Por que a gente fala assim no zap? — Gama Revista

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Por que a gente fala assim no zap?

©Otávio Gergely

Na vida real ou virtual, as pessoas buscam demarcar o grupo do qual fazem parte. O vocabulário que nasce e cresce online ajuda nessa tarefa

Laura Capelhuchnik 29 de Março de 2020

Sem o auxílio das expressões do rosto, dos gestos ou da oscilação no tom de voz, criamos novas regras de linguagem para nos fazer entender no WhatsApp, em fóruns da internet, nas redes sociais. Uma reação natural diante da necessidade de se comunicar em uma nova plataforma. Basta lembrar de “alô”, a saudação que nasceu dedicada ao telefone.

Modificar (às vezes abolir) a pontuação e criar novas grafias e expressões para estabelecer um diálogo online faz parte da tentativa de “restaurar nossos corpos na escrita“, como define a linguista americana Gretchen McCulloch, autora do livro “Because Internet”, sobre as novas regras de linguagem. É como se a linguagem formal tivesse “menos alma” do que a informal: quando falamos com um amigo pessoalmente, por exemplo, movemos as mãos, franzimos as sobrancelhas, sorrimos. No telefone, sem o apoio dos movimentos do corpo, temos a ajuda do tom e do volume da voz, das risadas e dos ruídos para passar os recados como achamos que eles devem ser passados. Já na troca de mensagens escritas, não há um sinal do corpo sequer. São mais escassos, portanto, os recursos para contextualizar a fala, deixá-la mais ou menos intensa, mais feliz ou mais irônica. E é nessa busca por contextualizações que uma nova linguagem repleta de memes entra em cena.

“Memes são conteúdos informacionais, jargões passados adiante sem que a gente consiga em grande medida rastrear sua origem. Essa é a definição basilar do que se conhece por meme“, explica Viktor Chagas, professor de comunicação da UFF (Universidade Federal Fluminense) e fundador do Museu de Memes, projeto responsável por reunir em um acervo online a produção nacional de memes e as pesquisas relacionadas ao tema.

“Tá serto” e “só que não”, por exemplo, têm sido as expressões favoritas na internet para demarcar ironia. Elas também entram na categoria meme. Assim como hashtags e as imagens com legendas que viralizam nas redes sociais.

O meme, hoje associado a um fenômeno típico da cultura digital, é, no entanto, uma categoria anterior à internet, criada para caracterizar a replicação das expressões culturais. O termo foi cunhado pelo biólogo Richard Dawkins, nos anos 1970. Ele identificou que, assim como nossos genes desempenham um papel na evolução biológica, uma unidade replicadora de conteúdo também existe na cultura. Na definição original, memes são ideias que se propagam na sociedade e ajudam a sustentar determinados padrões de comportamento: segundo os pesquisadores do Museu do Meme, músicas, moda, gastronomia e praticamente tudo o que conhecemos no ambiente cultural são memes, “dos jeans rasgados à tradição de cantar ‘Parabéns a você’ nos aniversários”.

Segundo Viktor Chagas, o primeiro aspecto importante para entender como algumas palavras ganham popularidade de uma hora para outra é a ideia de reconhecimento e pertencimento a determinadas comunidades, dentro e fora da internet.

“Se você fala uma determinada expressão, está se dirigindo a pessoas que também a usam e que, portanto, se identificam, se reconhecem de alguma forma”, explica Chagas. Era verdade: a gratidão que habita você de fato saúda a gratidão que habita todos os outros quando você a pronuncia na internet.

Muitas dessas gírias surgem na versão legendas de imagens, como o “ata” e “Sem tempo, irmão”. A expressão “Grande dia!”, que viralizou em grupos políticos de direita, por exemplo, é derivada de um jargão do presidente Jair Bolsonaro para comemorar suas vitórias políticas e as dificuldades da oposição. Tudo começou com um tuíte de Bolsonaro feito no dia em que o ex-deputado federal Jean Wyllys renunciou ao mandato e anunciou que deixaria o país. Ele repetiu a expressão nas redes sociais no dia da renúncia do ex-presidente da Bolívia Evo Morales. E a mensagem, acompanhada de um emoji de joinha, foi adotada pelos seguidores do presidente, em contextos descolados dos tuítes que a originaram, para denotar entusiasmo. São usadas em figurinhas, em comentários de fóruns, em mensagens do WhatsApp. “Grande dia!” ganhou ainda mais projeção ao ser apropriada por opositores políticos do governo, desta vez de maneira irônica, para ridicularizar seguidores da família Bolsonaro.

Gramáticas particulares também ascendem quando queremos nos diferenciar dos outros. É o caso do dialeto pajubá, falado pela comunidade LGBTQ+ no Brasil. Começou a ser usado entre os anos 1960 e 1970, como uma espécie de língua cifrada, para proteger seus falantes. Era um jeito de despistar a repressão durante o regime militar brasileiro, segundo Keyla Simpson, presidente da Atras (Associação de Travestis e Transexuais de Salvador), em entrevista à Lupa, publicação da Universidade Federal da Bahia.

A mágica acontece quando, do idioma cifrado, a palavra ganha uso em outros grupos e horizontes. E vai parar, por exemplo, em uma confusão durante um show da cantora Maria Bethânia. Em 2017, quando se apresentava no Rio de Janeiro, Bethânia foi chamada por um fã de “lacradora”. Ela se dirigiu à plateia depois de terminar a música e questionou: “Alguém fez uma indelicadeza a mim?”. O episódio depois foi esclarecido, e esperamos que a cantora tenha se familiarizado com o novo significado de lacre. E com a ideia de que, vinda de um fã, “lacradora” é uma palavra extremamente prestigiosa.

Expressões furam suas bolhas porque as comunidades se conversam e se reconhecem pelas relações sociais. Na medida em que pessoas se inserem em grupos, levam adiante suas expressões culturais, carregando parte do repertório para outros círculos. Vez ou outra, não só uma expressão se espalha por várias comunidades diferentes como também jargões de origens diversas se encontram no meio do caminho, resultando em belíssimas fusões.

Na vida real, isso não é lá muito novo. As gírias sempre estiveram por aí para dar identidade aos grupos sociais. A diferença é que WhatsApp, Facebook, Instagram e outros pontos de encontro online oferecem o que talvez sejam as melhores condições de temperatura e pressão já vistas para a sua proliferação: são inéditas a velocidade e a escala dos encontros entre as múltiplas comunidades e suas bagagens de memes. A internet não perdoa.