Coluna do Dantas: Ordenhando Sonhos — Gama Revista
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COLUNA

Marcello Dantas

Ordenhando Sonhos

Com uma maioria histórica de artistas mulheres, a 52ª Bienal de Veneza mostra que são elas, historicamente e agora, que ofereceram soluções possíveis durante tempos sombrios e confusos  

11 de Maio de 2022

Desde que começou, em 1895, a Bienal de Veneza tem sido um barômetro do mundo da arte global. O lançamento de sua lista de artistas a cada edição aponta uma direção para onde caminha as escolhas da arte. Essa edição de 2022 provocou uma discussão sobre a demografia do gênero desses artistas.

Leite dos sonhos (Il Latte dei Sogni) é o tema da 52ª Bienal de Veneza. Sem muito alarde, a seção principal, curada pela italiana Cecilia Alemani, apresenta majoritariamente obras de artistas do gênero feminino. Apenas 21 dos 213 nomes – dez por cento – são masculinos. Desses homens, apenas 15 estão vivos. Em si seria um feito histórico ter uma Bienal com essa proporção, entendendo principalmente que o mundo da arte é historicamente dominado por homens. Para contextualizar: nunca houve, na história da mostra uma edição majoritariamente feminina. Em um extremo, em 1995, a exposição com curadoria de Jean Clair era 90% masculina.

Mas o que aconteceu ali foi algo além disso. Num mundo violentamente dominado por ritos masculinos como a guerra, a violência e a intransigência, nos deparamos com a artificial ilha de Veneza ocupada por uma energia completamente diferente. Dava para sentir no ar os sinais do que seria um mundo protagonizado por mulheres. E eu adorei o que vi.

Algo que se mostra diferente é a forma da imaginação, parecida com histórias que nos fascinavam na infância: animais, rituais e texturas que nos remetem a outro lugar, a outras formas de existências, um lugar mais seguro e acolhedor. Aos poucos vão surgindo obras seminais negligenciadas: úteros em gestação feitos em papier-mache, criados pela médica e ativista holandesa Aletta Jacobs, em 1840; uma mata ocupada por uma erva daninha trazida do Japão para as plantações de cana de açúcar durante o período da escravidão nos Estados Unidos, da jovem artista afroamericana Precious Okoyomon; ou ainda entender o quão revolucionárias foram Josephine Baker e a cineasta Maya Deren em seus tempos.

Num mundo violentamente dominado por ritos masculino, dava para sentir no ar os sinais do que seria um mundo protagonizado por mulheres

Nesse caminho, algumas coisas novas surgem. A arte feminista panfletaria de Guerilla Girls se dilui e perde sentido em um lugar onde a maioria são mulheres, onde poéticas mais profundas estão latentes e disseminam sementes que falam de uma ancestralidade que vai muito além dos próprios parentes. Ali, o que está exposto oferece uma narrativa tangível de um mundo que preferíamos ter vivido e que, de certa forma, vivemos – mas carece de reconhecimento.

Dentro dessa ideia de histórias reais porém mal quantificadas, a Bienal vem de encontro a um estudo revelado na ONU em março que mostra que a economia do cuidado já equivale a 11 trilhões de Dólares por ano. Atividades como cuidar dos filhos, de idosos e da casa, que são exercidas principalmente por mulheres e são necessárias para que a vida continue existindo, até hoje seguem sem remuneração direta. Ao mesmo tempo, os números acima indicam que esse trabalho representa a terceira maior economia do mundo, somente atrás dos EUA e da China.

O leite dos sonhos é sobre esse lado da vida negligenciado pelas manchetes mas absolutamente essencial para a vida. Veneza não é o mundo e a luta feminina ainda tem enormes desafios para conseguir chegar perto do que essa pequena ilha privilegiada apresenta. Lembrar da força da maternidade, da livre imaginação, das fantasias infantis, das vozes femininas do passado, de um jeito de pensar diferente para os problemas que estamos vivendo, e essa descarga de femininos no ambiente fértil da Bienal de Veneza mostra que o mundo pode ter solução.

Essa edição da Bienal marca uma virada histórica. É um marco corretivo curatorial para séculos de apagamento de mulheres do cenário da arte. São as artistas mulheres, historicamente e agora, que ofereceram soluções possíveis durante tempos sombrios e confusos. Artistas que estão imaginando “novos modos de coexistência e infinitas novas possibilidades de transformação”. Aceitar imaginar um novo desenho para a galáxia que ao invés de girar em torno do sol, pode girar em torno de suas luas. Esse é o tipo de rito que estamos precisando para mudar a nossa forma de contar histórias.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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