Coluna da Vanessa Rozan: Quem desarmonizou a harmonia? — Gama Revista
COLUNA

Vanessa Rozan

Quem desarmonizou a harmonia?

Com filtros de Instagram e procedimentos estéticos cada vez mais comuns aumenta a busca por um único padrão de beleza

05 de Agosto de 2022

Harmonização facial em breve terá um dia para chamar de seu. No 29 de janeiro é provável que a nossa sociedade passará a celebrar anualmente esse avanço em prol do bem-estar geral da nação, afinal, quem não quer se tornar mais feliz com sua aparência?

Segundo os criadores do projeto, aprovado pela Câmara Municipal de São Paulo: “A apresentação pessoal é uma necessidade fundamental na vida das pessoas” e eu que sou maquiadora e mulher — numa sociedade em que a beleza é meu maior e único capital — jamais vou atirar a primeira pedra. Quem sou eu pra dizer o contrário, mesmo rolando de ódio por dentro?

Até cinco anos atrás ninguém nem sabia o que era harmonização facial e hoje você vai no shopping e pode fazer uma ali mesmo. Harmonizar era, até pouco tempo, combinar o vinho com a comida, nesses jantares degustação que eu nunca tive paladar pra opinar.

Parece que quem pariu a tal harmonização foi uma parte do MD Codes, técnica desenvolvida por um médico brasileiro que mapeava os pontos do rosto que receberiam grandes doses de ácido hialurônico para modificar a estrutura facial. Ao invés de tratar o vinco ou a ruga, a técnica inovadora investia em sustentação, trabalhando em pontos determinados para garantir o resultado mais jovem, pele mais lisa, face mais descansada.

Junta-se o pai MD Codes com a mãe toxina botulínica e nasce a harmonização. Mix de técnicas pouco invasivas de modificação facial que promete conciliar seus traços e volumes. Só que o sonho acaba em até dois anos no caso do ácido hialurônico e até um ano no caso da toxina. Ótimo, cobrimos toda parte técnica e agora estamos na mesma página. Certeza que você, se for mulher, já olhou no espelho e pensou em mudar algo no rosto, se não no rosto, no corpo certamente. Só que entre imaginar como seria um outro nariz, uma outra boca e até uma pálpebra mais esticada, a gente tinha a margem de erro, o risco e o custo de uma cirurgia, sem contar o tempo de recuperação. Tempo e dinheiro fazendo você pensar duas vezes antes de mudar sua fisionomia. Exigia um processamento mínimo desse incômodo e um cálculo de possibilidades, pelo menos para uma camada da população.

Se o padrão de beleza é só um, como faz para caber uma população inteira nessa caixinha?

Só que agora você bota um filtro ali e como mágica seu rosto parece mais sutil, traços “reorganizados” e pele bem lisa. Tudo já vem pronto e você nem precisa entender o que mudou. Só olha e “uau”, não tem tempo para processar os incômodos porque o seu pedido foi servido sem você saber o que queria antes mesmo de começar. Dai vamos lá, um pouco mais dentrinho do buraco do coelho da Alice. Sabe o que acontece no seu cérebro quando você se vê refletido diferente? Acha que depois dessa imagem virtual você volta a se olhar de novo da mesma forma, entendendo e aceitando a realidade? Pode até ser o seu caso se está com a terapia em dia, mas enquanto tudo está acontecendo, pouca gente parou para administrar os impactos psicológicos dessa avatarização dada em um cérebro que acredita no que está vendo.

Os números de procedimentos só aumentam e de cirurgias plásticas entre adolescentes também. Agora vamos voltar ao assunto desta coluna, a harmonização. Os próprios criadores do projeto de lei confirmam o que eu to pensando aqui: “Essa preocupação [com aparência] não raras vezes gera um trauma psicológico nas pessoas, que também não poucas vezes recorrem a psicólogos, terapeutas e psiquiatras para aprenderem a lidar com estas questões.” Ou seja, mais ácido hialurônico, menos terapia. Daí, resumindo, os filtros fizeram o trabalho de te organizar. Depois rapidinho você vai ali e com umas agulhas, ampolas e cânulas, faz o que o seu filtro te entregou, sem drama e parcelado. Não precisa nem pensar por que alguém vai saber o que é mais harmônico pra você, vai seguir o molde pra te colocar nos eixos. Zero processamento intelectual do que está por trás das cortinas. E plim, seus traumas acabaram.

Veja bem, volto a ressaltar que não sou contra nenhum procedimento estético, to aqui e faço uso deles sim e não vou criticar qualquer mulher que os faça, porque apesar de manter o pensamento crítico, eu e você gata, estamos imersas nessa sociedade até o nariz (talvez a gente esteja já totalmente imersa mesmo, quem sabe afogada). Meu ponto é, se o padrão de beleza é só um, como faz pra caber uma população inteira nessa caixinha? Claro que 99,9% vão achar uma que tem alguma desarmonia acontecendo, e se tem desarmonia, alguém tem que organizar esse rolê. Pode reparar que a proposta dos filtros, e por consequência a da harmonização, é a construção de uma beleza montada por algoritmos, sim, pasmem, impossíveis de existir naturalmente até entre as modelos mais bem pagas do planeta.

A beleza tem nome, batizada pela escritora Jia Tolentino de Instagram Face, que é um rosto jovem, claro, com pele sem poros e maçãs do rosto salientes. Tem olhos de gato e cílios longos e caricaturais; tem um nariz pequeno e elegante e lábios carnudos e exuberantes. O rosto é distintamente branco, mas ambiguamente étnico. Sardas são bem vindas, se for para ler mais juventude. Não à toa criaram uma influencer avatar, que nem envelhece mais. Em resumo, é isso, ao invés da gente olhar por que a preocupação com a aparência causa trauma psicológico nas pessoas, e que aparência é essa que não causa trauma e traz felicidade e bem-estar, estamos botando um band-aid nessa angústia pra acalmar a dor pelos próximos 18 meses ou até que a toxina pare de fazer efeito.

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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