Maria Ribeiro
O eco que eu buscava
Antes, no meu peito, tocava um surdo desafinado, faltava um eco. Ter virado artista e trabalhar em turma me deu um CEP definitivo
Quando eu fui fazer teatro, isso no começo dos anos 90, o que eu mais buscava era companhia. Não que eu não tivesse amigos. Ao contrário, sempre estive rodeada de gente, e acho (quase) todo mundo interessante, mas em algum lugar – e eu não sabia qual – havia uma solidão que resistia a aniversários, chocolates, cenas da Lidia Brondi com o Fábio Jr. e ate à voz do Renato Russo cantando “Índios”. Eu ouvia os disco da Legião, pensava no garoto que eu gostava – muitas vezes ao seu lado – ia ao cinema com o pessoal da escola, viajava à praia nos finais de semana, tinha pai, mãe, irmãos, cachorros, e uma existência totalmente no estilo “filé mignon 2022”. No entanto, contudo, todavia, ainda assim, volta e meia, meu peito tocava um surdo desafinado. Faltava um eco.
Corta. Minha mãe tem 84 anos. Ela nunca gostou de falar a idade, mas agora não liga mais. Viúva depois de 30 anos de vida em comum com meu padrasto, sua vida sempre foi moldada pelo par amoroso. Tanto com meu pai, com quem chegou a completar Bodas de Prata – alguém por favor me explica o sentido dessa hierarquia? – quanto com Jean Pierre, seus dias foram gastos, ou aproveitados, dependendo do ponto de vista, com a ideia do “um pra um”. É bem verdade que minha genitora leu como ninguém. Aliás, leu e lê. Horas e horas, de segunda a segunda, em casa ou viajando, feliz ou triste, sozinha ou com os filhos, de revista de moda a Proust no original. Mas, por mais que o Dostoievski resuma toda a humanidade do mundo em cada parágrafo da sua obra, em alguns momentos um CPFzinho faz falta. Nem que seja pra se irritar ou, quem sabe ajeitar um cabelo fora do lugar – e que não é o seu. O outro, ninguém me tira da cabeça, é a religião certa.
Em alguns momentos um CPFzinho faz falta. Nem que seja pra se irritar ou, quem sabe, ajeitar um cabelo fora do lugar
Semana passada, fui jantar com duas amigas de infância: Isabel e Isabel. Comemos, conversamos, falamos dos rebentos e dos boys, discorremos sobre trabalho, grana, e dermatologista, e dançamos sozinhas até as cinco da manhã. Nós três. É que Isabel 1 mora fora do Brasil e a gente ficou querendo, Isabel 2 e eu, aproveitar cada segundo dessa ilusão inebriante que é gostar do mesmo refrão da Zizi Possi ou do Eurythmics. Combinamos de fazer a mesma coreografia até os 86, e de manter “Perigo” e “Here Comes the Rain Again” na nossa playlist “abril pós-pandemia” pelos próximos 40 anos. Que o tempo é rei mas perde pra Annie Lennox.
Não sei exatamente o que o teatro e a minha mãe têm em comum com o encontro da semana passada com as minhas amigas xarás. Eu sentei pra escrever um texto sobre como ter virado artista – o que quer que isso signifique – e, sobretudo, trabalhar em turma (obrigada, Domingos) me deu um CEP definitivo. “Minha terra tem palmeiras onde cantam meus amigos”, ou, “meu amor não cabe em uma dupla só”.
O eco que eu buscava tem vozes que não têm vergonha de dizer as coisas e de “sentir sem ensaio”, digamos assim. Às vezes, dá certo. Às vezes, não. Mas qualquer coisa tem a Annie Lennox e a Zizi Possi.
Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)
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