Luciana Brito: "A imaginação, o sonho, a fantasia do povo brasileiro floresce" — Gama Revista
Conversas

Luciana Brito: “A imaginação, o sonho, a fantasia do povo brasileiro floresce”

Cocuradora da maior festa literária do Nordeste, a Flica, fala sobre o projeto de nação dos povos afro-brasileiros e indígenas e como o tema aparece no evento

Luara Calvi Anic 26 de Outubro de 2023
Diego Silva

Qual o projeto de nação de povos africanos, afro-brasileiros, indígenas? Ao olharmos para as culturas tradicionais e para a sua religiosidade encontramos valores atuais e importantes para uma sociedade melhor. “Em tempos de fundamentalismo religioso, há esse outro projeto de nação trazido por essas populações que têm uma flexibilidade em relação à diferença, às outras formas de vida, às outras formas de amar, de se relacionar, um olhar comunitário”, diz a Gama Luciana da Cruz Brito, historiadora e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Ela é cocuradora da 11ª edição Flica – Festa Literária Internacional de Cachoeira, que acontece de 26 a 29 de outubro e traz o tema Poéticas Afroindígenas do Bicentenário da Independência do Brasil na Bahia. Ao lado de Mirian Reis, doutora em literatura, professora e diretora do campus dos Malês da Unilab, assinou a programação da Tenda Paraguaçu.

A curadoria coletiva — que inclui ainda Jocivaldo Bispo e Clara Amorim — desenhou uma programação que extrapola a celebração das conquistas da Independência do Brasil e da Bahia. A ideia é também questionar como mulheres, a população LGBTQIA+, as pessoas negras e as indígenas pensam o passado e atuam no presente do país.

O evento acontece na cidade de Cachoeira, localizada no Recôncavo Baiano, território de onde saíram nomes importantes da história do Brasil e abolicionistas como André Pinto Rebouças, Teodoro Sampaio e Manoel Quirino. Além da população local que está presente nas mesas e no público.

Na conversa a seguir, Brito fala das escolhas e aprendizados a partir da curadoria e também do livro que lança na Flica. “Avesso da Raça” (Bazar do Tempo, 320 págs., R$ 78) é uma interpretação sobre o papel da sociedade brasileira nos debates raciais e políticos nos Estados Unidos do século 19. O lançamento será realizado no dia 26 de outubro, às 11h, na Casa Preta Hub.

No Recôncavo Baiano existe o Brasil que é resultado da força dos povos africanos, afro-brasileiros e indígenas

  • G |Qual a importância da Flica acontecer na Bahia e neste ano do Bicentenário da Independência?

    Luciana da Cruz Brito |

    Historicamente, essa ideia da fundação de um Brasil surge em Porto Seguro, com a invasão europeia. Mas no Recôncavo Baiano existe, de uma forma muito especial, o Brasil que é resultado de uma força das culturas e dos povos africanos, afro-brasileiros e indígenas. Porque esse lugar de muitas dores, que era um polo escravista importante para o Brasil num período de extração do trabalho dos povos negros e indígenas, há também uma forma de viver e de pensar que se formou nesse território. Nós começamos a discutir o tema da Flica e a gente sabia que não podíamos abrir mão do Bicentenário da Independência, mas mais do que o tom celebrativo era preciso pensar o Brasil que ainda está em disputa e que foi produzido a partir das lutas do povo africano, afro-brasileiro, indígena, das pessoas pobres. Do projeto de nação que até hoje a gente vê [nos escritores e ativistas] Conceição Evaristo, Nêgo Bispo, Ailton Krenak. Atentando para uma outra forma de entender e pensar quais Brasis são possíveis e que ainda estão em disputa. O Censo 2023 nos orientou muito.

  • G |De que maneira?

    LCB |

    Ao longo do ano foi surgindo o resultado e a maior população quilombola do Brasil está na Bahia, assim como a segunda maior população indígena está aqui. Então a gente foi dando o recorte das mesas com esse perfil. Além disso há os elementos que hoje estão no centro do debate público, como é o caso dos direitos da população LGBTQIA+. Nós achamos interessante levar esse debate das diversas formas de pensar o Brasil para esse território.

  • G |Os temas tratados no festival nos ensinam que há um projeto de nação por parte dos povos indígenas e afro-brasileiros. De que maneira a condição de opressão a qual esses povos foram e são submetidos desqualifica e omite esse projeto?

    LCB |

    Todas as comunidades tradicionais, as religiões de matriz africana, os quilombolas e os povos indígenas entram, por exemplo, na luta em defesa da natureza, do meio ambiente. E aqui a gente não tá falando como os debates de conferências internacionais, mas de algo fundamental para que esses povos e essa religiosidade exista. No Candomblé não se faz nada sem uma folha. Então se determinada folha deixa de existir na natureza há toda uma complexidade que vai ser modificada por conta da ausência dessa folha. Então é possível ouvir “tal folha está difícil de achar, tal folha não existe mais, tal semente é difícil de achar”. Dentro desse projeto de nação desses povos eu destacaria o respeito à natureza como algo cotidiano, dinâmico, essencial, fundamental para a própria existência dessas populações.

  • G |O que mais aparece nesse projeto de nação?

    LCB |

    Outro elemento importante é o direito a uma religiosidade não cristã ou não somente cristã, ou politeísta, que dialoga com o cristianismo e com outras perspectivas de mundo. Em tempos de fundamentalismo religioso, há esse outro projeto de nação trazido por essas populações que inclui uma flexibilidade em relação à diferença, às outras formas de vida, às outras formas de amar, de se relacionar, um olhar comunitário. Acho muito importante esse viés não individualista. Ainda que a gente não rompa com um mundo capitalista de todo, trazer a percepção de que o meu bem não está completo se não faz bem pra você também é defender os ganhos coletivos.

  • G |Como se deu a escolhas das pessoas que compõem as mesas?

    LCB |

    A todo momento nós estivemos preocupadas em colocar representantes dos povos indígenas, da comunidade LGBTQIA+, que pode ser branca, pode ser indígena, pode ser negra. E essas representações diversas que atuam nos direitos de defesa de liberdade sexual, nos direitos reprodutivos, na arte. Pessoas negras estão presentes, há uma diversidade etária também, uma predominância de mulheres e isso é de propósito. Foram as pessoas que não escreveram os compêndios, os cânones da história oficial, os poemas, as cartas que definiriam o que seria o Brasil. E dessa forma a gente relê o passado com essas pessoas, escuta o que elas têm a trazer do passado. É, por exemplo, uma pessoa de herança quilombola como [o escritor] Nêgo Bispo trazer propostas de Brasil que se sustentem para o Futuro, ou Thiffany Odara, que é uma mulher negra, baiana, travesti e mãe de santo [ambos estão na programação Tenda Paraguaçu].

  • G |Há uma mesa que traz o tema das vozes femininas. Você poderia falar sobre o espaço das mulheres nas bases da construção de uma nação?

    LCB |

    A gente tem uma história oficial e as narrativas literárias e poéticas sobre o Brasil muito centradas no militar, no político e no masculino, numa postura heróica, aventureira, heteronormativa. Dentro disso, no sentido de conquista e de domínio, há também quase que a legitimação da violência contra mulheres negras, indígenas, mulheres pobres ao longo desse processo histórico. Então o olhar de mulheres de diferentes idades e segmentos sociais nessas mesas também tem o objetivo de conferir lastro histórico, literário, poético e artístico a elas. Há artistas visuais trazendo alternativas a essa representação de Brasil que passam pelo feminino e que tem outras formas de guerra e de luta. Em nenhum dessas mesas a centralidade do debate está na maternidade, por exemplo. Elas estão falando de guerra, de luta, de resistência, de amor, de erotismo. No caso das mães de santo, elas vão falar de outras maternidades, que não é a da gestação, são outras relações de maternidade de afeto.

  • G |Como você definiria o momento que a gente vive hoje no mercado editorial brasileiro pensando em diversidade?

    LCB |

    Durante a montagem das mesas recebemos muitas mensagens de pessoas querendo lançar livros. Gente que está produzindo poesia, conto, literatura. Então o mercado editorial até pouco tempo não refletia essa diversidade de pessoas, mas hoje eu acho que nós vencemos. No sentido de que as pessoas estão dispostas, mesmo que financiem suas obras, elas querem escrever. E hoje não tem o domínio de uma ou duas editoras, nós temos diversas, muitas editoras pequenas. Temos um avanço muito grande porque finalmente pessoas das mais diversas estão no mercado editorial. A despeito da disparidade regional em relação ao acesso e às oportunidades de publicação, gente do Brasil inteiro está publicando. Acho que nós vencemos nesse sentido, independentemente de Academia Brasileira de Letras ou das grandes editoras, as pessoas se veem legitimadas a escrever o que elas estão pensando. Os estudantes de ensino médio de escolas públicas e fundamental transitam pela Flica e hoje sabem que o que escrevem pode ser um material interessante para se tornar público. Apesar de todo o retrocesso que tivemos, a imaginação, o sonho, a fantasia muito particular do povo brasileiro na sua universalidade continuou e floresce. O que falta é oportunidade de publicar, mas estão correndo atrás, estão batendo na porta.

  • G |Você está lançando um livro na Flica sobre uma relação surpreendente entre o Brasil e os Estados Unidos no tema da escravidão e do abolicionismo durante o final do século 19. Como chegou a esse tema?

    LCB |

    Essa minha pesquisa surgiu em 2004, quando eu fui para os Estados Unidos como pesquisadora. Descobri que o New York Times e o Washington Post estavam publicando quase que diariamente coisas sobre a escravidão no Brasil durante o período escravista, sobretudo depois que eles próprios aboliram a escravidão depois da Guerra Civil, em 1864. A gente tem muito a ideia de que os Estados Unidos inspiraram toda a diáspora negra, mas no século 19 não era só assim. Eles estavam buscando experiências escravistas em todas as Américas para construirem uma ideia do que seriam enquanto nação. E o Brasil teve um papel fundamental nesse sentido porque era uma grande nação escravista e havia uma compreensão dos estadunidenses, dos cientistas, dos viajantes, dos defensores da escravidão de que se quisessem conhecer os africanos e a diversidade desses povos teriam que vir para o Brasil. Porque aqui o tráfico abarcou gente de locais completamente diferentes e aqui eles poderiam ver essa concentração de pessoas e os efeitos da mistura racial. E os abolicionistas negros ouviam essa notícias de que o Brasil era mestiço, que tinha negro que vivia como branco, e pensavam “se tem relação interracial então o Brasil é menos racista”. Aí eu voltei para os Estados Unidos em 2011 durante o doutorado para terminar essa pesquisa e o livro é resultado disso.

Este conteúdo é parte da série “Gama na Flica 2023”, produzida com apoio do Governo do Estado da Bahia e das secretarias de Educação e Cultura, realizadores da Feira Literária Internacional de Cachoeira (BA)

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