Make para quem não vê
Para pessoas com deficiência visual, a automaquiagem apresenta uma barreira além da aplicação do produto: a falta de acessibilidade na embalagem que o acompanha
Em uma penteadeira, uma pessoa com deficiência visual decide se dedicar à automaquiagem e, tateando os produtos com cuidado, relembra dicas pesquisadas no YouTube e em podcasts. Na busca por um produto específico, esbarra em um frasco cilíndrico de base, que rola pela mesa e cai no chão. Depois de tatear o piso e não achar o item, a saída é pedir ajuda a uma pessoa com visão (chamados de videntes) — e abrir mão da própria autonomia.
A cena é mais do que comum entre pessoas com deficiência visual com gosto pela beleza. Iniciativas como o podcast “Sentidos da Beleza”, do maquiador profissional Tássio Santos, ajudam a aproximar um público com limitações de visão ao mundo da make por meio de dicas de tato para passar o produto no rosto. Mas apesar das técnicas e sugestões, como a contagem de vezes da aplicação do produto de cada lado do rosto e a utilização de produtos em pó em vez dos líquidos, ainda existe um impasse para a autossuficiência de pessoas com deficiência visual para o uso de make: a experiência sensorial dos frascos.
A youtuber canadense Molly Burke, que convive com a doença degenerativa retinite pigmentosa, narrou ao canal da marca de cosméticos Allure a sua experiência: “Obviamente, quando algo rola e cai no chão e você pode ver, você procura e pega. Mas quando acontece conosco, temos que nos apoiar nas mãos e joelhos para procurar”, explicou. Dentre os acertos citados por Molly, os frascos com textura e as fragrâncias específicas servem para uma comunicação mais abrangente entre consumidores.
Existe um impasse para a autossuficiência de pessoas com deficiência visual para o uso de make: a experiência sensorial dos frascos
Essas seriam uma alternativa até mais eficiente que o braille, considerando que a linguagem não é aderida por todos os deficientes visuais. Isso porque apenas 3% de 6,5 milhões de brasileiros com deficiência visual lidam com a perda completa da visão, de acordo com um estudo do IBGE. Ao lidar com limitações que não causam a perda completa das capacidades visuais, pessoas com baixa visão que possuem alguma noção de luz, profundidade e cor costumam optar pelo uso dos sentidos no dia a dia, especialmente o tato.
Para pessoas que não enxergam e dependem das habilidades táteis para se maquiar, é também fundamental que as embalagens sejam amigáveis. O uso de embalagens lisas, sem cheiro, sem detalhes em alto-relevo e sem adaptações táteis por empresas de beleza são uma barreira a mais.
Obstáculos palpáveis
A assistente social Diana Barroso, de 43 anos, foi diagnosticada aos 8 anos com a doença de Stargardt, uma condição degenerativa da retina. Ela acreditava que a maquiagem, mais cedo ou mais tarde, se tornaria uma atividade impossível. “Eu sou uma pessoa vaidosa e gosto de me maquiar, e temia ter que abrir mão da maquiagem”, contou. A relação com o hobbie mudou após a perda da noção de cor, e a necessidade de produtos com uma comunicação tátil se tornou vital. Enquanto morava com a mãe, Diana aprendeu a usar o tato e a mãe ajudava a identificar as cores.
É uma questão de autoimagem e do meu lugar enquanto pessoa com deficiência visual numa sociedade que prega que uma mulher como eu não tem vaidade
Para Diana, a relação com a maquiagem, além da estética, transita pela autossuficiência, pela autoafirmação e pelo autocontrole em uma sociedade capacitista. Ela explica que mais que um exercício de vaidade, o engajamento na maquiagem cumpre papel importante na construção da autoestima. “É uma questão de autoimagem e do meu lugar enquanto pessoa com deficiência visual numa sociedade que prega que uma mulher como eu não tem vaidade”, diz.
Ainda convivendo com a perda gradativa da visão, Diana hoje participa de lives e workshops sobre a deficiência visual, e segue uma rotina de maquiagem com cuidados. “Comecei a procurar produtos com pouca pigmentação para não parecer uma palhaça quando exagerar. Passei a buscar também atendimento para ter certeza sobre a cor e o toque, e entender que produto estou levando de fato.”
Custo de produção x acessibilidade
O uso de embalagens com variedade de texturas e mais acessíveis é contabilizado como embalagens premium, de acordo com o estudo da Mordor Intelligence. Além do custo ser mais alto, há uma subvalorização do designer e do potencial de consumo das pessoas com deficiência, afirma André Demaison, mestre e professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). “A indústria é bem ‘Tempos Modernos’ [diz em referência ao filme de 1936 de Charles Chaplin, que mostra a revolução industrial]. E moral da história: não evolui. Existem necessidades, pesquisadores, ideias e pessoas que podem implantar essas ideias, mas entra no grande gargalo da falta de investimento empresarial”, diz.
Pesquisa da Euromonitor de 2020 aponta para uma a maior cobrança por inclusão na experiência do cliente
No Brasil, apesar da existência da norma ABNT 9050, que orienta a acessibilidade a prédios públicos, a comunicação visual acessível ainda não é regulamentada. A adoção de medidas acessíveis por marcas fica a critério das próprias empresas. A agência Euromonitor International publicou em 2020 estudo que aponta para uma maior cobrança por inclusão na experiência do cliente.
Um complicador: para aumentar os componentes táteis de um produto, aumenta-se também a utilização do plástico, a matéria-base mais utilizada em embalagens comuns. A saída encontrada pela linha de produtos capilares Herbal Essences foi gravar círculos e listras nos frascos associados à primeira letra de cada item, assim o usuário pode saber se toca o shampoo ou o condicionador.
Outra tendência é a extensão do uso de dispositivos tecnológicos para a interação com embalagens. Henry Assef, especialista em realidade aumentada e virtual, citou o uso da tecnologia como ferramenta, como já ocorre com o QR code, para prover a consumidores com deficiência o acesso a legendas, vídeos e áudios especiais.
Iniciativas de mudança
No Brasil, a youtuber e empresária Themis Briand criou a marca Beleza Para Todos inspirada na amiga Thaís Frota, que convive com a Amaurose Congênita de Lebe, uma doença degenerativa da retina. Em uma viagem, a amiga pediu para Themis maquiá-la e a experiência abriu interesse para a rotina de maquiagem. A youtuber então elaborou dicas básicas para a automaquiagem de Thaís: um dedo do lado do nariz para marcar o limite do blush, a contagem de passadas do dedo na sombra, a textura da boca com e sem batom. A ideia virou série de vídeos para o YouTube. “Quando a Thaís conseguiu se maquiar sozinha, eu propus que a gente compartilhasse. Imagina o tanto de mulher nesse Brasil na mesma situação e com o mesmo desejo?”, contou.
O sucesso dos vídeos rendeu uma colaboração com a marca cearense Lab You para o desenvolvimento de um batom acessível. Os batons contém um adesivo com um código QR que, ao ser escaneado com o celular, redireciona para um vídeo que explica a cor, a textura do produto e como fazer a aplicação. “As embalagens são de baixo custo porque só precisava adicionar o QR Code e fazer o vídeo. Se fosse o braille, teria que ter uma impressora especial e poderia custar mais. O adesivo simplificou o processo”, explica Themis.
Existe um lema chamado ‘nada sobre nós sem nós’. Tudo que é feito para nós ou falado sobre nós tem que ter a nossa participação
Quando se fala em acessibilidade, a ideia é de que algo que seja viável para pessoas com deficiência seja direcionado apenas para pessoas com deficiência, explica Themis. “Tive um feedback de pessoas idosas com dificuldade para enxergar que usavam as técnicas.”
A assistente social Diana Barroso aponta que o problema seria mais brando com a presença de pessoas com deficiência no desenvolvimento desses produtos. “Existe um lema chamado ‘nada sobre nós sem nós’. Tudo que é feito para nós ou falado sobre nós tem que ter a nossa participação. É muito importante que as pessoas saibam o que nós estamos achando e a nossa dificuldade”.