Observatório da branquitude: Eu sei que te machuca, mas preciso te dizer — Gama Revista
COLUNA

Observatório da Branquitude

Eu sei que te machuca, mas preciso te dizer

Em vídeos virais de 20 segundos em que jovens casais inter-raciais se apresentam é evidente a reprodução do racismo recreativo

07 de Fevereiro de 2024

Gosto muito do meme “estamos há zero dias sem polêmicas” e do poder de expressar sentimentos de modo sintético. Pouco antes de redigir esta coluna, ele apareceu em um grupo de conversas do qual faço parte. O meme foi empregado por uma colega ao comentar os desafios de ser uma pessoa negra, em especial uma mulher negra, em uma sociedade altamente hierarquizada do ponto de vista racial como a brasileira. No Brasil, é comum e possível a um indivíduo branco ser racista e ao mesmo tempo se acreditar antirracista sob a alegação da convivência com indivíduos negros — ou na evocação de uma ancestralidade remota. Uma engenharia complexa na mesma medida que incompatível.

No raiar de 2024, estamos há zero dias sem polêmicas de cunho racial. Infelizmente. Exemplo disso é a trend “Antes eu tinha medo do escuro, hoje namoro com ele/a”, em circulação em uma rede social bastante utilizada, sobretudo pelas juventudes. Tratam-se de vídeos virais, de no máximo 20 segundos, nos quais jovens casais inter-raciais se apresentam. Caso você não tenha assistido, explico: os protagonistas são os parceiros ou as parceiras brancas. Na imagem inicial, o parceiro branco aparece sozinho enquanto a tela exibe o letreiro “Antes eu tinha medo do escuro”. No frame seguinte, os parceiros brancos afirmam que hoje namoram com ele ou com ela, em uma associação entre o escuro, o qual temiam, e a cor da pele do então companheiro ou companheira negra. No momento final dos vídeos, o namorado ou namorada negra é revelada.

As trends caracterizam-se pela ampla replicação de um determinado formato audiovisual pelos usuários, que aderem a essas brincadeiras virtuais. Elas podem flopar, isto é, fracassar, como dizem os jovens, ou viralizar. A trend em questão ganhou um mar de perfis e tem por objetivo firmar o compromisso assumido pelos membros dos casais inter-raciais de modo público. Ou seja, a motivação parece ser simplesmente declarar o amor. O trecho de uma mesma canção em inglês é utilizado nos vídeos, conferindo um tom romântico e um tanto melancólico às cenas. Porém, diz a canção: “I know it hurts you/ but I need to tell you”. Em português: “Eu sei que te machuca/ mas preciso te dizer”.

Atenta à música e às imagens, assisti a diversos vídeos para produzir uma reflexão que fizesse brotar esta coluna. Tarefa muito desconfortável, devo dizer. O desprazer, porém, foi acompanhado pela vontade de me aproximar e ouvir esses jovens. Sendo uma mulher negra, pesquisadora, me povoa a curiosidade de capturar suas percepções em torno da trend, da pauta racial, das relações inter-raciais, do racismo e da branquitude. Apesar dessa vontade, que pode se realizar em outro momento, à luz dos estudos no campo das relações raciais é evidente a reprodução do racismo contido na gênese dos vídeos, mobilizado em uma de suas facetas: o racismo recreativo.

Termo forjado pelo doutor em direito e especialista em direito antidiscriminatório Adilson Moreira, o racismo recreativo tem caráter estratégico, segundo o autor. Brincadeiras e piadas racistas cumprem a função de perpetuar não apenas o menosprezo e o temor presentes no ideário social e racial negativo atribuído à população negra, mas sobretudo a representação de superioridade moral branca. Uma vez que os estereótipos raciais dão sustentação às hierarquias que deles necessitam para serem legitimadas, o humor racista colabora na preservação de leituras positivas acerca de pessoas brancas.

O racismo atravessa o amor e a amizade, permeáveis ao sistema de opressão racial bem como as demais relações sociais

Em tom de brincadeira aparentemente inofensiva, os jovens brancos, ao som de “Eu sei que te machuca/ mas preciso te dizer”, anunciam não mais temer o escuro, o inseguro, o insondável que pode significar, dentre outros sentidos, a perda do medo e do constrangimento social em assumir um relacionamento amoroso com uma pessoa negra. Ato contínuo, como um passe de mágica, talvez se pensem antirracistas. Meramente pela escolha de um parceiro ou parceira afetivo-sexual negro. Quem nunca ouviu a célebre frase: “eu não sou racista, tenho um amigo negro”? Pois é, sempre bom lembrar: o racismo atravessa o amor e a amizade, permeáveis ao sistema de opressão racial bem como as demais relações sociais.

Em trabalho muito interessante acerca de famílias inter-raciais, a pesquisadora Lia Vainer Schucman percebe, entre seus informantes brancos, práticas discursivas de manutenção e de inegociabilidade da brancura em favor do reconhecimento da alteridade e da humanidade de seus parceiros negros. Em um dos vídeos da trend, cabe dizer, o rapaz branco aproxima a foto de um macaco, com laço de fita rosa na cabeça, do rosto da namorada negra.

O estudo de Schucman identifica que mesmo em relações afetivas sólidas nota-se a manutenção das hierarquias raciais por parte dos sujeitos brancos, hierarquias construídas em uma sociedade racista. De acordo com os achados da pesquisa, a chave estaria no desafio da construção de convivências não hierarquizadas, pautadas pelo reconhecimento do outro, de sua alteridade em consonância ao reconhecimento de si na condição de portador ou portadora de privilégios materiais e simbólicos.
A complexidade das relações de dominação racial pode se esconder —, ou melhor, se revelar — nos laços afetivos mais íntimos, como na família e no amor, expostos à violência do racismo no âmbito da sociabilidade. Não haverá como saber dos efeitos sobre as pessoas negras participantes dessa onda virtual de curta duração, mas com potencial resultado deletério sobre suas identidades em formação. Porque a despeito da trend, a vida cotidiana nos classifica, nos reduz a priori. Ceifa sonhos, projetos, esperanças.

Nunca é demais relembrar que a propagação de conteúdos racistas, no limite, se conecta à propagação de conteúdos de ódio às minorias racializadas, em que pese o tom de brincadeira explorado pelas redes sociais em geral. Longe de se tratar de censura, as plataformas devem ser monitoradas e reguladas. É fundamental o estabelecimento de regras de combate ao racismo capazes de responsabilizar as plataformas, garantindo a fiscalização e o emprego de sanções.

O intelectual Edson Cardoso, em um de seus tantos escritos imperdíveis, compartilha o espanto de nascermos em um mundo no qual muito se sabe sobre nós, negros, de antemão. Impressionado com o volume de informações e representações que um olhar racista pode colher em um rosto negro, Cardoso sentencia: “Os negros são no Brasil uma evidência pública de um conjunto de delitos”. E os responsáveis, quem são? Pois é. De fato, seguimos há zero dias sem polêmicas.

Carol Canegal é mestre e doutora em Ciências Sociais (PUC-Rio). Atuou como pesquisadora no Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd/UFJF) e analista de políticas públicas no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). Atualmente é coordenadora de pesquisas do Observatório da Branquitude.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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