representante do povo era bandido. O cara que tomava conta das contas era outro bandido. O rei dos bandidos tentou fugir e foi pego com a boca na botija pelo espião estrangeiro.)
1. Os bandidos do mal
A primeira temporada vai ser tão bem narrada quanto os livros e podcasts do Bruno Paes Manso e desenhar direitinho a história contemporânea brasileira. O campo de forças da série revelará as tensões estruturais num país de alto potencial (sempre o país do futuro) que no entanto tudo faz para manter a tradição de sua desigualdade e injustiça abissais. A história se localiza entre centro e periferia, brancos e pretos, ricos e pobres. Revela como ao longo das últimas décadas foram se formando os grupos de vigilância de comunidades que acabaram por se transformar em grupos de domínio de territórios, grilagem de terras, tráfico de mercadorias variadas, controle de pessoas, armas e ideias (votos). E mostra o processo pelo qual a rede miliciana se mistura à rede do crime e ainda à redes das igrejas evangélicas. Como os agentes dessas diferentes redes se sobrepõem e são agentes da lei e fora da lei, simultaneamente. Nossa série traz uma qualidade dramática clássica: os bandidos do mal são travestidos do bem.
2. A heroína
Marielle. O desafio do roteiro vai ser mostrar como alguém que cresce num território periférico, conflagrado, violento da cidade do Rio de Janeiro, uma menina, sai da teia de embrutecimento ao qual era destinada e consegue desenvolver uma consciência crítica do ambiente em que vive e, a partir daí, encontrar uma posição a partir da qual possa trabalhar para alterar essa realidade e assim viver em nome de um projeto de transformação que dá sentido à sua existência. Essa a real heroína moderna. E que paga o preço mais caro que poderia pagar por isso.
3. O assassinato
Ao longo dos anos fomos juntando peças de um quebra-cabeça 4D: busca do timing preciso, indicações de generais, trocas de delegados e chefias. Teve espião miliciano no Psol. E whiskey com o ‘vulgo Doutor Piroca’ para planejar o crime. Teve trocas de carro no já famoso condomínio Vivendas da Barra, e ainda porteiro desaparecido. Teve até o detalhe – para a minha sensibilidade clínica um dos mais perversos – de depois do crime se livrar das armas na casa do obediente irmão, ir tomar um trago e assistir jogo do Flamengo. Detalhe: como o que mais tarde seria o Gabinete do Ódio consegue disparar a imagem de uma ‘falsa Marielle’ com um ‘falso Marcinho VP traficante’ no exato segundo seguinte a esse assassinato? Já tinham tudo pronto para embaralhar as peças do perverso jogo de narrativas. Esta é a temporada do detalhamento da violência cotidiana brasileira. Tão importante como contar a história da menina da favela que vira vereadora é descobrir a motivação dos garotos que buscam se tornar homem como policial e, depois, como criminoso.
4. A luta do bem x mal: os bandidos sempre escapando
O crime foi quase um crime perfeito. Teve um planejamento tão ‘meticuloso’ que conseguiu escapar durante seis anos da pressão de milhões de pessoas, dentro e fora do Brasil, para descobrir #QuemMandouMatarMarielle. Ele pretendia ser ininvestigável, e quase conseguiu. Aqui o foco é a eterna disputa entre o poder da lei e o poder da corrupção da lei. Veremos os bastidadores de todas as instâncias da Nação, desde a cozinha de uma delegacia de polícia até os embates sangrentos na Polícia Federal, no Ministério da Justiça e no Supremo. Nessa temporada o protagonista é a personagem macabra que surpreendeu o país: o cínico chefe de polícia que planejou o crime e coordenou a sua não investigação. Agatha Christie não faria melhor.
5. Os mandantes são presos
Finalmente, são revelados os mandantes do crime. O Brasil ficou com os olhos grudados na TV e nas redes. As prisões midiáticas. A surpresa. A repercussão no Brasil, mundo afora. A imediata negação de alguns – a esta altura, surreal. Quais teriam sido os acordos palacianos que geraram as movimentações daquele domingo histórico? O que um crime no Rio de Janeiro revela sobre os porões do Brasil? A temporada tem páginas e páginas de processos para estudar.
6. O ex-presidente tenta fugir
Logo no dia seguinte à Revelação, outra bomba. O New York Times solta o vídeo (vejam só roteiristas, ponto a investigar). Depois de ter o passaporte apreendido, Bolsonaro tenta uma saída de emergência: passou dois dias com colchão e pizza na casa brasileira do seu amigo ditador húngaro para tentar uma rota de fuga. A pergunta que não quer calar volta com força: qual, afinal, o envolvimento da família Bolsonaro na morte de Marielle? Qual a conexão entre Flávio Bolsonaro e seus negócios de grilagem imobiliária e o assassinato de Marielle Franco?
7. O Império da Lei (dica: projetar Final Feliz)
A última temporada da série vai investigar a família Bolsonaro e outras famílias ligadas à milícia e ao crime sistemático que ainda operam como a base de produção de riqueza de grande parte do país. Se as investigações seguirem até a raiz, se houver julgamentos e condenações, sem voltar atrás, quem sabe consigamos criar laços de confiança mínima para achar que vivemos em um país menos juvenil e numa sociedade menos picareta. A ideia não é menos do que abrir as veias criminosas da América Latina em suas formas de século XXI.
Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.
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