Ninguém aguenta mais barulho — Gama Revista
Sociedade

Ninguém aguenta mais barulho

A pandemia nos fez mais sensíveis aos ruídos e mais desejosos do silêncio. Bom para a indústria da paz sonora — e para quem pode pagar por ela

Willian Vieira 25 de Julho de 2020
© NASA

Quem habita uma metrópole vive em meio a um caos sonoro — e geralmente acha normal. Carros e ônibus, motos e ambulâncias nos cercam na rua, enquanto aviões e helicópteros cruzam os céus. Moramos em prédios colados com paredes finas que, se não disfarçam, amplificam o som dos vizinhos, e trabalhamos em meio ao burburinho. Nossos próprios fones berram dentro do ouvido. Então ruídos acima do limite legal de 70 decibéis de dia e 45 decibéis à noite compõem nossa rotina sonora – quem nunca morou ao lado de uma construção?

Assim que a pandemia se instalou, porém, o silêncio se fez. A economia estagnou: aviões ficaram no solo, ônibus e carros sumiram das ruas. O ar melhorou, o barulho diminuiu e o canto de pássaros passou a ser ouvido nas janelas, mesmo nas cidades. Os parisienses, por exemplo, descobriram que é possível “escutar o silêncio”, diz o editorial do Le Monde chamado “Como eu fazia antes?”. A mudança foi medida — e no mapa sonoro de Paris, a diferença é brutal. Mesmo com o fim do confinamento, diz o jornal, “a relação dos franceses com o barulho mudou drasticamente+”.

Aos poucos, na Europa, mas também no Brasil, o que é considerado aceitável em termos sonoros está mudando — e a quarentena foi um acelerador dessa percepção. Em São Paulo, o barulho chegou a cair 50% em alguns pontos, como na região da avenida Nove de Julho, segundo medição da associação ProAcústica. Quem trabalha em casa passou a ouvir bem-te-vis e sabiás. Eles sempre estiveram lá, mas seu canto era engolfado pelo ruído incessante da metrópole.

“O isolamento trouxe um aumento dessa percepção, não só porque o silêncio ficou perceptível, mas também porque os barulhos estão se destacando do ruído de fundo”, diz o professor de acústica da Universidade Federal de Goiás, Marlipe Fagundes Neto. O barulho dos automóveis na rua, por exemplo, mascara sons de potência similar. “Nosso ouvido funciona como um equalizador: quando o ruído de fundo diminui, passamos a escutar sons que emitem a mesma energia.” Seja o passarinho, o vento, a briga do vizinho, o latido do cão.

O isolamento trouxe um aumento dessa percepção, não só porque o silêncio ficou perceptível, mas também porque os barulhos estão conseguindo se destacar do ruído de fundo

Com mais gente passando mais tempo em casa, e menos barulho difuso lá fora, os ouvidos ficaram atentos — e incomodados. Da criança a correr e gritar no andar de cima à obra que o vizinho decidiu iniciar (em meio a discussões de casal), cada barulho se destaca. E as queixas aumentam. Mesmo no Brasil, onde o tráfego não foi tão silenciado como nos países europeus com lockdown real, houve um boom de reclamações de origem sonora, do Rio Grande do Sul ao Ceará. Em São Paulo, redes de assessoria condominial lançaram até guias para lidar com a situação.

Se a pandemia, a quarentena e a falta de certeza sobre o futuro já aumentam o desequilíbrio físico e mental, o barulho — destacado mais do que nunca — é a pá de cal+. Uma batalha sonora, assim, está em curso mundo afora. Mas, enquanto as políticas públicas para o som, debatidas com força nos Estados Unidos e Europa, não ganham vez por aqui, o que fazer para fugir da poluição sonora? A resposta é simples e dolorosa: comprar o silêncio.

A paz do isolamento durou pouco — a tal abertura gradual está em marcha há um bom tempo –, mas foi o bastante para sentir o gostinho de um mundo com menos barulho. Para quem pode pagar, a saída mais garantida é se isolar numa bolha: em casa, no trabalho, na rua. E há uma indústria que se move só pra isso.

De tampões a fones antirruído: a bolha no trabalho

Antes da pandemia, trabalhávamos quase sempre fora de casa. E a situação já não era boa: 69% das pessoas já estavam insatisfeitas com o barulho nos escritórios. Após anos acreditando no espaço compartilhado oferecido pelo coworking, onde o burburinho é regra, cada vez mais profissionais buscam trabalhar em paz, tentando evitar a perda de foco e concentração — e, logo, de produtividade: 57% dos trabalhadores franceses, por exemplo, afirmam que produzem menos por causa do barulho.

Ninguém sabe ao certo como será o futuro dos escritórios e do trabalho em geral — se o home office vai virar o novo normal ou não –, mas o mesmo vale para trabalhar em casa. Ações mais drásticas para lidar com o lar seguem mais abaixo, mas as mais básicas são urgentes. Criados para ouvir música em espaços barulhentos, como aviões, os fones com cancelamento de ruído têm ganhado os escritórios como a melhor forma de lidar com o barulho que não controlamos — afinal, o inferno são os outros.

Criados para ouvir música em espaços barulhentos, como aviões, os fones com cancelamento de ruído tem ganhado os escritórios como a melhor forma de lidar com o barulho que não controlamos

Não à toa o site da Wework, a maior empresa de coworking do mundo, que incentiva o fim dos cubículos e salas fechadas e a divisão comunal do espaço de trabalho tem estimulado o uso de fones “para aumentar a produtividade”: em primeiro lugar na lista estão os com cancelamento de ruído (R$ 3,5 mil). Saídas mais baratas, como fones com “isolamento” e tampões de ouvido (alguns podem ser customizados) também fazem parte do arsenal. Nos momentos de concentração, ouça “white noise”: há diversas trilhas no Spotify e até apps com sons de rios, etc. Se precisar, use tudo ao mesmo tempo. A bolha de calmaria é só sua.

A quarentena esvaziou os escritórios, mas as empresas já organizam a volta dos funcionários — e o barulho de sempre estará lá. Talvez valha focar nos fones e tampões e aproveitar o home office, ou o espaço maior no escritório enquanto durar. A volta será escalonada, menos pessoas trabalharão juntas e com maior distância. O que não impede que gritar para o colega distante ouvir seja habitual.

Do piso ao teto: a bolha no lar

É quando dormimos que o ruído mais incomoda e faz mal. Com o home office então, temporariamente ou não, é preciso garantir um mínimo de paz para trabalhar, sobretudo quando se divide a casa com crianças. Enquanto o poder público tateia para reduzir o ruído das ruas e convencer seu vizinho a brigar menos ou desistir da obra segue impossível, o mercado já vende o silêncio perfeito para o lar.

Com a norma técnica de 2013, a NBR15.575, que alterou os níveis aceitáveis de ruído nas habitações, uma indústria do silêncio surgiu no Brasil para dar conta da demanda de materiais isolantes. Segundo a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias de 2019, tais itens já são prioritários para 63% dos que buscam um imóvel e ganham mais de R$ 3 mil – e para 44% de quem ganha menos de R$ 800, à frente até da famosa varanda gourmet. Uma região silenciosa fica à frente até da proximidade de escolas.

Enquanto o poder público tateia para reduzir o ruído das ruas, e convencer seu vizinho a brigar menos ou desistir da obra segue impossível, o mercado já vende silêncio

Para Holtz, uma revolução está em curso também no Brasil: a percepção de que o “conforto acústico” deve ser levado em conta. Além da norma, já se discute uma nova forma de classificar imóveis por níveis de conforto acústico — como hoje se faz com eletrodomésticos. Um imóvel classe A valeria bem mais que um E. “O ruído virou uma questão palpável. E o silêncio, um conforto como qualquer outro”, diz.

Quer buscar o silêncio sem mudar de casa? Existem dois graus de ação, diz Holtz. Se for preciso apenas conter a reverberação do espaço, não são necessárias obras: revestimentos fibrosos, painéis acústicos adesivos, tapetes, almofadas, estantes e coberturas vegetais (plantas) ajudam, unindo decoração e silêncio. Mas se a poluição sonora for grave — sobretudo se vier da área externa, como uma avenida, ou de vizinhos –, vale dar um passo além com o isolamento acústico+.

O custo da bolha varia de acordo com o volume de ruído, o número de janelas, seu grau de incômodo e o tamanho do lar. Uma reformulação completa (“insonorizando”, como se diz no jargão, de teto, piso, paredes, janelas e portas) num apartamento de 60 m2 e dois quartos não sai por menos de R$ 10 mil — fora um valor similar para janelas e portas. O silêncio completo pode custar de R$ 20 mil a mais de R$ 40 mil.

Antes de sair por aí gastando dinheiro para isolar qualquer coisa, porém, é preciso saber de onde vem o barulho e o que pode contê-lo. Uma saída garantida é contratar um consultor para fazer um laudo acústico, diz Holtz. “Muita gente gasta com a janela e descobre que o ruído pior vem dos vizinhos. Um barulho que, aliás, pode ser bem mais perturbador.”

O futuro é silencioso

Um aparelho que gruda na janela e faz dela um emissor de cancelamento ativo de ruído – seria o futuro? Chama Sono e foi projetado de forma a exportar para o ambiente a tecnologia de cancelamento de ruído, similar à dos fones de ouvido. Seria possível, por meio de um dial, eliminar o som de uma obra enquanto se mantém manter o dos pássaros cantando. Ainda não chegou ao mercado, assim como janelas desenvolvidas em Singapura que reduziriam o ruído da rua pela metade, com o benefício de poderem ficar abertas, ao contrário das tradicionais.

O mesmo se dá com a tecnologia QuietBubble, da Silentium, start-up que desenvolveu um chip com algoritmo que identifica o ruído e o “cancela”, criando uma “bolha de quietude” em torno de você, seja no carro, no quarto ou na cozinha (o chip é instalado em cada aparelho que faz barulho). A tecnologia ainda é cara e não chegou inteiramente ao mercado, mas investidores têm apostado na empresa: nos próximos anos, ilhas de silêncio podem estar à disposição.

Mas dessas tecnologias para poucos, o foco deve ser em relação a políticas públicas que reduzam a emissão de ruídos. Hoje, aviões, carros e trens já são mais silenciosos que antes — mas a luta é por diminuições ainda maiores.Cidades europeias, por exemplo, estão reduzindo o espaço para carros. É um começo.

Pois mais que incômodo, a poluição sonora é uma ameaça global, diz a Organização Mundial da Saúde. Só na Europa ocorrem 12 mil mortes prematuras por ano devido ao barulho –ele é o “novo fumo passivo”, como define o ativista antirruído Bradley Vite. Levou décadas para educar as pessoas sobre o tema. “Talvez precisemos de décadas para mostrar os impactos do barulho passivo.”

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