Fernando Luna
Eles te fodem, teus queridos pais
Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre “Succession”, pais e filhos; espreguiçadeiras, meia-idade e festivais de música; Rita Lee, avós e vibradores; e vírus, polícia e ladrão
Eles te fodem, teus queridos pais. É sem querer, só que a verdade é esta
Philip Larkin, 1971, Antologia Profética
Acabou “Succession” e ainda me embaralho com os “s” e os “c” do título.
Se você ainda não viu o último episódio, duas recomendações importantes.
1) Vai ver. Agora.
É daqueles raros desfechos televisivos em que o fim não apenas justifica, como engrandece os meios – a série fica ainda melhor em retrospecto, ao contrário daquelas arruinadas por finais desastrados, como “Lost” e “Game of Thrones”.
2) Pare de ler. Agora.
Spoilers adiante, adie esse texto. A não ser que você, como eu, não ligue pra spoilers. Mais importante que o arremate em si é como se chega lá. “Memórias Póstumas de Brás Cubas” já entrega na capa que o protagonista morreu, e daí?
É um caso parecido. Logan Roy, figura meio Rupert Murdoch, meio Deus do Antigo Testamento, abotoou o paletó de madeira bespoke logo no início dessa quarta e derradeira temporada. Mas não foi um encerramento precipitado.
Serviu pra deixar claro que a trama nunca girou em torno de empresas de mídia, jatinhos ou bonés Loro Piana. O que dava audiência era a capacidade do magnata deixar seus filhos igualmente mimados, porém cada um infeliz à sua maneira.
Dos créditos de abertura – com fotos de infância das personagens – até a última cena – Kendall derrotado, com o ex-segurança do pai às suas costas como uma projeção da figura paterna –, são 40 horas de entretenimento que só Freud explica.
A sucessão não é, afinal, sobre quem fica na cadeira de CEO da Waystar Royco. É sobre o ódio e o amor que serão sua herança, o legado daquela miséria emocional – um espólio ainda mais rico em traumas do que em dinheiro.
Numa sessão de terapia familiar, logo na temporada de estreia, um psicólogo cita o que chamou de “uma pequena oração”.
A tal prece é a primeira das três estrofes do poema “Seja Este o Verso”, de Philip Larkin: “Eles te fodem, teus queridos pais./ É sem querer, só que a verdade é esta –/ te enchem das culpas que tiveram mais/ e dão, só pra você, uma dose extra”.
O inglês termina com uma proposta. Pare aqui se não quiser spoiler: “Nunca ponha filhos neste mundo”.
Toda segunda, o jornalista Fernando Luna (@fluna) apresenta sua “Antologia Profética”, com versos desgraçadamente atuais.
Vai vir o tempo em que você, orgulhoso, vai saudar a si mesmo
Derek Walcott, 1976
Costuma levar tempo até que você seja capaz de, orgulhoso, “saudar a si mesmo”.
O caribenho Derek Walcott tava perto dos 50 anos quando publicou o poema “Amor depois do amor”, em “Sea Grapes”. Já tinha idade suficiente pra conseguir se cumprimentar calorosamente – com todas suas manhas e manias.
Inclusive aquelas mais manhosas e maníacas, que inevitavelmente se acumulam com a madureza.
Nesse final de semana, saudei a mim mesmo e às minhas idiossincrasias protogeriátricas, enquanto me dirigia ressabiado a um festival de música – antecipando os inevitáveis perrengues juvenis desse tipo de evento.
Surpresa: não era preciso organizar uma expedição entre um palco e outro, atravessando multidões. Tudo ficava razoavelmente próximo e a lotação respeitava os limites físicos do espaço disponível.
Tinha até lugar pra sentar. Mais que isso, havia espreguiçadeiras. Muito mais que isso: um patrocinador distribuia cobertores, pra enfrentar o frio de outono com galhardia.
As apresentações não apenas começaram cedo, como terminaram cedo – antes das onze da noite, já tava todo mundo de alma lavada com amaciante e secando à sombra da derradeira e arrebatadora performance de Jon Batiste.
(Um São João Batista anunciando com três décadas de atraso a chegada do salvador, que também vi cantar, dançar, tocar guitarra, piano e arrebatar uma outra plateia: Prince, no Maracanã.)
A bebida era ótima, o que é excelente – dado que não sofro mais de ressaca, substituída por uma combinação de chikungunya com espinhela-caída. Tomei três ou quatro rabos de galo e cá estou.
(“Rabo de galo”, tradução literal de “cocktail”, sumiu dos botecos. Outro dia, parei em três botequins entre a Praça XV e a Praça Mauá, no centro do Rio, e nenhum misturava cachaça com vermute. Bares hipsters tão pro drinque como o Zoo de Berlim, pros pandas – uma consolação diante do desaparecimento de seu habitat natural.)
Deixo uma modesta contribuição pra eventual segunda edição da folgança: uma tenda pra medir a pressão arterial, porque o nigerense Mdou Moctar fez o sangue correr mais rápido.
Não quero luxo nem lixo/quero saúde pra gozar no final
Rita Lee, 1980
Semana passada muita gente se espantou ao descobrir que as mães gozam.
Foram mais de 20 mil comentários num post da Mina Bem-Estar. Boa parte deles, mais que indignados, revoltados com a ideia de que mães e, oh!, vibradores podem formar uma boa dupla.
A valorosa brigada do óbvio, sempre necessária no Brasil, se mobilizou pra lembrar aos negacionistas do desejo: sexo é uma coisa tão normal que até sua mãe faz.
Na pior das hipóteses, fez pelo menos uma vez – ou você não estaria aqui.
Mas espero, sinceramente, que não tenha sido um impulso reprodutivo isolado, porque a coisa toda, ninguém há de negar, tem potencial pra ser bem mais divertida.
Então afivelem os cintos de castidade pra não cair do banco da igreja, pois digo mais: as avós também gozam.
Falo como neto da saudosa vó Geralda. Nascida no conservador interior do Rio de Janeiro, foi pra capital constituir família, como se dizia – deu tão certo que comemoraria até bodas de ouro, festejadas no tradicional Clube da Aeronáutica, ali pertinho do aeroporto Santos Dumont.
Gegé casou, teve três filhos, oito netos e um vibrador.
Mas esse detalhe, nem tão pequeno assim, garanto, só descobri depois que ela morreu.
Em meio à tristeza que foi desmontar o apartamento onde morei por oito anos com ela – e com meu igualmente saudoso avô, que uns anos antes já havia trocado o vôlei no Posto 10 pelo sossego do cemitério São João Batista –, tinha um sorriso guardado num canto discreto do armário.
Entre roupas e bugigangas, uma caixa comprida de papelão estampava seu conteúdo, evitando qualquer mal-entendido: “Massageador”. As ilustrações da embalagem mostravam uma jovem senhora pressionando o vibrante objeto cilíndrico contra as próprias costas, aliviando a tensão muscular.
Entendi que minha avó falava sério quando disse, do alto de seus 82 anos, depois de duas isquemias e já enfrentando o câncer que viria a ser fatal: “Sabe que a vontade não passa nunca?”.
Um salve pra ela, pra Rita Lee e pra todas que encaram o machismo e o etarismo com a tal vontade e com “saúde pra gozar no final”.
Eu que morri estou vivo de novo
e. e. cummings, 1950
A gente já desconfiava, mas como foi bom ouvir da boca da Organização Mundial da Saúde: acabou.
Acabou a emergência de saúde internacional, mas, o diabo mora nos detalhes, não a pandemia – semana retrasada, essa desgraça ainda teve a pachorra de contaminar 630 mil pessoas e provocar 3,5 mil mortes mundo afora.
(A vacina bivalente taí pra isso.)
Foram 7 milhões de mortos em três anos – botando na conta a subnotificação, especialistas falam em 20 milhões de mortes. O Brasil, mesmo com apenas 3% da população mundial, teve 10% das vítimas fatais. Essa desproporção assassina tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro.
A gente também já desconfiava, mas como foi bom ver a Polícia Federal se mexer de novo: acabou.
Acabou a inanição provocada pelo aparelhamento da PF, que, ao lado da cooptação de todos os órgãos de fiscalização, deixou o pior presidente da história da república livre pra fazer tudo o que fez por quatro anos.
(Ele só não imaginava perder a eleição e a blindagem jurídica.)
Foram incontáveis demonstrações de incompetência e picaretagem durante seu mandato – e, pra ser justo, também antes e depois de sua estadia no Palácio da Alvorada. Tudo isso começa a ser investigado com a prisão de seu ex-ajudante de ordens, o tenente-coronel Mauro Cid, por fraudar o cartão de vacina do chefe.
Agora acabou.
“Agora os ouvidos dos meus ouvidos despertam e agora os olhos dos meus olhos estão abertos”, como escreveu e. e. cummings no poema “eu agradeço a Deus por mais este espantoso dia”, publicado no livro “XAIPE” – sim, o norte-americano usava de modo peculiar maiúsculas e minúsculas.
Em vez de simplesmente virar a página, é hora de quem morreu e está vivo de novo decifrar as letras miúdas.
Não apenas lembrar das covas abertas às pressas, das unidades de terapia intensiva abarrotadas, dos hospitais de campanha, do cinecatástrofe das ruas desertas, do medo e da solidão, das vacinas sabotadas, do distanciamento social e máscaras negligenciados, das fake news, da cloroquina, mas, acima de tudo, julgar quem preferiu o vírus à vida.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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