Como ler Lima Barreto hoje
Conhecer a obra do escritor carioca, morto há cem anos, é discutir racismo e desigualdades que continuam atuais
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Comece pelo seu gênero literário favorito: ele escreveu de tudo –
Quando morreu, em 1º de novembro de 1922, com apenas 41 anos, Lima Barreto deixou uma obra inacabada mas vasta, que passeia por conto, romance, crônica, diário. “A modernidade da obra de Lima Barreto está justamente no fato de que ele testa todos os gêneros narrativos. Então, cada leitor pode experimentar o gênero que lhe toca mais ao coração”, diz a historiadora Lilia Schwarcz, autora da biografia “Lima Barreto – Triste Visionário”. Para ela, o autor do romance “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” desenvolveu uma forma muito revolucionária de entender a literatura exatamente mostrando a importância de borrar os limites dos gêneros. Organizador de um seminário sobre o autor, o professor Jorge Augusto de Jesus Silva, da Universidade Federal da Bahia, diz que não há roteiro para conhecer a obra de Lima Barreto e o novo leitor ou leitora pode escolher. “Aquela que está querendo uma leitura que pese mais no riso, poderá começar por ‘Os Bruzundangas’, aquela que estiver a fim de ler algo mais tenso começará por ‘Recordações do Escrivão Isaias Caminha’, seja por onde começar encontrará o riso, a crítica social, o repertório cultural negro, a crítica ao projeto de nação então vigente e, nesses e em outros temas, haverá sempre o atravessamento estruturante da raça.” -
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Conheça o que ele fez de autoficção, afinal foi um pioneiro –
Muito antes dos relatos autobiográficos se tornarem esse gênero literário celebrado e premiado no mundo todo, ele já era praticado pelo escritor carioca. Mas ao contrário dos seus pares de hoje, Lima Barreto foi julgado e criticado por isso. Boa parte desses escritos só foi publicada após sua morte pelo primeiro biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, já nos anos 1950, como os reunidos em “Diário Íntimo” e “Diário do Hospício”, que registra o período que o escritor passou enclausurado no Hospício Nacional de Alienados, para onde eram recolhidos bêbados, “loucos” e mulheres consideradas histéricas. “Lima registrou em pequenos cadernos coisas que ouviu, constrangimentos que sofreu, indignação com a vida em torno dele, profunda mágoa frente à adversidade do racismo que teve de enfrentar, insurreição com a pobreza, com a discriminação”, afirma a professora da PUC-RJ, Eneida Leal Cunha, autora de diversos artigos sobre o escritor. Entre os críticos de Lima Barreto na época estava Sérgio Buarque de Holanda. O autor de “Raízes do Brasil”, afirmou que o carioca “se confessava demais” e que era um escritor sem imaginação por se pautar demais na própria vida, como lembra Lilia Schwarcz. “Hoje, ao contrário, há toda uma literatura contemporânea de claro cunho autobiográfico que Lima Barreto anunciava no início do século 20.” -
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Não negligencie seus diários e reflita sobre o racismo estrutural –
Há uma passagem no “Diário Íntimo” em que Lima Barreto narra a ida a uma recepção na Embaixada do Chile em que ele foi o único para quem pediram a identidade. Segundo Lilia Schwarcz, a obra do escritor está repleta de episódios como esse, que escancaram o racismo no país da primeira República, mas que poderiam perfeitamente ser escritos hoje. “É um autor muito importante de ler hoje porque no início do século 20 já se definia um escritor negro e que fazia uma literatura negra”, afirma ela, para quem o carioca, cujo atestado de óbito registra que morreu de enfarte pelo excesso de bebida, na verdade foi vítima do racismo. “É um autor que a todo tempo fala, escreve, cutuca sobre o racismo estrutural existente no país.” Além disso, a professora Eneida Leal Cunha ressalta como os diários do escritor ajudam a revelar um momento pouco discutido da história brasileira: a ascensão do eugenismo por aqui nos anos 20. “Lima discute, indignado e perplexo, certas afirmativas consolidadas e correntes no jornalismo brasileiro daquele momento sobre inferioridade racial dos negros, sobre o alcoolismo como doença racial. Ele viveu todos os estigmas que as políticas eugênicas perseguiram como próprias da natureza da população negra.” -
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Preste atenção ao retrato do Brasil que ele desenha –
Seja nas crônicas ou nos contos, que muitas vezes misturam ficção e realidade, Lima Barreto é descrito por muitos dos seus estudiosos como um dos melhores narradores do Brasil de sua época – que ainda guarda muitas semelhanças com o país de hoje. “Ele foi um dos melhores cronistas brasileiros, um dos escritores que melhor pensou o Brasil sob todos os aspectos e, por isso, nos faz atentos ao facismo, ao país que queremos para os 120 milhões de pretos e pretas”, diz Hilton Cobra, ator que encena o monólogo “Traga-me a Cabeça de Lima Barreto!”, baseado em seus diários. A professora Eneida Leal Cunha lembra como o “delírio patriótico” presente em “Triste Fim de Policarpo Quaresma” segue atual. “Esse delírio pode levar a uma crítica genial, que é a de Lima Barreto à primeira República, e pode levar a certos desastres, como o que estamos vendo no país hoje.” Já Lilia Schwarcz chama atenção também para a crítica do autor ao nosso bovarismo, a mania de estrangeirismo cultivada por muitos brasileiros. “O que dizer desse Brasil tão paralelo que nós vivemos em que uma parte da população vive em um deslocamento cognitivo, essa mania que os brasileiros têm de não enfrentar a própria realidade?”, questiona. -
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Releia o que já leu com novos olhos –
“Clara dos Anjos”, romance que Lima Barreto escreveu durante boa parte de sua vida e que não chegou a ver publicado, conta a epopeia suburbana de uma mulher negra e periférica que resiste a todas as condições adversas que a cercam. “É uma obra muito contemporânea porque trata de uma mulher negra cheia de planos, de projetos e que, na última versão, acaba sua vida grávida, desiludida, mas não sem reagir e mostrar que tem plena consciência do mal que o racismo lhe fez”, observa Lilia Schwarcz. Assim como o feminismo e o racismo, nos últimos anos, a redescoberta do escritor tem iluminado outros aspectos da sua obra. “Lima Barreto apresentava desde aquela época a estrutura do que hoje chamamos de colonialidade, e ler seus livros é um caminho precioso para entender seu funcionamento”, diz o professor Jorge Augusto, da UFBA. “Reler seus livros hoje também é fundamental, à medida que surgiram novos caminhos de leitura, ampliou-se o repertório crítico e seu campo de diálogo com outros artistas e obras, então comparar os sentidos de antes e de agora nos fará entender melhor tanto sua obra quanto esse país.”
Este conteúdo é parte da série “Ecos de Outros 22”, produzida em parceria com o Itaú Cultural, uma organização voltada para a pesquisa e a produção de conteúdo e para o mapeamento, o incentivo e a difusão de manifestações artístico-intelectuais.