Luara Calvi Anic
Quanto barulho você aguenta?
A busca por silêncio, os caminhos para bloquear os ruídos e a constatação de que o som é capaz de passar por uma mínima fresta
Vivo uma saga em busca do silêncio. Nada de espiritual ou esotérico. O motivo público é melhorar a concentração; o privado pode ser uma loucurinha ainda não nomeada. Mas a aquisição mais recente nessa busca antiga é uma janela que bloqueia parte dos ruídos. Ora, moro no centro de São Paulo há mais de uma década, bem em cima de uma avenida super movimentada, uma janela dessas era pra ser uma porta para o silêncio. Era.
O zuuuum eterno que ficava aqui no meu cangote até que diminuiu. Um milagre pago em dez vezes no cartão. Mas um outro som surgiu: o dos moradores do prédio. Quando se bloqueia o som de fora, aqui dentro fica mais barulhento. Toda noite, quando entrava no quarto para botar minha filha para dormir, era como se o vizinho de baixo estivesse lá com a gente. Um francês idoso que passa dias e noites vendo filmes. Ele não sai de casa. Nunca. O vi uma vez na portaria e perguntei:
– O senhor não sai nem para ver o movimento da rua?
– Pra quê? Tenho muitos filmes para assistir.
O apartamento dele está à venda, com fotos em uma plataforma de imóveis, e ali eu bem vi quantos filmes dominam todas as paredes do apartamento. São milhares em todos os cômodos. Até no banheiro.
Quando se bloqueia o som de fora, aqui dentro fica mais barulhento
Tem também o vizinho de cima. Que deu para arrastar os móveis todas as noites, durante uma semana. Quando eu o encontrei na portaria e comentei do barulho ele deu respostas estranhas. Disse que ele não era ele; que eu não era quem dizia que era; que ele tinha invadido o apartamento do qual é proprietário e que estava de mudança. Naquele dia ele também comprou uma peça de bacalhau para o porteiro, enfiou uma nota de cem reais em uma fresta da portaria – outro presente para o porteiro – , e no meio daquela madrugada teve um surto psicótico que eu pude ouvir com detalhes aqui do meu apartamento. Ele estava com a filha e eu colaborei ligando para o Samu algumas vezes. “A pandemia deixou todo mundo meio esquisito”, resumiu o porteiro com o bacalhau embaixo do braço.
Deixou todo mundo meio esquisito, a gente sente, mas também mais incomodado com o barulho. Nos tempos de quarentena e lockdown, a diminuição dos carros e eventos na rua fez muita gente ouvir passarinhos e perceber que o barulho era demais. Aqui na Gama publicamos uma matéria, assinada pelo William Vieira, sobre a relação com o barulho no Brasil e no mundo, as novas tecnologias antirruído e a certeza de que silêncio se compra.
Da janela que veda tudo ao fone potente com noise cancelling, a demanda por esse tipo de sistema mostra que o desejo por mais silêncio movimenta um mercado em crescimento. Mas também que alcançar uma vida menos barulhenta depende de políticas públicas que reduzam a quantidade de carros nas ruas, o barulho de aviões, que repensem a acústica das escolas e dos locais públicos. Afinal, o barulho das cidades é sim uma questão de saúde.
Por aqui, vivo uma fase de menos barulho. O vizinho de cima está se recuperando na casa da família. O de baixo andava estranhamente silencioso. Após alguns dias, consultei o porteiro: o cinéfilo faleceu deixando sete gatos, os filmes e uma TV desligada.
Luara Calvi Anic é jornalista, editora-chefe da Gama revista, onde coapresenta o Podcast da Semana. Foi livreira, editora de cultura e comportamento da ELLE e de outros títulos da Editora Abril, repórter da Trip/Tpm e colaborou com Folha de S.Paulo e Marie Claire. Atualmente, cursa mestrado em ciências da comunicação pela ECA-USP
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