Jeferson Tenório: ‘Sem cotas eu não teria a carreira que tenho’ — Gama Revista
Jefersson Tenório, formatura
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Jeferson Tenório: ‘Sem cotas eu não teria a carreira que tenho’

Ganhador do prêmio Jabuti em 2021, escritor acredita que política mudou não apenas a cara das universidades, mas da sociedade

Amauri Arrais 31 de Outubro de 2022

O escritor Jeferson Tenório divide a sua vida entre antes e depois da implantação do sistema de cotas raciais no país. Em 2007, antes da aprovação da Lei de Cotas de 2012, participou dos movimentos para pressionar a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) a adotar a política. Em 2010, se tornou o primeiro aluno cotista negro a se formar na instituição.

Tenório se tornou professor de língua portuguesa e literatura, como desejava, e também mestre em literaturas luso-africanas pela UFRGS e doutor em teoria literária pela PUC-RS. No ano passado, conquistou o Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira com o romance “O Avesso da Pele” (Companhia das Letras, 2020), que narra a história de um jovem negro tentando resgatar o passado da família após a morte do pai numa abordagem policial.

A trajetória como cotista é a inspiração de outro livro que deve lançar em breve, em que pretende abordar as transformações na vida de uma geração de estudantes após a política afirmativa. Dos Estados Unidos, onde dá aulas como professor-visitante da Brown University até o fim do semestre e escreve o novo romance, Jeferson Tenório relatou sua experiência a Gama.

 Carlos-Macedo


“Fui o primeiro da minha família a se formar na universidade. Uma história que começa bem antes, no ano 2000, quando entrei numa faculdade particular, no Rio Grande do Sul, no curso de Letras. Não escolhi o curso, era o que nós conseguíamos pagar. Minha mãe juntou algum dinheiro e, com muita dificuldade, pagamos a matrícula dessa faculdade, na qual fiquei até 2004. Não consegui me formar porque eu fazia poucas cadeiras e, depois de um tempo, também já não conseguia pagar as mensalidades. Então, tranquei o curso.

Em 2005, fiz um vestibular de inverno na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nessa prova, você disputava as vagas que haviam sobrado do vestibular de verão. Era uma prova mais específica, voltada para a área que você queria entrar. Fiz esse vestibular extra para o curso de bacharelado em Letras. Nessa época, eu já dava aula no ensino público como professor contratado. No bacharelado, não conseguiria dar aula, que era o que eu queria. Teria que fazer um novo vestibular.

Em 2010, fui o primeiro aluno negro cotista a me formar na UFRGS

Os anos foram passando e eu não conseguia ver uma perspectiva de conseguir estudar para fazer um novo vestibular. Até que, em 2007, começou um movimento na universidade pelo sistema de cotas. Participei desse movimento, acompanhei de perto tudo que aconteceu, as muitas tentativas de invalidar a implantação das cotas. Mas em 2008 elas foram efetivadas e foi quando eu fiz o vestibular para conseguir mudar de curso pela política afirmativa. Entrei na licenciatura em Letras para, finalmente, poder me tornar professor. Acabei aproveitando as cadeiras que já havia feito no bacharelado e, em 2010, fui o primeiro aluno negro cotista a me formar na UFRGS.”

Tratamento diferenciado

“Me lembro que na época muitos estudantes tinham vergonha de dizer que eram cotistas, com medo de retaliação. Havia um certo sentimento nos corredores de professores que diziam que dariam um tratamento diferenciado aos cotistas, que não iam dar colher de chá. Tinha aquela sensação de que haviam colocado pessoas despreparadas dentro da universidade. Logo, havia um um receio dos alunos, principalmente os negros, de serem identificados como cotistas.

Um colega cotista branco de escola pública me relatou sobre uma conversa com um professor, que não sabia que ele era cotista, em que disse estar muito preocupado que a universidade poderia decair. O professor defendia que as políticas deveriam se preocupar mais com a escola básica em vez de colocar pessoas que não estavam preparadas na universidade. Esse discurso era recorrente, principalmente entre os professores mais antigos.”

Abismo social

“Quando entrei na universidade federal, me deparei com alunos que tinham outro patamar econômico, um repertório cultural maior e o mais importante: tempo para permanecer nas aulas. Eram alunos cujos pais poderiam sustentá-los, o que não era o meu caso e nem da maioria dos cotistas, que tínhamos uma grande dificuldade de conseguir fazer as disciplinas no horário da tarde e da manhã. Não havia muitas vagas no curso noturno, então geralmente restava aos cotistas o turno diurno. E se você não tem como se sustentar fica muito difícil conseguir fazer todas as disciplinas. As pessoas faziam de acordo com o tempo que tinham.

As informações que poderiam ajudar esses alunos também chegavam de maneira muito mitigada, a conta-gotas. Informações sobre bolsas de pesquisa, vale alimentação ou incentivo para aquisição do material não chegavam de forma clara. Isso dificultava não só a permanência, como o andamento desses alunos cotistas no curso. Hoje, esse contexto mudou. Visitei a UFRGS algumas vezes nos últimos anos e percebi que há uma política de acolhimento e de informações.”

Quebra de expectativas

“O momento mais difícil foi quando me formei. Eu já tinha saído da escola pública onde dava aula e chegou o momento em que eu não conseguia mais conciliar: ou me formava ou teria que continuar trabalhando. A muito custo, tentei guardar algum dinheiro que eu pudesse ficar pelo menos seis meses para terminar o curso. Foi um momento bastante difícil, já tinha um filho pequeno em casa.

Logo que eu me formei, em dezembro de 2010, fui fazer uma entrevista de emprego numa escola particular em Porto Alegre em que estava apostando todas as minhas fichas. Na entrevista com a direção e a coordenadora, disse que eu era cotista. Elas me perguntaram como tinha sido a minha trajetória e eu contei. A diretora, então, disse que aquilo para elas era uma vantagem porque era uma escola particular em que havia alguns alunos negros e era importante que houvesse um profissional negro, com a experiência que eu tinha, para incentivá-los também a entrarem na universidade.

Quando fiz vestibular, tinha consciência de que estava passando por uma barreira que foi imposta a pessoas negras periféricas

Foi um momento muito significativo porque quebrou com todas as expectativas do que se dizia na época, de que os profissionais cotistas iriam ser discriminados, que não iam ser contratados porque eram menos qualificados. Depois disso, entrei em outra escola particular, onde já se sabia que eu era cotista, e isso não foi um problema. O que contava, na verdade, era a minha experiência.”

Barreiras impostas

“Se não fossem as cotas eu não teria a carreira que tenho. Eu dava quase 40 horas de aula numa escola pública e a minha trajetória acadêmica já era acidentada. Fui encontrando os caminhos, algumas brechas para continuar estudando e o vestibular era uma grande barreira. Eu teria que parar tudo que estava fazendo para estudar um tipo de conteúdo que, como costumo dizer, é de adestramento. Uma prova criada para um determinado setor da sociedade, mas que não vai medir a sua inteligência. Quando fiz vestibular, tinha consciência de que estava passando por uma barreira que foi imposta a pessoas negras periféricas.

A partir do término desses estudos, pude me dedicar ao que sei fazer, que é escrever e dar aula. Em 2011, ingressei no mestrado na mesma UFRGS e em 2018 fiz doutorado na PUC, que terminei neste ano.”

Mudança na sociedade

“Arrisco dizer que a política de cotas não mudou só a cara da universidade, mas da sociedade brasileira. A gente tinha uma universidade muito homogênea, branca, de uma determinada classe e sabemos que as universidades federais são lugares de validação de saber. O acesso de pessoas negras vindas da periferia consegue trazer algumas agendas que antes eram ignoradas pela academia. É praticamente impossível que um aluno entre em um curso de humanas hoje e em algum momento não vá discutir as pautas raciais, de gênero, de classe dentro das suas áreas, o que me parece um caminho sem volta.

Arrisco dizer que a política de cotas não mudou só a cara da universidade, mas da sociedade brasileira

Hoje também temos circulando na sociedade uma gramática antirracista. Nós conseguimos popularizar conceitos como privilégio branco, lugar de fala, uma cultura antirracista. A sociedade está muito mais atenta aos casos de racismo que infelizmente ainda acontecem. Isso também acaba se refletindo no conhecimento que é produzido pela academia. Não à toa hoje temos na literatura nomes como Conceição Evaristo, Itamar Vieira Júnior, Ana Maria Gonçalves, escritores negros que acabam sendo estudados na universidade e, portanto, ganham essa validação que chega na sociedade também.”

História de uma geração

“Estou escrevendo um livro que vai contar a trajetória de três personagens negros que entram pelo sistema de cotas e a trajetória deles dentro da universidade. A ideia é tentar mostrar um pouco essa transformação epistemológica nesse ambiente acadêmico. É uma história que precisa ser contada, como esses movimentos aconteceram dentro dos cursos, das disciplinas. Quais foram os embates? Quais foram os conflitos que foram criados para que se chegasse a outra bibliografia e hoje tenhamos um pouco mais de diversidade no que é estudado?

Tem um elemento biográfico nesse livro, como em tudo, mas a minha ideia é contar a história de uma geração antes e depois das cotas. Qual é o legado dessa implantação das cotas na vida dessas pessoas? Muitos desses cotistas acabaram também incentivando pessoas da família a voltarem ou continuarem seus estudos. O efeito vai muito além de uma prova de vestibular e faz uma reparação que é histórica, mas também é existencial. O sujeito volta a acreditar em si.

Minha própria família sofreu uma mudança significativa. A minha mãe depois de muitos anos voltou a estudar, terminou o ensino médio. Escreveu e publicou dois livros de poemas e agora está trabalhando em um livro de memórias. A minha irmã, que havia começado a faculdade de biologia e ficou por muito tempo sem conseguir estudar, entrou na UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre) com as notas do Enem e se formou fisioterapeuta. Agora, terminou também um mestrado na área.

Conseguir vislumbrar que você vai ter uma carreira é muito importante e as cotas fazem parte disso

Tudo isso depois da minha entrada na universidade e essa possibilidade de vislumbrar um futuro, que é um privilégio. Grande parte da população negra consegue olhar apenas para o dia a dia: o que vou fazer na semana que vem? Conseguir vislumbrar que você vai ter uma carreira é muito importante e as cotas fazem parte disso.’

Revisar para ampliar

“A lei prevê uma avaliação da Lei de Cotas depois de dez anos, mas também há no texto um artigo que diz que as cotas não podem ser extintas, por mais que haja setores fascistas e autoritários da sociedade que querem seu fim, isso não vai acontecer porque está previsto em lei.

Essa avaliação pode ser um balanço positivo, com dados para que a gente possa aperfeiçoar o sistema de cotas. Acredito que nesse ano de eleição não vai acontecer mais, mas o debate deve voltar no ano que vem com muita força, independente de quem vai ser eleito. O momento é de ampliação do número de vagas e de melhorar a manutenção desses alunos dentro da universidade, com algum tipo de incentivo para que não abandonem os cursos e consigam fazê-lo no tempo previsto.”

Este conteúdo é parte da série “Ecos de Outros 22”, produzida em parceria com o Itaú Cultural, uma organização voltada para a pesquisa e a produção de conteúdo e para o mapeamento, o incentivo e a difusão de manifestações artístico-intelectuais.

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