Tati Bernardi: 'Me exponho o tempo todo porque assim rio antes que os outros' — Gama Revista
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Renato Parada

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Conversas

Tati Bernardi: 'Me exponho o tempo todo porque assim rio antes que os outros'

Escritora referência da autoficção fala sobre o que se quer esconder quando se mostra tudo

Amauri Arrais 31 de Outubro de 2021

Tati Bernardi: ‘Me exponho o tempo todo porque assim rio antes que os outros’

Amauri Arrais 31 de Outubro de 2021
Renato Parada

Escritora referência da autoficção fala sobre o que se quer esconder quando se mostra tudo

Difícil separar o que é público e o que é privado quando se trata de Tati Bernardi. A escritora, roteirista e colunista da Folha de S.Paulo é uma referência da autoficção, um gênero literário que se tornou muito popular nos últimos anos, em que o autor narra suas experiências em primeira pessoa, na fronteira com o relato biográfico.

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Trecho de livro: “Você Nunca Mais Vai Ficar Sozinha”

Há muito de ficção nas personagens de “Depois a Louca Sou Eu”, best-seller que virou filme, e também em Karine, protagonista do seu último romance “Você Nunca Mais Vai Ficar Sozinha”, uma mulher na delicada transição de filha para mãe. Mas também há muito de Tati, suas neuroses, angústias e relações em seus livros, colunas (são três atualmente) e podcasts.

Por trás de tanta exposição, a paulistana de 42 anos diz que há uma timidez crônica, um prazer imenso em rir do próprio ridículo e também uma estratégia de defesa. “Sou a louca de querer falar de tudo que eu estou sentindo ou pensando, mas também sou extremamente tímida. Acho que o tanto que me exponho é uma proteção também. Faço o exercício de me expor porque aí rio [de mim] antes dos outros”.

Sou a louca de querer falar de tudo que eu estou sentindo ou pensando, mas também sou extremamente tímida

Em terapia há 15 anos, e também uma estudante interessada de psicanálise, Tati tornou ainda mais públicas algumas dessas questões no podcast Meu Inconsciente Coletivo, em sua terceira temporada, no qual simula uma sessão aberta de análise.

Tanta exposição tem seu preço, claro. Mas embora já tenha irritado a mãe, o marido e até sofrido ameaça de processo de ex, a escritora consegue se conectar com um público cada vez maior, que se identifica com suas dores e perrengues cotidianos. “Estou falando de mim desesperadamente, mas me conecto com os outros, não é um mimimi egocêntrico”, afirma. “Falar de uma angústia minha pode me conectar de uma forma muito mais profunda com uma mulher preta periférica ou indígena do que fazer uma fala de duas horas pedindo desculpa.”

Na conversa a seguir, Tati fala mais sobre o prazer de cruzar a borda entre realidade e ficção, conta sobre o único texto de que se arrependeu e também responde à pergunta que fez em um dos episódios do seu podcast-divã: o que escondemos quando mostramos tudo?

Estou na terapia há 15 anos e a grande pergunta que eu ainda tenho que entender é sobre o prazer imenso que tenho em ser o personagem que escrevo

  • G |Você já disse que a vida de casada atrapalhou um pouco sua literatura porque dá menos matéria-prima do que a de solteira e também porque não quer magoar seu marido. Mudou a forma como você escreve, o que revela?

    Tati Bernardi |

    Tem uma coisa muito forte em mim de me expor ao ridículo, de escrever sobre tudo que eu acho que é uma falha em mim, um buraco e, principalmente, de expor ao ridículo meus desejos, meus rompantes. Acabei de entregar um texto para a Folha que me expõe totalmente ao ridículo, falando de como agora que a vida está voltando ao normal, eu encontro as pessoas e não sei se quero lamber a cara delas ou sair correndo porque ficamos muito tempo sem conviver com outros seres humanos. Me dá um prazer enorme escrever uma coluna que me exponha assim. Acho que isso é um pouco porque, já que eu vou falar de mim, então que ao menos seja para tirar sarro, me tirar de um lugar de muito egocentrismo. Agora, para ser muito sincera, eu estou na terapia há uns 15 anos e a grande pergunta que eu ainda tenho que entender é sobre o prazer imenso que eu tenho em ser de fato o personagem que eu escrevo. Tem uma passagem na minha vida superimportante de quando fui colaboradora da Maria Adelaide Amaral na novela “Sangue Bom”. Um dia ela me chamou na casa dela e falou: “Eu amo sua coluna na Folha, amo seus livros, você escreve muito bem, mas você não sabe escrever nenhum personagem que não se identifique”. Fiquei arrasada porque meu sonho era trabalhar com novela. E ela falou para mim que uma voz tão forte quanto a minha na essência é uma limitação para outras coisas. É quase como se, se eu parasse de escrever sobre mim, eu não sei muito meu lugar no mundo. E junto com a exposição toda que faço de mim, vai de lambuja a pessoa com quem eu estou me relacionando, minha mãe, meu pai, minha filha, que quando crescer provavelmente vai me processar. Tem um preço a se pagar por isso.

  • G |Seu marido já teve direito de resposta no podcast Calcinha Larga, mas te elogiou. Era real o direito, ele reclama da exposição?

    TB |

    O Pedro é uma pessoa infinitamente de melhor caráter do que eu, mais maduro, ele não tem esse veneno dentro dele. A graça do direito de resposta foi que eu fiquei do lado dele falando: “Me detona!” As pessoas falaram que ele foi muito esperto porque, imagina se ele me detona… O Calcinha Larga está sempre em quinto lugar dos podcasts mais ouvidos. Mas não foi porque ele é esperto, é porque ele não é essa pessoa, o bullying não está dentro dele. Eu venho de uma família que só ama se faz bullying. E eu devo isso a eles, porque é uma característica que me fez sobreviver muito em mercados machistas, me fez construir uma carreira. Eu tenho um olhar muito aguçado para transformar as pessoas à minha volta em crônicas. Isso tem um lado bom e um lado ruim. Agora, 90% do tempo eu faço isso comigo, já que eu tenho esse talento venenoso, que pelo menos ele se volte mais contra mim.

  • G |Você também já teve que explicar para as pessoas que não passou por todas as situações da personagem de “Depois a Louca Sou Eu”, que não deu uma entrevista chapada de remédios, por exemplo. Ainda há muita confusão sobre quem escreve em primeira pessoa?

    TB |

    Eu tive crise de pânico e, de toda situação que tem ali no livro, 20% aconteceu. Agora, eu exagero para a coisa virar livro, filme e crônica. O “Depois a Louca Sou Eu” sou eu passando mal de crise de ansiedade em 200 páginas. Quando quiseram transformar em filme, falei que ia ficar insuportável. Uma branca da zona oeste com crise de pânico para fazer uma ponte aérea. Até para escrever o livro eu travei, mas no fim foi uma identificação com todas as idades, classes sociais e gêneros. O livro vendeu 50 mil cópias. Ali tem uma base de verdade e muito exagero. Essa mistura é um pouco o que eu quero causar: que as pessoas leiam tudo o que eu escrevo e tenham a certeza absoluta de que me aconteceu. Mesmo em uma história de ficção, se não acho que aquilo está acontecendo com o autor, o livro não me pegou. Nunca quis escrever livro para ter uma resenha de um professor da Unicamp, ser traduzido para o húngaro e 12 pessoas comprarem. Queria que as pessoas me lessem e acho que também me confundi com o personagem no desespero de me conectar ao maior número possível de pessoas.

Quando você conta um sonho ao psicanalista, nunca é 100% a verdade, tem sua fantasia misturada ali. Isso já é autoficção

 Renato Parada

  • G |O francês Édouard Louis, de quem você é fã, já enfrentou processo e se indispôs com a família pelos relatos de autoficção que publicou. Você já sofreu algum tipo de retaliação de alguém citado em seus textos?

    TB |

    Tive um namorado, advogado, que quis me processar. E ele era aquela pessoa lisa, sabe? Mineirinho, come quieto, estava praticamente morando na minha casa, mas tinha sempre um tio que visitava, um trabalho com reuniões até meia-noite… Eu estava ocupada com um monte de trabalho e um dia resolvi dar uma olhada no celular e descobri que ele tinha um monte de mulher ao mesmo tempo. Na cidade mineira dele tinha um doce chamado doçurinha, que ele sempre trazia. E aí eu fiz uma crônica comparando ele ao doce, “O Doçurinha”, dando todas as características que as pessoas iam reconhecê-lo. Ele estava em uma viagem a trabalho fora do país e me ligou 1h da manhã falando que ia me processar. Eu perguntei: “Vai me processar como se não tem seu nome?” “Mas sou eu!” Aí eu falei: “Então essa é a prova de que você não vale nada!” A gente acabou rindo, ficou amigo. Quando eu lancei meu último livro, “Você Nunca Mais Vai Ficar Sozinha”, a minha mãe ficou uns dois meses sem falar comigo. Ela me ligou e disse: “Eu estou mal pelo tanto da personagem que sou eu e por tudo que não sou eu”. E eu falei: “Mãe, você acabou de definir a autoficção”. Nunca foi dito com todas as palavras, mas acho que alguns relacionamentos meus acabaram porque a pessoa não deu conta de pensar que podia ser exposta, sabe? E o Pedro está bem de saco cheio também, essa que é a verdade. A gente está junto há nove anos, faz uns três anos que ele não lê nada.

  • G |Como ensinar alguém a escrever autoficção? É preciso abrir mão da privacidade para escrever esse gênero?

    TB |

    O meu curso [sobre autoficção] já está na décima quinta turma. Começou com 30 pessoas, agora tem 200. Ele é fruto de uma pesquisa intensa. Eu estava fazendo como ouvinte um mestrado em psicanálise, com a ideia de fazer um mestrado sobre autoficção e psicanálise, que eu acho que tem tudo a ver. Quando você vai contar um sonho para um psicanalista, ou qualquer coisa da sua vida, você nunca está contando 100% a verdade, tem sua fantasia misturada ali e para mim isso já é autoficção. Depois, acho que Freud ele era um baita escritor, vários casos eu acho que ele inventava. Nessas turmas todas, teve uma menina só que reclamou. Me escreveu dizendo: “Eu achei que eu ia aprender algo específico, mas você não me ensinou nada. Eu não saí do curso uma escritora”. E eu não acredito nisso. Se um curso tem a pretensão de que você saia um escritor, é uma enganação. O que eu acredito é que eu, que já tenho 42 anos, escrevo desde os 16 e li muito, possa apresentar livros que fizeram parte da minha formação como escritora. Falo do que eu li, conto como escrevi meus livros, como destravei algumas vezes. O curso é para discutir obras e não ensinar a colocar travessão e vírgula, você não vai sair um escritor. Falo durante três horas e meia e no final, quando abro para perguntas, 80% das pessoas me perguntam: “Como eu faço para ter coragem de me expor?” O que eu respondo é: Você pode optar por proteger ao máximo as pessoas. Se você quer falar de uma mulher, coloca que é um homem, muda a idade, a cidade. Você pode inclusive chamar isso de autoficção, eu não vejo problema nenhum. Porque tem uma história ali que é uma base verdadeira, desde que você escreva em primeira pessoa. Mas digo também que eu adoro a adrenalina do risco que vou correr. São coisas separadas: sou uma escritora e gosto de me expor.

  • G |O que você não quer mostrar ou abordar no trabalho de jeito nenhum? Já se arrependeu de algo que escreveu?

    TB |

    O “Você Nunca Mais Vai Ficar Sozinha” eu demorei três anos para escrever. A princípio ele era uma relação mãe e filha. Eu tinha lido na versão em inglês o livro “Afetos Ferozes”, da Vivian Gornick, e eu enlouqueci com esse livro porque é sobre uma mulher que é obcecada pela mãe, apaixonada, mas só briga com ela e tem uma relação super difícil. Falei “eu quero escrever um livro assim” porque é a relação que eu tenho com a minha mãe. Fiquei um ano escrevendo, pensando se eu iria magoá-la. Ao mesmo tempo o editor, para me sacanear, dizia: “Escreve e a gente guarda e lança só quando ela morrer” e eu dizia que não tinha graça, porque a graça era provocá-la. Então eu engravidei de uma menina e aí o livro perdeu totalmente o sentido. Até um dia antes de eu engravidar, com 37 anos, me via ainda meio como uma menina querendo o amor da mãe. E assim que eu engravidei pensei que o livro seria sobre o limbo de uma mulher que tem medo e ao mesmo tempo quer muito ser igual à mãe dela para a filha. Travei porque fiquei pensando que iria expor que achei a gravidez difícil, que minha filha ia ler isso. Com muita terapia eu fui entender que você não precisa amar a gravidez para ser boa mãe. Agora arrependimento mesmo eu tenho de um texto que eu fiz para a [revista] VIP. Quando essa nova onda feminista começou, há uns dez anos, eu fiquei meio com preguiça. Aí comecei a ler os livros e pirei. Mas antes disso, eu tinha essa coluna e fazia muito texto sacaneando mulher, me identificava com o agressor. Me arrependo especificamente de uma chamada “Mulheres se odeiam”, em que falava de mulheres no trabalho que não são amigas e competem o tempo inteiro, que é o que o machismo faz a gente acreditar. Essa é a única coisa que eu escrevi na minha vida inteira que me arrependo.

Estou falando de mim desesperadamente mas me conecto com os outros, não é um mimimi egocêntrico

  • G |Você falou que temia o estereótipo da mulher branca da zona oeste falando de si no início. Hoje quando vai escrever uma coluna ou um livro novo tem uma preocupação de ser mais inclusiva?

    TB |

    Na minha crônica, nos meus textos, a maneira que eu achei de ser mais inclusiva é rir do meu “white people problems”, falar “tanto problema no mundo e eu irritada porque eu acho que minha bochecha está flácida depois dos 40”. Mas para o meu conforto eu descobri que toda mulher se identifica. Branca, pobre, preta, rica, a bochecha vai caindo, envelhecer não é fácil, a maternidade é um perrengue, todo mundo tem problema com a mãe. Tem uma coisa que eu descobri que é meio universal. Estou falando de mim desesperadamente mas me conecto com os outros, não é um mimimi egocêntrico. No “Depois a Louca Sou Eu”, eu pensava que iriam me julgar porque é uma branca da zona oeste com dificuldade de pegar um avião para ir trabalhar na Globo. Mas recebi mensagens de mulher preta, pobre. Dei um curso gratuito semana passada para estudantes de cinema indígena e fiquei com medo de falar merda. Comecei a falar sobre porque eu escrevia em primeira pessoa, falei durante duas horas e, quando eu abri as câmeras, estavam todos emocionados, conectados comigo, falando que queriam escrever sobre as histórias deles, achei isso lindo. Acho que militar 100% do tempo não necessariamente é estar conectado. Falar de uma angústia minha pode conectar de uma forma muito mais profunda com uma mulher preta periférica ou indígena do que fazer uma fala de duas horas pedindo desculpa, que é a vontade que dá.

  • G |Hoje há uma cobrança para que pessoas públicas se posicionem sobre vários temas. Você não deve ter esse tipo de problema, mas imagino que tenha do contrário, por expor demais as opiniões. É difícil decidir o que tornar público?

    TB |

    Na época que a Dilma era presidente, tinha uma coisa de uma cobrança para eu militar pelas feministas, por alguma coisa que o governo tinha feito. Eu falava que queria escrever meus livros, falar de crise de pânico, de sexo, de briga com a minha mãe, de vontade de ser mãe, de um trânsito que eu peguei… Eu não sou obrigada a militar. Tenho uma vida feminista, mas não quero militar sobre feminismo. Mas aí o Bolsonaro está aí e me veio uma vontade de militar o tempo inteiro, porque uma pessoa que não se coloca politicamente contra um governo de extrema-direita, eu não consigo perder dez segundos do meu tempo. Não tenho capacidade de escrever de política na minha coluna na Folha, por exemplo, não é a minha formação, meu interesse. Mas mesmo que eu faça uma crônica sobre um dia no parque com a minha filha, eu vou dar um jeito de meter um “Fora Bolsonaro” ali. Então, continuo no meu estilo, mas acho que esse governo obrigou qualquer pessoa decente a militar contra ele.

  • G |Queria te devolver a pergunta de um dos episódios do Meu Inconsciente Coletivo: o que escondemos quando mostramos tudo? Você chegou a essa resposta sobre a sua caixa preta?

    TB |

    Tenho falado muito sobre isso com meu analista novo, que aliás é o melhor analista que eu já tive. A gente fala muito de algo que a gente vai criar ali que eu não vou ter vontade de sair e escrever uma crônica. Ele falou que percebe que quando vai dando cinco minutos para acabar a sessão, eu começo a querer fazer um fechamento engraçado sobre tudo que falei como se fosse uma crônica. Quando percebe que eu estou fazendo isso, ele fala: “Não vai até o final da crônica”. A gente está na luta de achar o que é esse espaço privado. Sou a louca de querer falar de tudo o que eu estou sentindo e pensando, mas também tem uma coisa muito interessante: eu sou extremamente tímida. Tive uma depressão profunda quando fui morar no Rio porque mudei de cidade, emprego e profissão, as pessoas não sabiam quem eu era, não tinham lido nada meu. O que eu escondo quando eu mostro tudo é que na verdade eu estou apavorada, sem saber o que tenho que fazer. Exponho o tempo inteiro que não tenho mestrado, que tenho coluna na Folha e fiz uma faculdade meio merda, e é o que eu mais escondo. Acho que faço o exercício de expor porque aí eu rio antes dos outros. Mas tenho que parar de rir de mim, perceber que já cheguei a algum lugar e posso descansar um pouco.