Bianca Santana
Nossa subordinação política
Enquanto adiamos urgências em nome do possível, abriremos espaço para que pão com leite condensado siga como símbolo de autenticidade e renovação política
Não é hora de falar sobre aborto. Nem de uma nova política de drogas. Muito menos de termos uma mulher negra candidata à Presidência da República. Precisamos derrotar o fascismo. Concordo. Só não podemos esquecer de trabalhar para que a hora chegue, a correlação de forças mude e tenhamos condições de criar acordos com toda a população brasileira que sustentem uma política de vida a todes. Ou, enquanto adiamos urgências em nome do possível, abriremos espaço para que pão com leite condensado siga como símbolo de autenticidade e renovação política.
Estive recentemente na Colômbia, acompanhando a reta final da campanha de Francia Marquez à prévias que definiriam candidaturas à presidência da república; e no Chile, testemunhando nas ruas a posse do presidente Gabriel Boric. Além de inúmeras reuniões e encontros com movimentos negros e indígenas, nossa comitiva de cerca de 15 ativistas de grupos que compõem a Coalizão Negra por Direitos buscava esperança e inspiração de caminhos. Nos nutrimos.
Uma mulher preta do campo, que se dedica há décadas a enfrentar o neoliberalismo destruidor da mineração, ex-empregada doméstica, advogada, feminista antirracista, mãe solteira, ativista dedicada a criar possibilidades de vida em um contexto de violência e morte, foi a segunda candidata mais votada da favorita coalizão do Pacto Histórico nas prévias das eleições presidenciais colombianas, com mais de 700 mil votos. Na atividade final da campanha de Francia em Bogotá, em um teatro que misturava jovens brancas universitárias a mulheres e homens do povo, seu discurso emocionava pela verdade das propostas de emancipação encarnadas em seu seu corpo. “Mulheres negras, da resistência ao poder, até que a dignidade seja costume” foi um mote importante de toda a campanha. As mulheres que resistem ao machismo e ao racismo são as que cuidam de todo mundo e precisam estar no poder não para inverterem sua posição em uma lógica de desigualdade, mas para promoverem possibilidades de vida, justiça e direitos para todo mundo.
Francia Marquez Camilo Erasso/Long Visual Press/Getty Images
Vestida com um tecido afro colorido, com seu cabelo crespo, sapato baixo e adornada por búzios, Francia manifestava uma presença tranquila sem medo de tratar de qualquer tema. “Levantamos nossa voz e dizemos ao patriarcado: nossos direitos não se debatem, se defendem.” Era sabido que Gustavo Petro, que liderava nas prévias e segue liderando todas as pesquisas eleitorais, seria o candidato à presidência pelo Pacto. Mas o desempenho de Francia nas urnas no dia 13 de março poderia garantir um ministério relevante ou, no melhor cenário, a vice-presidência. Dez dias depois, no dia 23, Francia foi anunciada como a candidata a vice.
As mulheres que resistem ao machismo e ao racismo precisam estar no poder para promoverem possibilidades de vida, justiça e direitos para todo mundo
No Chile, um homem eleito presidente aos 35 anos de idade é o mais velho — dos únicos com idade mínima para assumir o cargo — de seu grupo político. Forjado no movimento estudantil liderado por feministas, Gustavo Boric compôs um ministério com mais mulheres que homens, declarou um governo feminista e não contemporizou pautas importantes em seu discurso de posse: distribuição e riqueza, garantia de direitos humanos, compromisso com a América Latina, autonomia política internacional sem subordinação a potências, atenção à emergência climática, direitos de pescadores artesanais.
“Quero dizer, compatriotas, que vi seus rostos enquanto percorria nosso país: idosos cuja aposentadoria não é suficiente para viver porque alguns decidiram fazer da previdência um negócio. Aqueles que adoecem e suas famílias não têm como pagar os tratamentos. Quantos de vocês falaram conosco, nós nos olhamos nos olhos. As dos estudantes endividados, as dos camponeses sem água por causa da seca e dos saques. Das mulheres que cuidam de seus filhos com autismo que encontro em todos os lugares do Chile. Para seus parentes acamados, para seus bebês indefesos. As das famílias que ainda procuram seus detentos desaparecidos, que não deixaremos de procurar. As das dissidências e diversidades de gênero que foram discriminadas e excluídas por tanto tempo. Aqueles dos artistas que não podem viver do seu trabalho porque a cultura não é suficientemente valorizada no nosso país. Os dos líderes sociais que lutam pelo direito à moradia digna nas populações do Chile. As dos povos nativos despidos de suas terras, mas nunca, nunca de sua história. Os da classe média esgotada, os dos filhos do Sename (Serviço Nacional de Menores), nunca mais, nunca mais, os rostos das zonas mais isoladas do nosso país como Magallanes de onde venho, os de quem vive na miséria esquecida. Com você é o nosso compromisso”, afirmou Boric no Palácio de La Moneda, em Santiago, onde Allende foi visto com vida pela última vez, antes do bombardeio direcionado pelos militares golpistas que abriram caminhos para a ditadura de Pinochet.
A candidatura de Boric foi produto de uma frente amplíssima, construída com diálogo entre diferentes, mas sem abrir mão da agenda política de esquerda. Tanto Boric quanto Izquia Sanches, primeira ministra dos interiores da história do Chile, número dois do governo, defenderam propostas consideradas polêmicas que, aqui no Brasil, parecem precisar ficar fora das eleições. A radicalidade das propostas anunciada por quem esteve nas ruas como resistência nos últimos anos foi a autenticidade e a renovação política que convenceu a maior parte do povo. Sem espaço para pão com leite condensado.
Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É autora de 'Quando Me Descobri Negra'. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra por Direitos
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