Fernando Luna
Quem não se contradiz não diz
Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre as abuelas argentinas e as vovós brasileiras, o sebastianismo de resultados, um torcedor de Schrödinger e a sala VIP da Viação Cometa
Quem não se contradiz não diz/ radicalmente sério só o cemitério
Sebastião Uchoa Leite, 1979
Não senti inveja do título da Argentina.
Tive inveja foi das “abuelas”, vovós enroladas na bandeira pra festejar na rua o futebol vibrante dos hermanos. Por aqui, as senhorinhas se cobrem com símbolos nacionais pra pedir intervenção militar.
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Mas o Brasil marcou presença na final.
Esteve na boca dos torcedores argentinos, cantando “porque en el Maracaná/ La final con los Brazucas la volvió a ganar papá”, como se o Lusail fosse o Monumental de Núñez.
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Antes do jogo, tava torcendo pro Messi ser campeão e pra Argentina perder – não aceitava “La Pulga” se aposentar sem esse título, nem torcer pro maior rival da seleção brasileira.
Contradição? Sou do time do pernambucano Sebastião Uchoa Leite, que anotou em sua “Antilogia”: “Quem não se contradiz não diz. Radicalmente sério só o cemitério”.
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Porém, diante da impossibilidade do meu desejo, acabei me rendendo. Quase caí do sofá com o golaço do Di Maria.
Aí o 2 a 0 começou a parecer uma despedida injusta pros franceses. Virei casaca e coloquei as artérias à prova, quando Mbappé fez 2 gols em 2 minutos.
Na prorrogação, deixei a vida me levar e torci um tempo pra cada time.
Queria mesmo é que o jogo não acabasse nunca – de certo modo, não acabou mesmo. Vamos sempre lembrar dessa final espetacular.
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Com “la mano de Dios”, Maradona mostrou em 1986 que um gesto pode ser sublime e ridículo ao mesmo tempo. Com a mão-prótese-peniana, o goleiro Martínez mostrou ontem que se vai do sublime ao ridículo num gesto.
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Fim de jogo, saio de casa pra almoçar.
Surpresa: trânsito parado, carreata com buzinaço e música alta. Quanto desprendimento, pensei, essa brasileirada eufórica com a Argentina.
Era apenas a comunidade judaica aqui do bairro celebrando o Chanucá, candelabros de nove velas cenográficos instalados no teto dos carros, como táxis pra salvação.
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Do bairro da Consolação ao prêmio de consolação: Neymar quebrou pelo menos um recorde nessa Copa.
Seu tuíte de parabéns pro Messi foi curtido mais de 2,4 milhões de vezes. Um desempenho incontestavelmente superior ao de 2018.
Onde houver um sonho para ser sonhado está meu coração
Carlos de Oliveira, 1945
Nossa bandeira não apenas será vermelha, como vermelha com uma estrela no meio: vai, Marrocos.
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Após despachar Espanha e Portugal, fregueses ibéricos dos séculos VIII ao XV, os mouros encaram a França na primeira semifinal decolonial da história.
Os subalternizados serão exaltados? Viva Edward Said, Hakimi e o poeta português Carlos de Oliveira: “Onde houver um sonho para ser sonhado está meu coração”.
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Ah, agora temos que torcer pelos hermanos argentinos. Sou apenas um rapaz latino-americano, mas não consigo. Justamente por isso não consigo.
Nas palavras de David Hume no “Tratado da Natureza Humana”, “não é uma grande desproporção entre nós mesmos e os outros que produz a inveja, mas, ao contrário, uma proximidade”. Argentina é vizinha demais do Brasil.
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O menino Ney abraçando o menino croata após a derrota pra Croácia quase me fez sentir simpatia pelo craque brasileiro. Felizmente Daniel Alves se apressou em interromper a cena.
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Francamente, nem deu nem pra ficar triste com a desclassificação.
Pra ficar triste teria sido preciso ficar feliz antes. O máximo que consegui foi um entusiasmo fugaz com o segundo gol na Sérvia e o primeiro tempo contra a Coréia do Sul. Mas passou.
Nada que se compare à desolação com a derrota do time de Zico, Leandro e Júnior pra Itália em 1982, a Tragédia do Sarriá. Ninguém sofre mais com futebol que uma criança de 11 anos.
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Neymar, Vinícius Júnior, Paquetá e Raphinha não ganharam nem a “Dança dos Famosos” no Catar.
O vencedor dessa disputa foi o camisa 17 da seleção do Marrocos. Boufal festejou a vitória sobre os portugueses dançando com a mãe no gramado – um hijab gingando no Al Thumama, um dervixe girando na Copa.
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O Natal chegou no instante exato da eliminação brasileira.
Imediatamente brotaram reportagens sobre a rua 25 de Março lotada, Papai Noel substituiu jogadores nos comerciais de tevê, o “Quebra-Nozes” entrou em cartaz e meu amigo Quinho me desejou um ótimo final de ano.
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Do hexa sobrou o ex: faltam 19 dias pro ex-presidente voltar. Sebastianismo de resultados é isso aí.
As coisas que não levam a nada têm grande importância
Manoel de Barros, 1974
Como um torcedor de Schrödinger, tô eufórico e arrasado ao mesmo tempo.
Agora, enquanto escrevo, ainda não sei o resultado de Brasil e Coréia do Sul. Mas agora, o agora de quando você lê, já conheço o resultado da peleja.
Sim, queria não ligar pra 22 marmanjos obscenamente remunerados correndo atrás de uma bola, mas não consigo: “As coisas que não levam a nada têm grande importância”, ensina Manoel de Barros em “Matéria de Poesia”.
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As transmissões dos jogos deviam começar com um alerta: “Contém imagens capazes de afetar pessoas que sofram de fotossensibilidade”. O clareamento de dentes dos craques pode causar convulsões nos espectadores. Em televisores 4k, o risco de morte é real.
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A torcida do Senegal no Al Bayt foi um tratado sobre a condição humana, cantando e dançando mesmo perdendo de 3 a zero.
“Uma excepcional animação e alegria de viver, junto a um sentido agudo do desastre e da catástrofe iminente”, como escreveu um filósofo francês no final dos anos 1980. Detalhe: ele falava do Brasil.
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Tento ser uma pessoa melhor, mas a Alemanha não deixa. Festejei sua segunda desclassificação seguida ainda na fase de grupos. O 7 a 1 encorpou o sentido de “Schadenfreude”.
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Sites de apostas em todos os intervalos comerciais.
É bet isso, bet aquilo, driblando a legislação brasileira, que proíbe a jogatina em endereços físicos por todo território nacional – enquanto libera geral no mundo virtual.
Saudade do espaço publicitário dominado por atividades mais inocentes, como venda de álcool em escala industrial e serviços bancários a juros extorsivos.
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O amor se impõe mesmo com a proibição das braçadeiras “One Love”.
Mbappé enganchado em Giroud, olhos nos olhos após o primeiro gol contra a Polônia, é a nova masculinidade em Doha. E Henderson e Bellingham são dois machos desconstruídos, comemorando o gol com um beijo de esquimó, nariz roçando nariz.
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O mundo funcionava melhor quando “Filé de Ouro” era apenas uma metáfora simpática, batizando restaurantes tradicionais onde garçons cortam bifes com colher.
Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar
Antonio Machado, 1912
É só o Lula ser eleito que o aeroporto vira uma rodoviária. Não, pera: tô numa rodoviária mesmo.
As coisas mudaram por aqui.
Passo pela sala VIP da Viação Cometa. Ai de mim, desgraçado e mísero, não sou VIP nem no Terminal Rodoviário Tietê, então fico zanzando pelos corredores até o horário do meu ônibus pra Parati.
Logo fica claro que o aeroporto precisa melhorar muito pra ser confundido com uma rodoviária.
Se Congonhas e Santos Dumont são como o campo defensivo da seleção suíça, sempre com gente demais e espaço de menos, por aqui todo mundo circula sem precisar abrir caminho com o cotovelo nem desviar de um quiosque atrás do outro.
E ainda consigo compreender cada fonema que sai dos alto-falantes.
Nos dois lados da ponte-aérea, sempre fico com a sensação de que o Espírito Santo se derramou sobre o pessoal de terra, e todos começaram a falar em línguas – o português parece inglês, o inglês parece aramaico.
Além disso, ninguém repete 17 vezes a “última chamada” pro busão. Basta um aviso e, incrível, todos se dirigem à plataforma de embarque. Afinal, viemos justamente embarcar e seria muita distração esquecer disso 17 vezes.
No embarque, mais uma lição de humildade pros aeroportos: o ônibus não se limita a levar os passageiros até o avião, isso é pra amadores, ele leva a turma toda logo pro seu destino.
E as poltronas? Diante dos assentos da ponte-aérea, meu semi leito parece a primeira classe da Emirates Airlines. Com um bônus: viajei com uma cortininha mantendo a privacidade entre meu vizinho de fileira e eu.
A viagem, aliás, só foi interrompida pra confirmar a glória rodoviária.
O ônibus quebrou quando começamos a descer a Tamoios. Mas, diferentemente do avião, quando dá pane você não morre.
Em vez de morrer, que arruinaria meu passeio e me impediria de ver Annie Ernaux na Flip, fui comer um pastel e tomar Guaranita num posto de gasolina, enquanto esperava pelo próximo ônibus.
Afinal, “o caminho se faz ao andar”, como escreveu o sevilhano Antonio Machado, em seu “Campos de Castela”.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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