Como os neurodivergentes se relacionam amorosamente — Gama Revista
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Isabela Durão

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Reportagem

Romance neurodivergente

Do autismo ao borderline, pessoas neurodivergentes encontram dificuldades na hora de se relacionar amorosamente. Gama investiga quais são os desafios e como é possível superá-los

Andressa Algave e Daniel Vila Nova 17 de Outubro de 2021
Isabela Durão

Romance neurodivergente

Do autismo ao borderline, pessoas neurodivergentes encontram dificuldades na hora de se relacionar amorosamente. Gama investiga quais são os desafios e como é possível superá-los

Andressa Algave e Daniel Vila Nova 17 de Outubro de 2021

Você já sentiu o nervosismo do primeiro encontro? Teve dificuldades na hora de conhecer os amigos ou a família de alguém com quem você estava ficando? Ou então, ao não ter uma resposta a uma investida por mensagem, passou a se questionar se já não havia interesse do outro lado? Essas situações, que fazem parte da vida romântica da maioria das pessoas, podem ser interpretadas com um peso muito maior por pessoas neurodivergentes — termo utilizado para quem tem um funcionamento neurológico fora do padrão, seja autismo, dislexia, transtorno psicológico, entre outros.

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Um olhar nos olhos mais longo, um toque nas mãos, silêncios constrangedores e sorrisos podem ter significados distintos, e a leitura do que parece óbvio pode passar despercebida. Em uma coluna para o jornal The New York Times, professora da Norfolk State University e autora do livro infantil “Too Sticky! Sensory Issues with Autism” (2020, Albert Whitman & Company), Jen Malia, que convive com o transtorno de espectro autista, conta como o pedido de casamento do noivo passou despercebido após um dia de alta interação social que resultou em muito cansaço. “Todos os esforços indiretos dele se perderam até que adormeci”.

Ainda há um estigma enorme contra pessoas neurodivergentes, especialmente no quesito romântico

Produções como o reality show “Amor no Espectro” (2021) e a série “Crazy Ex-Girlfriend” (2015) retratam a busca por romance de pessoas autistas e borderlines, respectivamente. Mas apesar de serem populares e contribuírem para um debate mais informado, ainda há um estigma enorme contra pessoas neurodivergentes, especialmente no quesito romântico. Se pessoas autistas costumam ser infantilizadas e vistas como inocentes, é comum que pessoas com borderline sejam vistas como violentas e loucas. Apesar de serem colocadas em opostos extremos, a busca pela expressão da própria sexualidade e do desenvolvimento romântico tem obstáculos comuns que vão além do olhar externo: passam por reações químicas no cérebro, a visão pessoal do que é o romance, e o esforço para compreender o que está além das lentes da neuroatipicidade.

Gama conversou com pessoas autistas e borderlines, assim como especialistas nos transtornos, para entender quais são as dificuldades de um romance neuroatípico e como, apesar dos desafios, é possível viver uma história de amor romântica.

Amor e borderline

“Jamais vivi uma relação amorosa que não fosse atravessada por um sofrimento profundo e constante.” Quem afirma isso é Rosa*, jovem de 25 anos que é diagnosticada com o transtorno de personalidade borderline. Ela descreve seus relacionamentos românticos como “morrer várias e várias vezes à espera de que um dia a dor passe”. Estima-se que o transtorno mental afete cerca de 6% da população mundial. E talvez essa sensação de mortes sucessivas de Rosa tenha a ver justamente com a definição do transtorno. A psiquiatra Fernanda Martins Sassi, que atua no Ambulatório Integrado dos Transtorno de Personalidade e do Impulso no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, o vê como uma série de comportamentos que fogem à norma de como a maioria age. “É um jeito de pensar, sentir e se relacionar diferente dos demais.”

No transtorno de personalidade, a pessoa carrega uma bagagem de vida que costuma ser povoada por situações de agressão

“Todos nós temos uma forma de estar no mundo que é estabelecida a partir de nossas experiências de vida”, afirma o psicólogo e professor universitário José Tomás Ossa Acharán, doutor em psicologia clínica pela USP e especialista em borderline. “No transtorno de personalidade, a pessoa carrega uma bagagem de vida que costuma ser povoada por situações de agressão. São abusos físicos, psicológicos e também sexuais que ocorrem na infância e adolescência.” De acordo com o psicólogo, isso faz com que as pessoas que tenham um dos tipos de transtorno ajam de maneira incomum, se desviando de um comportamento padrão. Ao todo são dez tipos de transtorno de personalidade e cada um opera em uma lógica própria.

“No caso específico do borderline, o comportamento é marcado por impulsividade e intensidade, um humor que muda rapidamente, dificuldades em tolerar frustrações e o pensamento marcado pelo tudo ou nada”, diz Fernanda. A psiquiatra aponta que borders — termo utilizados pelos especialistas para se referirem a alguém com borderline — costumam idealizar o seus relacionamentos e que caso a relação não atinja a versão idealizada, ela se torna completamente insatisfatória, fazendo com que a pessoa se sinta traída, enganada e abandonada.

Modos de usar

Rosa está se relacionado com alguém atualmente. A tarefa não é fácil, ela afirma, mas com diálogo e compreensão do parceiro conseguiu criar mecanismos que a ajudam a navegar suas dores. O casal estabeleceu alguns protocolos simples, mas que vem se mostrando eficazes. Quando ele vai se ausentar, a avisa. Eles também estabeleceram alguns tópicos que não são discutidos quando ela está se sentindo insegura e ele busca ser ainda mais carinhoso quando nota que Rosa não está se sentindo bem.

O transtorno não é impeditivo para uma relação saudável. Borders podem sofrer, mas com tratamento podem ter uma vida amorosa normal

“É importante ressaltar que o transtorno não é um impeditivo para uma relação amorosa saudável. Borders são pessoas que sofrem, que têm uma doença, mas que com tratamento e acompanhamento tem plenas condições de ter uma vida normal”, afirma a psiquiatra Fernanda Martins Sassi.

Acharán entende que também não é fácil estar do outro lado, mas que o diagnóstico é só uma pequena parte da pessoa. “Existem borders muito bem intencionados, assim como existem pessoas que não têm transtorno de personalidade que são frias e egoístas. Há um ser humano além do transtorno.” A frustração existe, mas Rosa se mostra motivada a não abrir mão da dimensão romântica da vida. “Já perdi muita coisa por conta desse transtorno, não quero e não vou deixar ele tirar mais coisas de mim”, finaliza.

Amor e autismo

Nas últimas décadas, as taxas de diagnóstico de autismo cresceram expressivamente. Segundo um estudo do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, pelo menos uma em 54 crianças foi diagnosticada com autismo em 2020. O crescimento é explicado pela melhora nos critérios de análise de casos, que envolvem sintomas que são apresentados desde a primeira infância. O transtorno de espectro autista, ou TEA, se manifesta em traços de comportamento que são essenciais nas interações sociais do dia a dia e, especialmente, no processo de conhecer alguém. O transtorno faz parte de uma condição no neurodesenvolvimento e pessoas autistas nascem com dificuldades na comunicação, no comportamento e na capacidade de manifestar interesses em diversas áreas. Em um mundo tão acostumado com sutilezas, o autista tem dificuldades na leitura dos sinais de interesse, conta Táhcita Mizael, autista, doutora em psicologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisadora em gênero, sexualidade e autismo.

Compreender a própria condição desde cedo se torna, então, um meio importante de conseguir controle para as relações interpessoais, mas o campo romântico é ainda mais desafiador por conta de fatores como jogos, elogios e flertes. “Em nossa sociedade há um uso bem frequente de figuras de linguagem, de metáfora e de ironia na hora do romance. Para a pessoa autista, essas relações costumam a ser afetadas por esses fatores.” A pesquisadora diz que as limitações na comunicação dentro do espectro autista passam por questões como a dificuldade de olhar nos olhos e perceber emoções que estão tentando ser expressadas por linguagem corporal ou sinais não-verbais. A ironia também costuma ser um problema, especialmente no texto, e é comum que autistas necessitem de indicadores de tom — marcações que identificam a intenção do que foi escrito — no mundo digital.

Além disso, demonstra o interesse constantes também é uma complicação. Se pessoas neurotípicas não recebem um abraço, elas entendem isso como um sinal de afastamento e costumam levar isso para o lado pessoal. O comportamento, entretanto, é comum em pessoas autistas, que costumam apresentar dificuldades com toques físicos.

Falar no começo é melhor: ‘Eu não gosto de toques’, ‘Eu posso ter problemas com luzes’, ‘Eu posso não querer sair com seus amigos’

Para o estudante paulista Gian Martinovic, fundador do Coletivo Autista da Universidade de São Paulo (USP), que também atende pelo nome de registro, Giulia, encontros românticos para uma pessoa autista necessitam de uma medida de autodefesa emocional na hora de um encontro: expor, logo de cara, o diagnóstico, buscando evitar confusões. A primeira coisa a se fazer é identificar incompatibilidades e explicar o que o autismo implica em uma relação amorosa. “Falar isso no começo é bem melhor. ‘Eu não gosto muito de toques’, ‘Eu posso ter problemas com luzes’, ‘Eu posso não querer sair com seus amigos’. A partir dessa informação, a outra pessoa decide se quer estar mesmo contigo”, contou.

Atividades que podem ser comuns em uma relação entre pessoas neurotípicas, como a ida a uma balada, festa ou restaurante com amigos, precisam ser bem bem combinadas com pessoas autistas. A explicação é sensorial – a alta sensibilidade a sons altos, luzes e interações sociais podem colocar a pessoa autista em crise, explica a psicóloga Táhcita Mizael. “A previsibilidade ajuda a evitar crises de sobrecarga sensorial e emocional. Quando existem mudanças de planos durante uma atividade, nos sentimos sobrecarregados, angustiados e irritados.” Mas se o outro lado da relação não entende todas as dificuldades percorridas pela pessoa autista, e o cansaço consequente disso, é comum que haja frustração.

É possível um ângulo mais leve para o romance?

A escritora australiana Kay Kerr, autora do romance teen “Social Queue” (2021, Text Publishing), conta que escrever o livro partiu da sua necessidade de ler um ângulo mais leve e divertido do romance autista. Diagnosticada com autismo aos 20 anos, ela diz que falta de um diagnóstico precoce fez com que sua vida social fosse baseada na observação e repetição dos comportamentos de pessoas sem neurodivergências. Se as pessoas com que ela estava se relacionando reagiam bem a situações que causavam sobrecarga sensorial nela, ela deveria ser a errada, pensava a escritora.

Na adolescência, as regras da paquera eram ditadas por amizades e filmes e o sexo era visto como algo inevitável. Apesar dos flertes serem algo complicado para a maioria dos humanos, normas sociais de romance e interesse que giram em torno do não dito podem prejudicar a noção de consentimento com pessoas autistas, que podem não compreender se passam a impressão de que se interessam em outra pessoa por expressão corporal ou facial. Um estudo publicado na revista acadêmica americana PubMed aponta que meninas autistas fazem parte do grupo de maior vulnerabilidade a abusos sexuais, junto as que têm Transtornos de Déficit de Atenção (TDAH), e outras condições de neurodesenvolvimento.

Até pouco tempo, eu achava que nunca teria um relacionamento, que nunca seria capaz. À medida que fui ficando adulta, fui descobrindo

Se relacionar com outras pessoas autistas pode ser uma opção de encontrar empatia e compreensão na vivência do relacionamento. A apresentadora e escritora mineira Sophia Mendonça, de 24 anos e diagnosticada com autismo aos 11 anos, tratou a própria sexualidade e curiosidade pelo romance como algo secundário durante toda a adolescência. “Até pouco tempo atrás, eu achava que nunca teria um relacionamento, que nunca seria capaz. À medida que fui ficando adulta, fui descobrindo”, conta. Em 2015, a escritora fundou com a mãe Selma Sueli Silva, que também é autista, o site Mundo Autista — uma plataforma que fala sobre a condição que compartilham. Hoje, Sophia se relaciona com uma pessoa que também está inserida no espectro do autismo. “É gostoso porque a gente pode descobrir juntos o que nós faz bem. Respeito é a chave para tudo, entender os limites da outra pessoa. Mesmo sendo autista, o limite de cada um tem vários outros fatores, até mesmo na maneira como as características do autismo se manifestam.”

*O nome da entrevistada foi alterado para garantir o anonimato