Atletas negros se posicionam politicamente no Brasil?
Sim. Após protestos nos EUA, público questiona postura de atletas negros no Brasil. Gama resgata a história de manifestações políticas realizadas por negros no futebol brasileiro
Após o brutal assassinato de George Floyd, em 25 de maio deste ano, atletas negros de todo o mundo foram as redes sociais protestar. Nomes como LeBron James, Lewis Hamilton, Kylian Mbappé, Serena Williams, Coco Gauff e até Michael Jordan, conhecido por sua omissão política, condenaram o assassinato.
Entretanto, uma ausência foi sentida por parte do público. Até o dia 2 de junho, Neymar, o camisa 10 da seleção brasileira, não havia se pronunciado sobre o assunto.
O astro passou a ser cobrado nas redes sociais, com direito a grandes influenciadores digitais o intimando nominalmente. A discussão sobre engajamento dos atletas em causas desse tipo vem acontecendo há algum tempo na área, o que já levou jornalistas e ex-jogadores a dizerem publicamente que futebol não é lugar de posicionamento político. O post de Neymar finalmente veio e com ele uma pergunta das redes: “Por que atletas negros brasileiros não se posicionam sobre racismo?”
Mas será que essa pergunta é justa? Para Marcelo Carvalho, criador e diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol a resposta é “não”. O diretor executivo do Observatório acredita que a sociedade se esquece dos atletas atuantes. “Diversos atletas já se manifestaram na história do Brasil. Hoje eles não são mais ouvidos. Existe um silenciamento e um apagamento dessa memória”, afirma Carvalho.
Do técnico Gentil Cardoso na década de 50 a Roger Machado, atual comandante do Bahia, muitos foram os negros que se posicionaram politicamente no esporte. Carvalho também cita o goleiro Aranha, o atacante Reinaldo do Atlético Mineiro e o lateral-esquerdo Wladimir, um dos líderes da Democracia Corintiana.
“Sócrates e Casagrande são brancos, mas onde está o Wladimir quando falamos da Democracia Corintiana? O movimento foi embranquecido com o tempo. Ícones negros são apagados para que não sirvam de exemplo.”
Marcelo acredita ser importante lembrar que, independentemente de seu posicionamento, o racismo acompanha Neymar onde quer que ele vá. “Quando exaltamos o craque, as pessoas lembram dele. Quando é algo negativo, elas lembram da cor dele.”
“O atleta negro de futebol sofreu racismo a vida toda. A partir do momento em que se torna um astro, passa a sofrer menos essas violências. Ao se posicionar, ele traz todas essas dores de volta. Será que eles querem reviver essa violência?”, questiona Carvalho.
A educação racial (ou a falta dela) também contribui para o sentimento de despertencimento. “É importante lembrar que diversos atletas saem de casa com 12 anos e vão viver em outras cidades, com dirigentes e técnicos que, em sua maioria, não são negros e não vão dialogar sobre racismo.”
Para Carvalho, essa é a grande diferença entre os esportes americanos e os brasileiros. “Boa parte dos atleta americanos frequenta a universidade antes de se tornar profissional. Mais do que um debate sobre conteúdo, a universidade propõe um debate sobre vida política e social.”
O criador do Observatório da Discriminação Racial — responsável pelo “Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol” — é contra a cobrança de posicionamentos. Ele acredita que isso tem de surgir de forma orgânica nos jogadores. “Por que em vez de cobrar posicionamento de alguns jogadores, não enaltecemos aqueles que estão se posicionando?” Ele aponta para uma nova geração de jogadores que cada vez mais se manifesta nas redes sociais.
Nas redes sociais, a nova geração do futebol brasileiro não decepcionou. Gabigol do Flamengo, Talles Magno do Vasco, Vinicius Jr. e Rodrygo do Real Madrid, foram alguns dos jogadores que protestaram sobre o assassinato de Floyd. “Esses rapazes continuam a dialogar com as comunidades em que viveram. Eles sabem que esse problema persiste e dividem essa vivência com o público. Eles decidiram não jogar o assunto para debaixo do tapete”, diz Carvalho.
Buscando resgatar a história de protestos antirracistas e políticos no futebol brasileiro, Gama reuniu três histórias que jamais devem ser esquecidas.
Roger Machado e Marco “Marcão” Aurélio de Oliveira
Na temporada 2019 do campeonato brasileiro, Roger Machado era uma figura rara nas áreas técnicas dos estádios de futebol. Somente ele e Marcão, na época técnico do Fluminense, eram negros e comandavam equipes da primeira divisão.
Na vigésima quinta rodada do campeonato, eles se encontraram no Maracanã para uma partida histórica. Ambos vestiam camisas pretas com os dizeres “chega de preconceito”, ação coordenada pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol.
O Bahia de Roger perdeu o jogo, mas na coletiva de imprensa, o técnico abordou de maneira contundente o racismo que domina o futebol e a sociedade brasileira. “Não deveria chamar a atenção dois treinadores negros se enfrentarem. Para mim, é a prova de que existe o preconceito”, afirmou Roger.
Wladimir Rodrigues dos Santos
Considerado por muitos o maior lateral-esquerdo da história do Corinthians, Wladimir é o jogador que mais atuou com a camisa do Timão. Ao todo, foram 805 partidas. Ele foi um dos líderes da Democracia Corintiana, movimento que revolucionou o futebol brasileiro.
Na década de 1980, os jogadores do Corinthians implementaram um novo tipo de gestão no clube. As decisões, das futuras contratações ao local da concentração, eram decididas por todos de maneira igualitária. O voto do técnico valia o mesmo que o voto dos jogadores.
Além da autogestão, o clube passou a estampar dizeres políticos em seus uniformes. Em plena ditadura militar, a camisa do Corinthians dizia “Dia 15 Vote” — se referindo a primeira votação direta para o governo estadual em 17 anos.
José Reinaldo de Lima
Com 255 gols em 475 jogos, Reinaldo é o maior artilheiro da história do Atlético Mineiro. Goleador, o atacante comemorava seus gols com o punho cerrado para cima, repetindo o gesto dos Panteras Negras.
Ele defendia eleições diretas e o fim do governo militar durante a década de 1970. Sua convocação era mal vista pela ditadura, que comandava a seleção na época, mas a pressão popular foi tamanha que o mineiro embarcou para uma partida na Argentina vestindo a camisa 9.
No primeiro jogo do Brasil da copa de 1978, Reinaldo anotou um gol e comemorou com o punho em riste. No jogo seguinte, já estava no banco. É que segundo relata em sua biografia, “Punho Cerrado”, ele havia sido instruído pelo governo militar a não comemorar seus gols daquela maneira. A frase, dita pelo presidente Ernesto Geisel, foi “Vai jogar bola, garoto. Deixa que política a gente faz”.
Maior artilheira da história das Copas e seis vezes melhor jogadora do mundo, Marta dispensa apresentações. Entretanto, seu currículo não foi o suficiente para lhe render um patrocínio satisfatório na Copa do Mundo de 2019.
Descontente com as propostas das grandes empresas de esporte, que ofereceram a ela um valor muito abaixo do pago a futebolistas homens, Marta optou por trajar uma chuteira preta simples, sem marca, com apenas um símbolo: o sinal de igual da campanha “Go Equal”.
O movimento, do qual Marta é uma das embaixadoras, tem o objetivo de discutir o machismo no meio do futebol. Ao comemorar seu 16º gol na Copa do Mundo, marca que a elevou a maior artilheira da competição, Marta apontou para sua chuteira em um pedido por igualdade.
Na mesma toada, Cristiane Rozeira, a maior artilheira de futebol em Jogos Olímpicos é um símbolo da seleção nacional. Por isso foi um choque quando, aos 32 anos, anunciou que estava se aposentando da canarinho antes da copa de 2019.
Lesões? Não. O motivo foi a demissão da treinadora Emily Lima, a primeira mulher a comandar o time feminino da CBF. No seu Instagram, a jogadora demonstrou estar chateada com a troca súbita de Emily – que não ficou um ano no cargo – e afirmou que estava se despedindo da amarelinha.
“Simplesmente tiraram essa comissão em pouquíssimo tempo, todas atletas estavam gostando. Sem entender. Todas as outras que passaram tiveram muito tempo de trabalho, um ciclo grande. E essa não teve esse tempo de trabalho. Só porque era mulher?”, indagou nas redes sociais.
Após um ano afastada, Cristiane voltou a seleção para a Copa América de 2018. Segundo ela, “eu sou meio teimosa. Gosto de brigar por algumas coisas. Fiquei do lado de fora por um tempo e vi as portas se fecharem. Voltei para ter voz aqui dentro“, afirmou a jogadora em entrevista ao Globo.