O que aconteceu quando você deixou de atender o celular?
Com mensagens de texto, áudios e emojis substituindo as ligações de voz, perdemos a espontaneidade e a profundidade do diálogo ao vivo
O celular está tocando! E agora? Não atenda, nunca, jamais – eis a resposta de parte dos millenials e da maioria da geração Z, para quem a ligação (de um desconhecido ou não) virou quase um anúncio do apocalipse. Receber um telefonema significa, assim, que a) algo grave aconteceu, alguém morreu ou b) você será repreendido, demitido ou c) pior ainda, é telemarketing tomando seu tempo para oferecer um serviço que você não quer, quando não um robô que desligará depois de três segundos.
Assim, aos poucos e sem perceber, mudamos radicalmente nossa forma de lidar com as chamadas de voz. Se houve um tempo em que o telefone (fixo) era imperativo (tocou, se corria para atender), logo vieram o identificador de chamada, o celular e, por fim, os apps de mensagem, como WhatsApp – o que fulminou de vez o automatismo da resposta. Se for importante, reza o novo senso-comum, vão ligar de novo. Ou mandar mensagem. Ou e-mail. Entre fazer uma ligação e mandar um texto, 69% dos jovens preferem a segunda opção, segundo pesquisa da consultoria LivePerson feita em quatro continentes.+
Não à toa, o tempo gasto em ligações de celular diminuiu pela primeira vez na história. Com o boom no número de pessoas com smartphone e acesso à internet, tem-se o cenário ideal para o declínio da chamada de voz. Já há quem se pergunte se o celular deveria ser chamado de telefone – ou de computador de bolso. A chamada de voz virou algo tão distante de nossa realidade que 9% dos internautas brasileiros com smartphone sequer têm o ícone para fazer chamadas na homescreen do aparelho, como mostra a pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box de 2018.
Ligar é uma agressão imperdoável
O problema não é a voz: a troca de áudios (via Whatsapp, Telegram, Messenger) tem crescido, sobretudo no Brasil. Segundo estudo da consultoria Hibou, 91% dos entrevistados gravam áudios por preguiça de digitar, mesmo sem ter intimidade com o interlocutor. É o temor da interação ao vivo, de se explicar com o outro aguardando na linha – ou seja, do diálogo – o que nos leva a abraçar opções de comunicação que não ocorrem em tempo real.
“Teme-se a chamada de voz sincrônica porque ela não permite eliminar o risco de equívoco, de deslize ou um ato-falho”, diz o psicólogo Leonardo Goldberg, pesquisador do Núcleo de Estudos em Psicologia e Campo Digital da USP. Na troca de mensagens controlamos o que dizemos, como e quando – e ainda nos cercarmos de pegadas digitais: sabemos se a pessoa está online, se está digitando a resposta. Na ligação, não.
Para essa geração, ligar é algo agressivo, uma invasão da intimidade, quase um assédio
Tanto que há quem sue frio com a ideia de ligar e marcar uma consulta – imagine uma entrevista de emprego ou negociar um contrato. Contra e “ansiedade de ligação telefônica” (“phone call anxiety”), só o controle das interações parece dar conta. “Para essa geração, ligar é algo agressivo, uma invasão da intimidade, quase um assédio”, diz Goldberg.
Não que a tecnologia recente tenha inventado isso. Com o advento do telefone fixo, chegar na casa de alguém sem avisar, por exemplo, passou a ser um incômodo. “O smartphone apenas ressignificou simbolicamente o que nos incomoda atualmente.”
Os control freaks não atendem o celular
Antes mesmo de figurar nos telefones, as mídias sociais nos ensinaram a controlar em detalhe como nos apresentamos aos outros, diz à Gama a professora de linguística da American University Naomi Baron, especialista em linguagem e tecnologias e para quem o smartphone nos transformou em “control freaks” da comunicação. “Com a internet móvel e o smartphone oferecendo ainda mais opções de controle, seria apenas natural que aproveitássemos.”
Em pesquisas desde 2007, Baron percebe a mesma tendência: “a geração mais jovem prefere mensagens em vez de chamadas de voz, e isso graças ao controle que isso lhes dá sobre as conversas”. Em suma: “escrever permite editar, fazer uma curadoria da própria imagem, como fazemos no Facebook e outras redes.” E nem é mais uma escolha: fomos condicionados a isso pelas redes a editar tudo o que dizemos. Falar ao telefone é o oposto de tudo isso.
Já há quem se pergunte se o celular deveria ser chamado de telefone — ou de computador de bolso
Além de controlar a representação que fazemos de nós mesmos, gerimos também o tempo dispensado aos outros. Com o smartphone, usamos diversas plataformas para interagir com muita gente de formas distintas – e ainda lemos, vemos filme, navegamos no Instagram, fazemos compras… com tantos estímulos e demandas, ninguém merece nosso foco full time. Manda uma mensagem que bipa é OK. Ligar é falta de noção.
Vivemos, assim, o paradoxo atual do smartphone: o ringtone da chamada desperta angústia e abjeção em muita gente, enquanto o aviso sonoro da mensagem do Whatsapp ou o símbolo vermelho no ícone do Instagram dispara a dose de dopamina que nos faz estremecer de alegria. Justamente porque (achamos que) controlamos quando e como se comunicar.
“Estamos perdendo a capacidade de ser espontâneos e improvisar”
Mas ao trocarmos o ao vivo pelas mensagens, perdemos em profundidade no diálogo, diz à Gama o professor de comunicação da Universidade de Montreal, André H. Caron, autor do livro “Moving Cultures: Mobile Communication in Everyday Life”. Uma troca de texto ou áudio não tem a riqueza contextual, diz. Por isso usamos tantos emojis: “eles tentam compensar justamente essa perda nos signos que identificamos na conversa em tempo real.”
O que se traduz numa perda da capacidade de sermos espontâneos. “Podemos editar não só o que escrevemos, mas como: são muitas as identidades possíveis que assumimos, o que já prejudica a espontaneidade do que é dito”, diz Caron – algo que migrou das redes sociais para as conversas do dia a dia, por exemplo, no WhasApp.
Não é que esta geração não queira mais conversar ao vivo. Eles querem escolher os termos: quando, onde, como e com quem falar
O que tende a piorar: até o recrutamento para vaga de emprego têm sido feito por app. Quando for preciso lidar com uma situação inusitada, o que fazer? Estamos perdendo ao evitar oportunidades de diálogo direto, profissionais ou não, diz Baron. “O aspecto maravilhoso – e, às vezes, assustador – de uma conversa voz a voz é que não se pode predizer o que o outro vai falar e isso nos ensina a raciocinar mais rápido”, explica.
Que os millenials não compartilham o gosto dos baby boomers pela conversa é uma acusação antiga. Nos últimos anos, porém, tem havido uma ressurgência das chamadas por voz, diz Baron, sobretudo graças a ferramentas de chamada grátis, como WhatsApp. “Ligações têm papel esquizofrênico na vida dos millennials de hoje e, mais ainda, da geração Z”.
Não é que essa geração não queira mais conversar ao vivo. Eles querem escolher os termos: quando, onde, como e com quem falar. E só ligam após uma mensagem avisando, ou uma sequência de áudios, o diálogo ficando, por fim, reservado a um tipo muito específico, íntimo e importante de interação. Se a situação for controlada, o papo rola solto.
Um experimento do Yahoo Labs mostrou que os mais jovens vêm usando serviços de chamada por vídeo para conversar, às vezes sem usar a imagem. Nas chamadas longas, a câmera aponta para o teto. Talvez porque hoje uma “conversa” signifique uma miríade de modos de trocar informações: texto misturado a emojis e fotos, memes e stickers e áudios, vídeos e links e – se a ocasião marcar todas as caixinhas – até uma ligação.
A conversa apenas por voz já não satisfaz as necessidades de uma geração que cresceu com a multitarefa sendo a norma. Olhar apenas para a cara de alguém não dá conta dos anseios de um millenial. Ouvir só a voz, menos ainda. A chamada virou a sobremesa, não o prato principal.