A nova galeria de Yayoi Kusama no Inhotim
Cercada de mistério, a popular artista japonesa inaugura no museu um labirinto de luzes e reflexos e uma sala pontilhada por bolinhas
Desde domingo (16), os visitantes podem adentrar o recém-inaugurado jardim de bromélias localizado perto do centro do Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG). Por lá, sob a sombra entrecortadada das telas de lona que compõem o “teto” do jardim, largos espaços de concreto e bancos de madeira já estão a postos para acomodar as filas que costumam acompanhar qualquer exposição da artista japonesa Yayoi Kusama.
Após enfrentar constantes adiamentos pela pandemia, o maior museu a céu aberto do mundo finalmente inaugura o pavilhão que contém as obras “I’m Here But Nothing” (2000) e “Aftermath of Obliteration of Eternity” (2009), adquiridas respectivamente em 2008 e 2009. As duas instalações chegam para se juntar a “Narcissus Garden” (1966), em que Kusama reuniu 750 esferas de aço flutuando num espelho d’água e que está desde 2009 sobre o terraço do Centro de Educação e Cultura Burle Marx, dentro do Inhotim.
Assim como quase toda a obra da artista de 94 anos, as instalações se compõem dos mesmos padrões repetitivos que marcam sua trajetória. A tendência se iniciou já nos primeiros desenhos que Kusama fez na infância vivida nas décadas de 1930 e 1940, quando começou a sofrer alucinações nas quais sua visão era tomada por pontos e círculos — as bolinhas pelas quais a artista hoje é mais popularmente conhecida.
Kusama é uma artista única por viver em sua própria mente
Em “Aftermath of Obliteration of Eternity” (o resultado da obliteração da eternidade), realizado em seu aniversário de 80 anos, ela apresenta um de seus mais conhecidos “infinity rooms” — quartos em que a artista cria a ilusão de um labirinto infinito de luzes e reflexos, numa série iniciada nos anos 1960. Inspirada pela cerimônia japonesa Toro Nagashi, em que lanternas de papel são soltas sobre um curso d’água, ela cria uma experiência dentro da qual o visitante tem a impressão de desaparecer, mesclando-se com o infinito ao redor. A sensação traduz o conceito de auto-obliteração desenvolvido por Kusama, em que a individualidade se dissolve e torna-se uma só com o universo.
Já em “I’m Here, But Nothing” (estou aqui, mas nada), num ambiente doméstico aparentemente comum, objetos caseiros como sofás, cadeiras, quadros e uma TV com a imagem da artista, sem falar no chão e no teto, são pontilhados por bolinhas multicoloridas. Iluminada por uma luz negra, a sala cintila de cores, gerando um choque: de um lado, a familiaridade da atmosfera caseira; do outro, uma impressão de vazio e dissolução causada pelas formas e padrões repetitivos. Apesar da origem japonesa da artista, a sala é toda ocupada por mobiliário tradicionalmente mineiro, da cadeira de balanço aos aparadores.
I’m Here. But Nothing Foto: Daniel Mansur
Bolinhas valiosas
Percorrendo telas, performances corporais e instalações imersivas, Kusama passou por momentos bastante diferentes ao longo de sua trajetória. Chegou a ter sua própria e ousada marca de moda nos anos 1960, com modelitos que deixavam seios e genitais ao relento. Em 2012, abraçou mais uma vez esse universo numa colaboração com a francesa Louis Vuitton, que recobriu de bolinhas, entre outras peças, as tradicionais — e caríssimas — bolsas da marca. A artista retomou mais recentemente a parceria, com instalações em três continentes, numa coleção que desta vez inclui bolsas, carteiras e sapatos.
Apesar da enorme popularidade, sua figura reclusa segue sendo um enigma. “Sabemos todos os mistérios que envolvem Kusama, sua vida e obra”, admite Júlia Rebouças, diretora artística do Inhotim. É de conhecimento público que a artista vive e trabalha até hoje num hospital psiquiátrico onde se internou voluntariamente nos anos 1970. Ainda assim, seu estúdio acompanhou de perto todo o projeto da galeria. “Não sabemos o quanto ela de fato atuava, mas, da identidade visual à arquitetura, tudo teve uma conversa muito estreita com o estúdio e as galerias que a representam”, diz Rebouças.
A galeria deve ser um espaço em constante transformação, seguindo os fluxos da natureza e se alterando a cada visita
No amplo espaço em frente à fachada, as duas obras são ocultas por um grande muro de metal de aparência enferrujada. Como parte do projeto paisagístico, a equipe vem cultivando mudas de congeia (Congea tormentosa), trepadeira de origem asiática que, em alguns anos, deve substituir totalmente a cobertura de telas. A ideia, dizem os arquitetos Maria Paz e Fernando Maculan, é que a sombra da planta sirva, além de ambiente de espera, como um espaço de transição entre o restante do Inhotim e a galeria onde ficam as instalações de Kusama.
Mas não há pressa alguma na metamorfose em cobertura vegetal, cuja conclusão está prevista para no máximo daqui a cinco anos. “A galeria deve ser um espaço em constante transformação, seguindo os fluxos da natureza e se alterando a cada visita, oferecendo novas surpresas”, afirma Maculan. De acordo com o estágio de floração, a congeia também vai variando entre tons de branco, rosa, lilás e cinza, refletindo o multicolorido de parte da obra de Kusama.
Fachada da Galeria Yayoi Kusama Foto: Ícaro Moreno
No entanto, aos visitantes ansiosos, um aviso: a entrada nas instalações deve acontecer de forma bem limitada. Enquanto no labirinto de espelhos o ideal é permanecer apenas uma pessoa por vez ao longo de um minuto, no ambiente doméstico serão liberadas de oito a dez visitantes, por no máximo três — limite de tempo para não haver um excesso de exposição à luz negra. Devido à alta demanda, os visitantes também precisam pegar senhas e acessar as obras ao longo do dia, evitando assim formar filas quilométricas.
Caso repita a resposta que a exposição “Obsessão Infinita” de Kusama teve em sua passagem pelo Brasil lá em 2014 — que, com o perdão da referência, virou uma verdadeira e talvez infinita obsessão —, em breve as redes também devem ser tomadas por uma enxurrada de fotos e selfies das instalações. Sobre o potencial “Instagramável” da artista, o cofundador do Inhotim, Allan Schwartzman, considera uma amostra da capacidade de comunicação de sua obra com as gerações mais jovens.
“Quinze anos atrás, as filas não existiam, eram três ou quatro pessoas. Agora, pelo menos em Nova York, elas dobram esquinas”, afirma Schwartzman. “Kusama é uma artista única por viver em sua própria mente. A ideia de que seu trabalho consegue se comunicar, atingindo um público tão grande, é realmente uma coisa especial.”
*Gama visitou a nova galeria de Yayoi Kusama a convite do Inhotim