Vanessa Rozan
A Janja ideal ou a fixação pela bela, recatada e do lar
A construção da ideia de mulheres como seres inferiores foi feita tijolo a tijolo por pensadores homens responsáveis por delinearem a sociedade como a conhecemos hoje
O Caderno Feminino do Correio da Manhã em uma série de reportagens chamadas Noivas de Maio, dava 18 lições de como esposas deveriam se portar. Uma das lições era “saiba dizer com bom humor: eu é que não tenho a razão”. É isso, você não leu errado. Eu é que não tenho a razão, e ainda com bom humor. A matéria é de 1962 e se quiser aprofundar na gênese dessa escola de jornalismo feminino, sugiro o livro “Pedagogias da Beleza” (Edufu), de Renata Neiva.
Bem antes de 62, a construção da ideia de mulheres como seres inferiores e recipientes do caos foi feita tijolo a tijolo com bastante afinco por pensadores homens responsáveis por delinearem a sociedade civil como conhecemos hoje. Eles não inventaram a inferioridade feminina, eles tentaram – com toda sorte de argumento – comprová-la como uma disposição natural. Desprovidas de razão, descontroladas, regidas por afetos e emoções, incapazes de teoria, de princípios e de abstração, “as mulheres são o contrário da legislação civil; elas representam tudo que os homens têm que dominar para que possam dar origem à sociedade civil”, articula Carole Pateman em “O Contrato Sexual” (Paz & Terra). Eu sei, não tá caminhando bem esse texto, já vou chegar no ponto da primeira-dama, segura meu drink.
É preciso que cada vez mais ocupemos todos os lugares da forma como quisermos
Como seres de segunda categoria, recebemos instruções de como deve ser nossa conduta para ter ingresso à civilização, “uma esposa brilhante é uma praga para o seu marido, seus filhos, amigos, criados todo mundo. (…) fora de sua casa ela é sempre ridicularizada”, essa era a opinião de Rousseau, entre outras ideias misóginas que reforçaram o mesmo rolê. Aliás, corta para 2022, cês viram o chá revelação da nova noiva do filho do Julio Iglesias? A moça aparece coberta num pano estampado com um smiley face. Semiótica me ajuda aqui, uma carinha sorrindo, SORRINDO. Daí ele remove o pano brilhante e apresenta sua noiva como quem mostra o veículo do ano. Aguardamos a revelação do modelo 2024 para entender as melhorias de design e motor.
Volto a conectar no primeiro assunto, se somos seres de baixa razão e moral, o que nos resta como chance para performar no patriarcado, que valor temos? Ponto para quem disse ‘corpo’, assim como a modelo-noiva da vez é revelada embaixo do pano ou como somos colocadas em imagens que servem para vender qualquer coisa – de cigarros a margarina. Mas eu não vou falar disso não, vamos explorar o lugar da esposa. Hoje eu quero falar da esposa número 1 da nação, a primeira-dama. A esposa perfeita, o exemplo de mulher que vai ocupar com discrição seu lugar, sem jamais ofuscar o brilho da razão do seu boy.
Pois olha que curiosidade, a futura primeira-dama foi criticada por uma jornalista da Globo News. Disse haver um incômodo com o excesso de espaço que Janja vem ocupando. Agora vem o sarcasmo, ok? A gente devia botar a Janja embaixo de um pano, revelar ela no dia 1 de janeiro de 2023, vesti-la com máximo de recato e beleza discreta, ensiná-la a não se meter com política e cuidar do que ela tem pra fazer como boa esposa: tratar do marido e tocar um trabalho social. Deixar essas mazelas aos cuidados dos homens e não aborrecê-los. Nem eles e nem ninguém. Afinal, ela não leu o manual do Correio da Manhã de 1962 que também dizia “não dê palpites em conselhos quando seu marido estiver dirigindo o carro dele”. Nem dirigindo o carro nem o Brasil.
Vida longa à futura primeira-dama, que ela possa ocupar todos os espaços que não foram desenhados para ela
Agora sério, sem ironia. É preciso que cada vez mais ocupemos todos os lugares da forma como quisermos. Que não determinem quais são comportamentos aceitáveis e quais são aqueles em excesso. Que usemos da nossa razão com toda a força para mudar tudo que gostaríamos de ver diferente nessa sociedade. Um salve aqui à live dessa semana da Maria Christina Mendes Caldeira, ex do Costa Neto [presidente do PL, partido de Jair Bolsonaro], botando seu conhecimento e razão a serviço da manutenção da democracia.
Afinal, melhor que esposa perfeita é a força de uma ex-mulher. Ela já não precisa caber em mais nada do que determinam de recato, silêncio e virtuose, nem aceitar anos de abusos e submissão. Essa é a virada que eu quero ver, uma resposta à altura da opressão viriarcal que sempre prescreveu que o esposo seria a “cabeça da mulher” e que as esposas deveriam se sujeitar aos maridos. Pois 1962 passou, e a gente não vai voltar pra lá. Mesmo com a ofensiva da extrema direita, e o perigo de perdemos tantos direitos adquiridos nesse campo.
Vale colocar aqui o exemplo do que aconteceu em 2017 (ou seja, ontem) na Rússia, onde, na época, foi ratificada a lei de violência doméstica, permitindo que o marido possa bater uma vez ao ano na esposa, sendo que as agressões que causam dor física, mas não lesões, e deixam hematomas, arranhões e ferimentos superficiais na vítima não serão consideradas um crime, mas uma falta administrativa. Lei criada por sugestão de quatro mulheres, durma com essa. Mulheres que estão fechadas com essa lógica patriarcal tem aos montes, elas foram bem ensinadas sobre o lugar da boa esposa, sobre o Caderno Feminino e todas as suas regras que elas devem seguir para ter um espaço concedido pelos homens, protegidas de sua violência.
Vida longa à futura primeira-dama, que ela possa ocupar todos os espaços que não foram desenhados para ela, para que as próximas e para que todas as mulheres rompam com a delimitação de suas vidas. Espero de coração que ela só decepcione o manual da boa esposa de 62.
Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.
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