Coluna do Fernando Luna: "Não fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres" — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Não fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais com um salve pro Angeli, um golpe na Luiza Helena Trajano, um adeus pro Juva Batella e uma certa irritação com cardápios no QR Code

25 de Abril de 2022

Não fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres

Mário de Andrade, 1922
Antologia Profética

Conheci São Paulo sem precisar sair de Ipanema, graças ao Angeli.

Antes de voltar pra casa nas madrugadas adolescentes, passava numa banca 24 horas da zona sul carioca atrás da “Chiclete com Banana” – uma revista-gibi que tinha como missão, visão e valores o elevado propósito de “beliscar a bunda do ser humano para ver se a besta acorda”.

A besta tem sono pesado e a ipanemia é uma doença fútil, mas tava tudo naquelas páginas de papel vagabundo impressas em preto e branco.

Os viadutos cheios de curvas e de carros, as antenas espetadas no topo dos edifícios, os balcões de bar com suas banquetas altas, os letreiros de neon dominando a paisagem antes da lei Cidade Limpa e o horizonte sempre espremido pelo paredão de prédios colados uns aos outros.

(Quando saio do túnel Noite Ilustrada em direção ao centro de São Paulo, a vista ainda me lembra das tirinhas desaconselháveis para menores.)

A cidade era um personagem principal feito de muitos outros personagens: Bob Cuspe, Rê Bordosa, Skrotinhos, Walter Ego, Mara Tara, Wood & Stock, Rhalah Rikota, Meiaoito e Nanico e toda infinidade de tipinhos inúteis que populavam a capital desta República dos Bananas.

Nela, todo mundo era esculachado o tempo todo, de políticos infames a figuras anônimas, dos punks da periferia aos empresários da avenida Paulista (ninguém falava da Faria Lima até anteontem), das madames joiadas com seus poodles aos yuppies enfatiotados com suas ombreiras.

Só não dava pra dizer que sua crônica de costumes e de maus costumes era pirraça, porque ele não esquecia de se esculachar.

Se Mário de Andrade lança seu manifesto poético sem vergonha de rir de si mesmo, no prefácio interessantíssimo de “Paulicéia Desvairada”, Angeli também tira uma com a própria cara na série “Angeli em Crise” – autoficção ilustrada com a pena da galhofa e a tinta naquim da melancolia.

Foi o Angeli quem inventou tudo isso, inclusive a cidade – tem uma São Paulo que só existe por causa dele, a minha primeira São Paulo, e eu não pretendo me mudar daqui.

O difícil não é encontrar a verdade: é organizá-la

Murilo Mendes, 1945

Você sabe que o país vai mal quando a Luiza Helena Trajano precisa fazer um post explicando que não, ela não tá pedindo dinheiro pelo WhatsApp.

Esquece inflação, taxa de juros, desemprego – o melhor indicador do sanatório geral em que nos metemos é isso aí.

A começar pelo trambiqueiro.

Com quase 120 milhões de brasileiros usando o aplicativo de troca de mensagens, o pilantra falsifica logo a conta de quem? Não é azar, é falta de método.

Se o crime organizado fosse organizado de verdade, no mínimo já tinha criado uma blacklist pra esses golpes a partir do ranking da Forbes. Patrimônio acima de 1 bilhão de dólares? Melhor não perder tempo implorando um Pix urgente pra pagar boleto atrasado.

Mais espantoso é que exista risco de alguém cair nessa, obrigando a publicação de um alerta do óbvio: não cliquem em nada, é fraude. Imagina o zap – “Amiga, tô aqui no mercadinho do bairro e o cartão não passou, que vergonha, cê pode me ajudar? Obrigada, Luiza”.

Quem acredita nisso, acredita em qualquer coisa – e isso ajuda a explicar como chegamos até aqui e a temer pra onde vamos daqui em diante.

Quem acredita nisso, acredita até no pronunciamento do Ministro da Saúde, decretando o fim da emergência sanitária e garantindo que o governo federal fez de tudo pra combater a pandemia – e não o exato contrário disso, como sabem até as emas do Palácio da Alvorada.

Quem acredita nisso, acredita até nas barbaridades da campanha permanente do Bolsonaro pelo segundo mandato: o aparelhamento da procuradoria-geral da República, da Polícia Federal e do Coaf são medidas pra combater a corrupção; as ações contra a imprensa e a disseminação escancarada de fake news são estratégias de defesa da liberdade de expressão; rachadinhas, cheque de 89 mil reais e compra de imóveis em dinheiro vivo são apenas uma demonstração do seu zelo pela família.

Até outubro, pro bem de todos e felicidade geral da nação, é preciso organizar essas verdades inconvenientes – como escreveu Murilo Mendes em “O Discípulo de Emaús”.

A vida é curta a vida

Juva Batella, 2011

Se na literatura existe o “romance de formação”, digo que o Juva foi meu “amigo de formação” – e pouca coisa é mais importante que isso.

Do mesmo jeito que “O Encontro Marcado” e “O Apanhador no Campo de Centeio” mostram a transformação dos moleques Eduardo e Holden em adultos (ou quase isso), Juva e eu viramos adultos (ou quase isso) com a ajuda um do outro.

Ficamos amigos na faculdade. Conversas nos pilotis e na praia, falando com entusiasmo de Marcuse e de mulher, sem entender direito nem uma coisa nem outra. Ficamos muito amigos no bar do Planetário e no Baixo Gávea, no Circo Voador e no CEP 20.000, na Timbre e no Estação Botafogo. Ficamos melhores amigos nas viagens com seu Belinão meio surrado, rumo a Festa do Doze ou a Paraty.

Qualquer lugar servia. Importante era esgotar aquela mistura de liberdade demais com responsabilidade de menos, uma combinação fervilhante que não tinha como durar muito tempo: logo me formei e vim pra São Paulo, uns anos depois, ele foi morar em Lisboa.

Com a Dutra no meio, nossos encontros ficaram mais esporádicos. Rarearam de vez com um oceano entre nós. Cumplicidade à distância, pois. Ele lia meus textos nas revistas, eu admirava sua prosa nos livros – foram 12, como “A Língua de Fora”, de onde peguei o verso de hoje que, na verdade, é a epígrafe.

Quando a gente se encontrava, éramos melhores amigos novamente. Em dezembro nos vimos, ele doce, genial e gaiato como sempre. Por isso, tomei um susto na noite de terça-feira, ao ser adicionado num grupo de Whatapp chamado “Cirurgia do Juva”.

Não mencionei antes este detalhe, porque ele mesmo não dava muita confiança pra doença que, desde a infância, limitava lenta e progressivamente os movimentos de seus dedos, mãos, braços, pernas e pescoço, enquanto enrijecia suas artérias.

Mandei uma mensagem. Pedi pra que ele não cometesse nenhuma loucura pela manhã, quando o cirurgião abriria seu coração pra trocar duas válvulas. Mas o sacana não me deu ouvidos e cometeu o desatino de partir, assim, de supetão. Saudade demais, Juva.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Luís de Camões, 1595

Se os cientistas não são capazes de chegar a um acordo sobre o que determina o fim da pandemia, tenho uma proposta: cardápio no QR code.

Quando o último restaurante finalmente abolir o menu no QR code, poderemos voltar a respirar tranquilamente. Quando o último bar resgatar seu cardápio ensebado, celebraremos o final da peste sem medo de recaída.

É um indicador certeiro.

Não pode ser distorcido por negacionismo ou subnotificações, não tem risco de apresentar falso negativo e, principalmente, não apresenta qualquer relação com o Marcelo Queiroga.

Saí pra almoçar outro dia. Tirava o celular do bolso, enquanto buscava com os olhos o quadradinho pixelado – alguns estabelecimentos se divertem escondendo o QR code dos clientes, aplicando o código nas reentrâncias mais insuspeitadas da mesa.

Pra minha surpresa, fui interrompido por um braço que esticava em minha direção um artefato arquelógico, prova material de uma civilização perdida: um cardápio adornado por untuosas marcas de dedos alheios.

O precipitado garçom, sem se dar conta da reconfortante nostalgia do momento, iniciou um remix de protocolos sanitários esfregando o menu com um pano – possivelmente mais engordurado que o próprio menu.

Por um instante, lembrei da vida como ela era.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, começa o nonagésimo-segundo soneto de Luís de Camões. Discordar, que há de? Admito, o cardápio no QR code teve seu momento. Diria mesmo que veio a calhar. Solução prática, quando a gente dava jeito até de comer sem tirar a máscara.

Tem suas vantagens, só que nenhuma me comove. Em tempos de inflação, por exemplo, fica mais fácil remarcar os preços num menu digital. Mas isso acaba não sendo realmente uma vantagem pra maioria das pessoas.

Sem falar que o cardápio no QR code obriga você a pegar o celular.

Aí mora o perigo. Em vez de aproveitar sua refeição e uma eventual companhia, acaba dando de cara com dezessete notificações. Ninguém resiste a notificações. Quando se dá conta, perdeu a fome e tá lá enfiado no telefone.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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