Coluna do Leandro Sarmatz: O fim das coisas — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

O fim das coisas

Inventamos nossos vícios e paixões porque nos sabemos finitos. E tudo o que prolonga nosso prazer de habitar sob o Sol é objeto de afeto

17 de Agosto de 2022

Então as coisas acabam – os amores, as amizades, a esperança em algo. Quando T. S. Eliot escreveu, quase oitenta anos atrás, no segundo dos Quatro Quartetos, “Em meu princípio está meu fim” (East Cocker, 1943), pode ter soado apocalíptico para alguns. Ou meramente realista: vivia-se em plena Segunda Guerra, o morticínio sem dar mostras de arrefecer. Os campos de concentração sendo amplamente divulgados (e amplamente ignorados por Churchill, aliás), Londres bombardeada sem trégua, a Europa em mais um de seus sempiternos flertes com a ruína.

Mas não. Nem apocalíptico nem realista, Eliot foi, drummondianamente, eterno nessa visão de princípio e fim. As coisas nascem para morrer. Iniciam para findar. E no meio disso estamos nós, tentando dar sentido a tudo e procurando atar – com racionalidade, poesia ou religião – as duas pontas. Que na verdade não são pontas: mas vasos comunicantes. O choro primal do bebê que vem ao mundo já guarda o canto da morte em algo do seu timbre. A gente só esquece disso e vai em frente. Para onde? Bem, já sabemos.

Prestes a chegar aos 50, quero que a vida vibre – forte e bela, doce e contraditória, com desejo, paixão e algum arrebatamento que não me tire tanto assim do sério

Não me entenda mal. Embora tenha passado a adolescência numa triste cidade ao Sul ouvindo Smiths enfurnado num quarto em que mal cabia a cama, não estou funéreo ou sucumbindo aos encantos da morbidez. Porque já não sou mais disso há muito tempo. Uma longa educação. Prestes a chegar aos 50, quero que a vida vibre – forte e bela, doce e contraditória, com desejo, paixão e algum arrebatamento que não me tire tanto assim do sério. Claro que há os acidentes de percurso. Quem nunca amou errado ou falou algo que já não cabia mais na frase? Atire a primeira perda quem nunca resvalou para os pântanos sorumbáticos da autocomplacência, da pena por si mesmo ou pelo espelho deformado do circo interior, besta-fera que somos de nós mesmos? Eu, picadeiro. Você também. E ambos plateia.

Somos assim, crianças mimadas no seio da Terra. Perdidos, às vezes tateantes, porque sabemos que não há nada lá, do outro lado. No corredor do hospital, na enfermaria do presídio, na UTI neonatal há, e sempre haverá, a presença majestosa do deus de ocasião, a quem recorremos porque, afinal, se nada nos resta, que ao menos reste esse grande nada inventado por nós mesmos, tanto tempo atrás. Mas no cotidiano há só o espesso vazio que buscamos preencher com sexo, bebida, cafeína, paternidade ou tênis novos branquinhos em folha, ainda sem manchas. Como nós mesmo um dia acreditamos ter sido. Nunca fomos. É de nascença.

E não há nada de feio ou reprovável nisso. Muito antes pelo contrário. Inventamos nossos vícios e paixões porque, justamente, nos sabemos finitos. E tudo o que prolonga nosso prazer de habitar sob o Sol é objeto de afeto. É esperança libidinal, é abraço e cantoria. Do contrário, a caminhada sem rumo em que empreendemos desde que nos tornamos eretos, milênios atrás, de nada serviria. Seria como atravessar a esquina pra comprar sorvete, parar diante do carrinho e apenas ficar olhando, ausente, sem gula nem escolha do melhor sabor. Triste, vazio e sem sentido. Melhor dar meia volta.

Ainda bem que temos nós mesmos, os amigos e amores por perto. Só há sentido nisso, aliás. Para cada deus inventado em algum canto do planeta há um grupo de amigos, há casais de todos os gêneros. Entre deuses e afetos, fiquemos sempre com estes. Porque já é bastante difícil construí-los, eles que são tão reais e palpáveis, em vez de ficarmos criando metáforas de nós mesmos para oprimir quem quer que seja milhares de anos depois. O aqui e agora, rezado na delicadeza, dá de dez a zero em qualquer teologia.

Não há milagre. Há o cotidiano. Não vou ser cafona – se já não fui ao longo desse texto… – e dizer que há os pequenos milagres. Talvez existam

Porque também somos frutas da estação – e isso deveria aplacar um pouco nossas angústias. Abrimos e fechamos os olhos num tempo determinado, senão por nós mesmos, pelas nossas escolhas e acasos que se apresentam diante de nós. Querer estancar esse processo é injusto: com nós mesmos e com aqueles que nos deixaram aqui. Tudo vale enquanto isso, se deslizar, mascar chiclete e abrir um sorrisão de canto a canto. Só não vale estupidez e confronto. Nem paranoia, veneno e bola nas costas. O resto a gente arranja enquanto arruma a cama, varre a casa e prepara um café encorpado, folheando um livro da Ana Martins Marques.

Não há milagre. Há o cotidiano. Não vou ser cafona – se já não fui ao longo desse texto… – e dizer que há os pequenos milagres. Talvez existam. Custo a divisá-los ou meramente a acreditar em tais coisas. Mas é no dia a dia que a porca torce o rabo e a gente tem a medida exata das coisas. Do “bom dia” ao “boa noite” é que se resume nossa jornada. E a nossa busca para entender o outro. Este é o nosso princípio e também o nosso fim.

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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