Sharenting e os problemas em expor os filhos na internet — Gama Revista
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Ilustração Mariana Simonetti

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Filhos

Já postou uma foto do seu filho hoje?

Compartilhamento excessivo de imagens e informações dos filhos nas redes, o ‘sharenting’, é questionado por especialistas e pode trazer problemas

Leonardo Neiva 31 de Outubro de 2021
Ilustração Mariana Simonetti

Já postou uma foto do seu filho hoje?

Compartilhamento excessivo de imagens e informações dos filhos nas redes, o ‘sharenting’, é questionado por especialistas e pode trazer problemas

Leonardo Neiva 31 de Outubro de 2021

Tem momentos na vida de uma criança que merecem ser emoldurados. Então por que não tirar uma foto rapidinho e compartilhar com outros familiares e amigos, que com certeza também vão se derreter com tamanha fofura? Aliás, por que não compartilhar logo com o mundo? Afinal, o que é bom e bonito, o que deixa a gente mais leve é para ser mostrado. Ou não?

Não é difícil acompanhar o raciocínio de pais que compartilham com frequência fotos e informações sobre os filhos nas redes sociais. Além do mais, as próprias redes parecem estar de braços abertos para esse tipo de postagem.

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No meio disso, tem até aqueles que se empolgam e criam perfis nas redes para crianças que ainda nem desenvolveram coordenação motora suficiente para digitar. Ou os que incentivam ativamente os pequenos a abrir o coração para uma plateia online de desconhecidos.

A prática de expor imagens e informações dos filhos pequenos na internet, que ficou conhecida pela expressão em inglês “sharenting”, é cada vez mais comum em todo o mundo, mas não tem sido vista com bons olhos por autoridades no assunto, como especialistas em saúde, psicologia infantil e em segurança de dados. Entre os muitos problemas, estão a exposição do jovem ou adolescente a uma fama indesejável, a exploração comercial desses dados e até a possibilidade de ataques e abusos dentro ou fora da internet.

De um lado do ringue, está a liberdade de expressão dos pais. Do lado oposto, os direitos das crianças em relação à sua privacidade

O principal dilema disso tudo se encontra num confronto entre direitos, afirma a consultora de direitos digitais Elora Fernandes. De um lado do ringue, está a liberdade de expressão dos pais, que juridicamente também engloba os filhos menores de idade, como dependentes. Do lado oposto, ficam os direitos das crianças em relação à sua privacidade e a suas informações pessoais. “A autoridade parental tem o poder e o dever de agir de acordo com o melhor interesse da criança”, diz Elora, que é doutoranda em direito civil pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). “Nesse caso, os direitos humanos deveriam prevalecer sobre o direito à liberdade de expressão.”

O impacto psicológico

A exposição na internet quando é excessiva tem consequências para a vida de crianças e adolescentes. A psicóloga Fernanda Mishima, especializada no comportamento infantil, destaca o óbvio: se muitos adultos hoje já sofrem com isso, os jovens estão ainda menos preparados para lidar com os retornos desfavoráveis de ser expostos nas redes sociais. Basta imaginar uma criança frente a frente com as hordas de haters que infestam a internet. “Isso pode deixar a criança mais insegura, expondo seus pontos fracos para todo mundo”, diz Fernanda, que atua no Departamento de Psicologia da USP.

Vale frisar que a enorme maioria desses post é feita de forma inocente por pais que só querem compartilhar com o mundo o quanto seus filhos são maravilhosos, e acaba não tendo nenhuma consequência negativa. Algumas vezes, no entanto, essa exposição está mais baseada num desejo por likes ou, em casos mais específicos, na expectativa de algum retorno financeiro, sem se dar conta de que as necessidades dos jovens podem ir na contramão disso.

Nesses últimos exemplos, a psicóloga lembra que a criança pode até aprovar essa prática no início, mas quando entra na adolescência, idade em que os jovens costumam ficar mais introspectivos, ela pode se ressentir. “Os pais precisam se perguntar se essa experiência está sendo feita pelo desejo do filho ou dos próprios pais.”

Circulando pelas redes, não é raro dar de cara até com uma espécie de “bullying parental” — vídeos de crianças tendo seus rostos enfiados em bolos de aniversário, recebendo de presente uma pedra em vez do sonhado iPhone ou levando sustos para o puro divertimento de seus genitores. Esse tipo de constrangimento pode parecer engraçadinho para os pais, mas tem uma dimensão psicológica enorme para o jovem, como aponta Fernanda. Podem levar, em casos extremos, a acusações como de constrangimento e exposição vexatória.

Postar algo não é como escrever a lápis. Algumas coisas podem permanecer para sempre

E, afinal, postar algo online não é como escrever a lápis. Algumas coisas podem permanecer para sempre. “Todo mundo comete erros, mas temos a possibilidade de mudar. A internet não funciona assim. É como se ela engessasse momentos e bloqueasse a possibilidade de crescimento.” E imagine algo assim acontecendo tão cedo na vida de uma pessoa. “Nada do que ela fizer vai ser suficiente para apagar essa memória.”

Mesmo quando a exposição é bem recebida pelo público, bombardeada por elogios, pode ainda gerar uma expectativa irreal e uma pressão desnecessária nesse momento da vida, lembra a profissional.

Falta de diretrizes

Conforme os problemas com o “sharenting” e a exposição excessiva de crianças em redes sociais vão se avolumando, fica clara a necessidade de uma legislação mais rigorosa sobre o tema no Brasil, declara a pediatra Evelyn Eisenstein, que coordena o Grupo de Trabalho Saúde Digital na Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Segundo ela, enquanto os EUA têm uma regulação mais definida sobre o assunto, no Brasil a proteção das crianças e adolescentes na internet ainda está limitada à classificação indicativa estabelecida pela Justiça.

A visão da organização sobre o tema é bastante rígida. “A internet é um espaço público. Expor seu filho lá é a mesma coisa que colocar uma criança nua no meio do Parque Ibirapuera. Tem que ter regras de privacidade e segurança”, diz a pediatra. Evelyn lembra também que os padrões éticos do Unicef já ditam que imagens de crianças não devem ser compartilhadas online.

Para a profissional, os pais que transformam seus filhos em pequenos influencers não entendem como funciona o comportamento de uma criança. Mesmo que acabem recebendo dinheiro com isso, segundo ela, estão ganhando em cima da falta de proteção gerada para esses jovens. Eles não podem de forma alguma ser levados a arcar com o ônus de se tornar celebridades digitais e ter uma imagem pública, aponta ainda a pediatra. “Você não coloca um adolescente para dirigir uma motocicleta pelos mesmos motivos. É preciso ter marcos referenciais de segurança. E os pais devem proteger essas crianças, como responsáveis legais e morais.”

 Ilustração Mariana Simonetti

Uma estratégia arriscada

Compartilhar informações sobre os filhos na internet pode ser um risco não só para eles, mas para toda a família. É isso que afirma a advogada Alessandra Borelli, especialista em direito digital e proteção de dados. “Quando compartilhamos qualquer coisa a nosso respeitos nos meios digitais, perdemos o total controle sobre aquilo. E não importa se foi num grupo restrito de amigos e familiares, porque um dispositivo pode ser furtado, perdido ou até hackeado.”

Nem pensar em compartilhar dados específicos sobre a rotina, como onde mora, estuda e frequenta, e qual o nível social da família

Um dos aspectos mais graves dessa tendência, como aponta a advogada, é a existência de redes de pedofilia, que hoje têm muito mais fontes de informação e até de acesso às crianças ao seu dispor. Portanto, nem pensar em compartilhar dados específicos sobre a rotina, como onde aquele jovem mora, onde estuda, os lugares que frequenta e qual o nível social da família — o que vale inclusive para fotos cheias de detalhes ou muito reveladoras dos ambientes frequentados.

Embora faltem regras específicas para o ambiente online, Alessandra lembra que o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Convenção sobre os Direitos da Criança e a própria Constituição Federal estabelecem como regra proteção integral à criança e ao adolescente. O que inclui não só a integridade física, mas também sua imagem e identidade, considerados direitos fundamentais dos jovens e também deveres dos pais. Inclusive, se, em alguns raros casos extremos, houver indícios de maus-tratos e negligência desses jovens dentro de casa por meio do comportamento online dos pais, o Conselho Tutelar, as Polícias Civil e Militar e o Ministério Público devem ser acionados, aponta a advogada.

Dentro de toda essa equação, o consentimento dos jovens é outro fator que precisa ser sempre levado em conta, diz a consultora de direitos digitais Elora. Ainda assim, não existe resposta pronta. Para Elora, por exemplo, parece claro que um adolescente com 16 ou 17 anos deve ter mais autonomia para dar sua opinião do que uma criança de sete. Mas a lei não estabelece como funcionam esses limites. E também existem outros fatores relevantes. “O tipo de família, o contexto social, tudo isso deveria entrar na conta.”

E essa responsabilidade, segundo a consultora, não deve cair somente no colo dos pais, a quem muitas vezes falta uma melhor educação digital. Ela engloba outros âmbitos da sociedade, como o governo, que deveria definir melhores parâmetros legais, e as próprias empresas, que muitas vezes incentivam o compartilhamento excessivo e se aproveitam indevidamente desses dados, diz Elora.

Uma saída radical

Recentemente, a decisão da mãe de uma influenciadora mirim provocou a ira de colegas TikTokers e também aplausos de especialistas. Em julho deste ano, a médica paulistana Fernanda Kanner simplesmente apagou o perfil de sua filha adolescente Nina, de 14 anos, na rede social das dancinhas. E um detalhe: ela tinha quase 2 milhões de seguidores. Algumas das justificativas que Fernanda listou em entrevistas têm a ver com uma suposta perda de identidade da filha e a reprodução de posts e danças que buscavam mais o sucesso fácil do que propriamente refletiam seus interesses ou quem ela era na vida real.

A pediatra Evelyn e a psicóloga Alessandra se unem ao coro dos especialistas que consideram o freio imposto pela mãe necessário neste momento. “O famoso antes tarde do que nunca”, diz Alessandra.

Embora reconheça a destreza das novas gerações com ferramentas tecnológicas, ela afirma que “fisiologicamente, continuam seres em condição peculiar de desenvolvimento e, portanto, totalmente desprovidos de discernimento sobre os riscos e consequências de seus atos dentro e fora da internet”. Daí então o dever dos pais de intervir sempre que necessário, ainda que acabe gerando mau humor ou uma cara feia.

A psicóloga Fernanda, por outro lado, declara que é preciso ter mais cautela ao analisar ações drásticas como essa. O ideal, ela diz, é que a motivação seja proteger o jovem de algum mal, e não punir. “Quando pune, ela não educa. Só mexe com aquela atitude e ponto final, não ensina a fazer diferente. Teria que haver algum tipo de educação para a criança realmente entender por que aquilo aconteceu.”

O lugar do jovem

Uma saída para todo esse problema é promover ações de educação digital para os pais, que, de acordo com Elora, em geral não querem fazer mal para os filhos, mas podem acabar colocando sua integridade em perigo por não entender muito bem os riscos de compartilhar informações. Outra medida importante seria cobrar das autoridades diretrizes mais específicas e detalhadas de proteção à criança e ao adolescente dentro da Lei Geral de Proteção de Dados. “A legislação pode trazer parâmetros de design para as plataformas online, criar medidas que impeçam que adultos conversem com crianças ou que evitem a coleta de dados”, diz a consultora.

Pode-se admitir que internet 100% segura é uma ilusão, afirma Alessandra, mas tem como tomar precauções extras. Se ficar atento às configurações de privacidade “e só aceitar pessoas conhecidas em suas redes, já ajuda. Assim como não atrelar localização, a rotina, fotos com uniforme da escola, clube ou academia, fotos sem ou com pouca roupa, em alta resolução — porque as em baixa são mais difíceis de editar —, fotos que em algum momento da vida possam ridicularizá-los, enfim.”

Dá trabalho educar para o mundo digital? Sim, com certeza. Mas não educar, acredite, dará muito mais

O diálogo entre pais e filhos continua sendo a regra de ouro, de acordo com a advogada. E, se é verdade o que dizem, o combinado não sai caro. “Dá trabalho educar para o mundo digital? Sim, com certeza. Mas não educar, acredite, dará muito mais.”

Para Fernanda, essa conversa tem que incluir também uma visão bem realista e detalhada do que implica compartilhar imagens e informações online. Entender qual o desejo dos filhos, a vontade dos pais e quais podem ser as consequências daquilo. Até porque os pais precisam estar dispostos a assumir a responsabilidade por esses atos.

Afinal, segundo a psicóloga, pai nenhum quer ter que se justificar para um filho que, quando mais velho, vem prestar contas daquilo que foi compartilhado de forma irrefletida na infância. “É aquela mesma coisa de sempre tentar se colocar no lugar do outro. Se estivesse no lugar da criança, você gostaria que seu pai fizesse aquilo? Se sentiria à vontade?”