Raven Leilani fala a Gama sobre sexualidade feminina — Gama Revista
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Nina Subin / Thiago Quadros

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Conversas

Raven Leilani: 'Ainda é tabu manifestar uma sexualidade feminina que não seja limpinha'

Autora de ‘Luxúria’, um dos melhores livros de 2020 segundo o New York Times, norte-americana fala das pressões que ainda existem nas relações que envolvem personagens marginalizados

Leonardo Neiva 17 de Outubro de 2021
Nina Subin / Thiago Quadros

Raven Leilani: ‘Ainda é tabu manifestar uma sexualidade feminina que não seja limpinha’

Autora de ‘Luxúria’, um dos melhores livros de 2020 segundo o New York Times, norte-americana fala das pressões que ainda existem nas relações que envolvem personagens marginalizados

Leonardo Neiva 17 de Outubro de 2021

Uma jovem engata um relacionamento com um homem que tem o dobro da sua idade. Com um desejo sexual constantemente desperto, ela enxerga em seu affair — de classe média alta, casado há mais de 14 anos e hoje num relacionamento aberto — uma espécie de escape de um cotidiano maçante, muito diferente daquele que imaginava para si.

Ponto de partida de “Luxúria” (Companhia das Letras, 2021), a história de Edie, uma jovem negra talentosa, mas presa a um cotidiano medíocre, é o romance de estreia da escritora americana Raven Leilani, de apenas 31 anos. Eleito um dos melhores livros de 2020 pelos jornais New York Times e The Guardian, ele se tornou um dos lançamentos literários mais comentados dos últimos anos.

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No centro da história, o conturbado casamento aberto apresentado ao longo do livro não tem nenhuma pretensão de servir de modelo para esse tipo de relação, como a própria autora admite. “Acredito que haja um caminho respeitoso e ético de fazê-lo. No livro, não é o que acontece.”

E, se relacionamentos seguem complexos em sua variedade já nos anos mais maduros, navegar bem por eles e pela sexualidade recém-descoberta na juventude, como tenta a protagonista, se torna um desafio quase impossível. Não à toa, para construir uma personagem tão cheia de desejos e com um anseio tão grande por uma conexão amorosa verdadeira, Raven recorreu à lembrança da própria juventude. “Escrevi pensando na minha experiência aos 20 e poucos anos, quando estava tentando entender quem era, qual meu lugar no mundo e todas as minhas identidades relacionadas ao trabalho e ao sexo, que estão sujeitas ao pouco poder e recursos que você tem nesse estágio da vida”, conta a escritora.

O ritmo ágil e a prosa inteligente característicos da obra, que vão ganhando força nos pontos de vista únicos de sua personagem principal, foram nascendo praticamente enquanto a autora escrevia, frutos de sua admiração por um estilo exuberante e do calendário apertado do curso que fazia na Universidade de Nova York. “Veio de obsessões e inclinações bem internas, como sexualidade, trabalho e como uma mulher negra navega na busca por alegria e intimidade, enquanto tenta conciliar trabalho artístico e o pagamento de contas. Na época, isso era uma versão da minha vida, porque eu estava na faculdade, escrevendo esse livro e também trabalhando em tempo integral”, diz Raven.

Como o título indica, a sexualidade da protagonista, que chega a ter relações com boa parte dos homens no escritório onde trabalha, é um dos principais temas do livro. Partindo de uma relação tão fora do usual, pelo ponto de vista de uma jovem ainda inexperiente em relacionamentos, Raven usa esse pano de fundo para evocar questões como racismo e consentimento, num ambiente marcado por constantes tensões sociais e políticas.

Em conversa com Gama, a escritora fala sobre temas diversos como o desejo sexual na juventude, as desigualdades em relacionamentos e o avanço de autores e personagens negros na cultura.

Tudo o que eu queria era ter, como escritora negra, liberdade para criar uma mulher negra profundamente complexa também em sua sexualidade

  • G |Como você desenvolveu a ideia do livro?

    Raven Leilani |

    Eu estava no meu segundo ano do mestrado, lá em 2018, trabalhando em um projeto completamente diferente. Depois de conversar com alguns professores, decidi que precisava começar algo novo. Era o início do meu segundo ano num programa de dois anos. Como eu subitamente não tinha mais nada, a resposta mais honesta é que “Luxúria” chegou em meio a um frenesi. Eu precisava produzir algo desesperadamente e não tinha tempo para planejar de forma metódica o que seria, então ele simplesmente aconteceu. Veio de obsessões e inclinações bem internas, como sexualidade, trabalho e como uma mulher negra navega na busca por alegria e intimidade, enquanto tenta conciliar trabalho artístico e contas pagas em dia. Na época, isso era uma versão da minha vida, porque eu estava na universidade, escrevendo esse livro e também trabalhando em tempo integral. Então chegava em casa do trabalho e escrevia algumas páginas — ou algumas frases, para ser mais honesta. “Luxúria” nasceu dessa descoberta de que a história que me sentia mais pressionada a contar era a de uma mulher negra tentando encontrar um espaço para produzir arte e também se sentir humana, se sentir tocada e conectada com outra pessoa.

  • G |Parte desse frenesi que você menciona parece se traduzir no ritmo do livro, que é como uma metralhadora de frases espirituosas ou até dolorosas. Quão difícil foi desenvolver esse estilo?

    RL |

    Ninguém nunca fez essa comparação do ritmo do livro com uma metralhadora, isso é muito legal. Para mim, foi simplesmente a forma como a prosa saiu. Escrever de maneira diferente disso seria uma verdadeira batalha. A contenção é uma das coisas mais difíceis de fazer, realmente admiro escritores que conseguem fazer mais com menos. Amo uma prosa exuberante, densa e selvagem. Quando estou travada, geralmente leio poesia, porque ela tem uma textura e uma extravagância que me fazem sentir animada sobre o que se pode fazer com a forma. Falo com frequência sobre os textos que me inspiraram, como Nabokov. Para mim, escrever tem relação com os detalhes sensoriais. Eu tento escrever de acordo com a sensação de movimento, tento pegar velocidade. Me sinto bem ao escrever, mas também busco conseguir algum momentum, para que, quando o leitor estiver ali, também sinta que está se divertindo.

  • G |Você se inspirou em algo específico para desenvolver a voz da protagonista Edie?

    Raven Leilani |

    Ela veio pronta de forma bem natural já nos estágios iniciais do livro. Sabia como a personagem seria, que seria ativa, tomaria decisões. O mundo não aconteceria para ela, ela é que teria o dom de mudar o ambiente, o que é algo complicado de escrever em relação a qualquer personagem marginalizado. No caso de Edie, queria que ela tomasse decisões constantemente e que essas decisões fossem complicadas, muitas vezes erradas. Outra coisa que eu já sabia era que ela tinha no âmago uma espécie de saudade, um anseio. Era importante para mim, ao escrever sobre uma mulher negra, que fosse explícito o quanto ela leva a sério esse desejo de se sentir conectada e sentir que está fazendo algo que tenha valor. Existe uma tática diferente que faria sentido para essa narradora que é modelada por sua resignação, em que ela adotaria uma postura fria, de indiferença. Para mim, era importante seguir na direção oposta, fazer com que ela fosse puro sentimento, e que esse sentimento fosse pura fúria, puro ódio. A voz dela passou por todas essas etapas. Tinha a fúria pelo fato de sua vida estar sendo adiada, mas também um desejo de que alguém tirasse essa máscara dela. Quando as duas coisas se conectaram, me pareceu que eu tinha em mãos uma personagem incendiária.

  • G |O livro é bem explícito quanto aos desejos sexuais da personagem. Ao mesmo tempo, ele evita tratá-la de forma fetichizada. Ainda existem tabus para retratar a sexualidade feminina? Você tinha um objetivo específico de ir contra esses preconceitos?

    RL |

    É engraçado porque, conforme escrevia sobre o corpo dela, seus desejos e sua sexualidade, eu só escrevia. Não tinha qualquer concepção de como a sexualidade dela seria recebida e acredito que não teria conseguido escrever se ficasse pensando nisso. Escrevi o que gosto de ver, e o que gosto de ver são representações complexas e às vezes contraditórias da forma como mulheres agem. Para responder sua pergunta, em alguns aspectos, ainda é tabu manifestar uma sexualidade feminina que não seja limpinha ou para além da compreensão tradicional de como uma pessoa marginalizada pode interagir com seu próprio sexo. Só queria que ela fosse uma pessoa livre. Quando você escreve sobre qualquer pessoa nas margens da sociedade, existe uma pressão por uma representação positiva — que é uma outra forma de dizer respeitável. Há uma política de respeitabilidade, o que significa desviar do conteúdo negativo, profundamente traumático e violento que existe lá fora. Tudo que eu queria era ter, como escritora negra, liberdade para criar uma mulher negra profundamente complexa também em sua sexualidade, a quem fosse permitido afirmar sua forma de agir. A quem fosse permitido sentir prazer num espaço em que isso não fosse tratado como patologia. Em dez anos, pode ser que eu olhe de novo para o livro e encontre pontos em que gostaria de ter feito isso ou aquilo de forma diferente, com mais nuances. Mas é essa a natureza da sexualidade sobre a qual gosto de ler e escrever.

Há um momento em que Edie está trabalhando, mas também se defendendo de assédio. Essa é uma história comum para todas as mulheres

  • G |Relacionamentos românticos ou sexuais são complicados na juventude? Como o livro reflete essa dificuldade?

    RL |

    A protagonista é uma mulher de 23 anos. Escrevi pensando na minha experiência aos 20 e poucos anos, quando estava tentando entender quem era, qual meu lugar no mundo e todas as minhas identidades relacionadas ao trabalho e ao sexo, que estão sujeitas ao pouco poder e recursos que você tem nesse estágio da vida. Obviamente, como mulher negra e jovem, Edie tem um nível diferente de privilégio e de recursos. Essas foram conversas que tive com frequência sobre o livro com outras mulheres, que lembraram de seus 20 e poucos anos, da forma como saíram buscando intimidade e dos erros que cometeram. Como tentaram, de forma bem-sucedida ou não, se afirmar como pessoas sérias e a estranheza que é se sujeitar à validação de outra pessoa para ser levada a sério. Seu lugar no mundo, a precariedade na qual Edie está tentando navegar, influencia a forma como ela consegue se relacionar com as pessoas. Eric é o maior exemplo. Mesmo nos estágios iniciais, você consegue sentir a frustração que ele sente com ela, porque entende que ela está se segurando e experimentando o que estão vivendo a partir um lugar de distanciamento. Ele não entende completamente o tipo de autoproteção que é necessário para ela nesse estágio. Ela quer desesperadamente que aquilo não seja mais preciso, quer se abrir e ser vulnerável, mas isso é perigoso. Ela ainda está mudando como pessoa. Acredito que Eric entenda e seja atraído por essa mudança característica de uma pessoa jovem, essa mortalidade que está florescendo. Há muitos níveis diferentes que você experimenta quando é uma jovem em busca de afirmação. Isso aparece dependendo das dinâmicas de poder. Quando jovem, você quase sempre acaba ficando do lado menos favorável dessa dinâmica.

  • G |A idade parece ser uma barreira importante na relação entre Edie e Eric, mas também há pontos cruciais, como a diferença social, racial e o fato de que Eric é casado há mais de dez anos. Por que criou um relacionamento tão repleto de diferenças?

    RL |

    É uma dessas coisas em que só fui pensar quando já estava escrevendo. A ideia de que, por causa do arranjo que Eric tem com Rebecca [sua esposa], é diferente do que se Edie fosse só sua namorada. Há um reconhecimento de que ela não pode ser sua prioridade porque ele tem uma vida inteira já estabelecida. E não falo só de uma vida no sentido romântico, mas estabelecida de outra maneira, dentro de uma comunidade. Isso afeta a habilidade de Edie participar totalmente desse relacionamento porque ela é, de certa forma, um anexo. Acho que essa é uma conversa separada, sobre a política de um relacionamento aberto. Se você faz parte de um, ambos têm que arranjar uma forma de organização que respeite o parceiro. Há momentos no livro em que Eric e Rebecca tentam estabelecer limites para manter esse arranjo de maneira respeitosa e contida, e isso falha. Mas você tem também uma responsabilidade com a pessoa que traz para dentro da relação. Esse foi um caminho que encontrei para desenvolver uma relação entre Rebecca e Edie, duas mulheres, o que costuma ser minha parte favorita. Foi muito divertido de fazer, mas também veio com sua própria dinâmica de poder. Acrescentou uma outra camada de dificuldade ao relacionamento de Edie e Eric, que já era bastante desequilibrado. Mas esse é um retrato bem específico do livro. Não ousaria dizer que relacionamentos abertos funcionam assim. Acredito que haja um caminho respeitoso e ético de fazê-lo. No livro, não é o que acontece.

  • G |Além de Rebecca, Edie cria no livro uma relação com a jovem Akila, a filha adotiva do casal. As duas soam como forasteiras naquela casa, naquela vizinhança, a ponto de a menina dizer que não existem outras pessoas negras nas proximidades. Como você descreveria essa relação dentro do contexto do livro?

    RL |

    É um dos poucos pontos de comunhão que existem na obra. No começo, há momentos em que Edie simplesmente sente falta de uma conexão. Com Akila, acaba sendo um lugar em que é permitido a duas mulheres negras sentir alegria. E não é fácil, elas não reconhecem esse território compartilhado assim que se encontram. Requer trabalho dos dois lados para chegar a um lugar em que possam confiar uma na outra. Isso também foi importante, esse tipo de experiência variada de negritude e como ainda é preciso esforço para conseguir reconhecer um ao outro. Quando elas alcançam isso, existe alegria. Eu queria escrever uma jovem negra que estivesse naquele momento em que se sente pela primeira vez um desejo de autoproteção, o que não tem tanto a ver com negritude ou feminilidade, mas sim com adolescência. Tem também sua história como adotada. Isso a tornou mais sábia do que precisaria ser nessa idade. Foi uma alegria escrever Akila. Era importante para mim criar uma jovem negra que estivesse desenvolvendo seu senso de si mesma, com o desafio de fazê-lo num ambiente quase inteiramente branco. Essa é uma experiência importante para pessoas negras neste país, e eu queria falar sobre isso do ponto de vista da alienação e do isolamento. E queria que Edie estivesse lá para que a jovem pudesse ter um ponto de referência, para que houvesse um alívio dessa alienação. Acredito que Edie também encontra esse alívio ao enxergar uma versão mais nova de si mesma na outra jovem. Esse livro é, em alguns pontos, sobre a solidão. Queria que houvesse nele um espaço que oferecesse um bálsamo para esse mal. A dinâmica de quase irmãs entre Edie e Akila foi necessária para a narrativa, que, de outra forma, é bastante dura.

  • G |Há algumas cenas de violência de Eric com Edie, que no livro soam mais como uma questão de consentimento que de violação. Qual é a sua visão sobre isso?

    RL |

    Uma das primeiras coisas que me vêm à cabeça ao pensar sobre essas cenas, ainda que não as considere necessariamente sadomasoquistas, é que esses temas existem há muito tempo na ficção sobre pessoas brancas. Mas a maioria desses textos não lida com a questão de como a participação de uma personagem marginalizada complica a equação. Como uma mulher negra vivendo neste país, Edie está sujeita a uma violência pública e privada contra a qual luta constantemente. É uma questão totalmente diferente quando você tem uma mulher negra que participa ativamente de uma dinâmica de violência que, ainda que consentida, é infligida por um homem branco, algo que traz uma bagagem histórica. Por isso tudo, tentei ser cuidadosa, mas também livre. Adoro um texto que confronte a objeção feminina, que explore como o poder complica o sentimento de prazer. Há um momento no livro em que Edie está trabalhando no [aplicativo de delivery] Postmates, tentando fazer seu trabalho, mas também se defendendo de assédio. Essa é uma história comum para todas as mulheres, não importa onde vivam, como uma certeza que está impressa em nossas vidas. Existe uma característica quase cotidiana, ordinária nisso. Então há momentos ao longo da vida dela em que está sujeita a essa violência em diferentes níveis. Mas, nesse caso, queria que o consentimento dela fosse uma afirmação de controle sobre esse tipo particular de violência que faz parte de sua vida. Ela é capaz de expressar uma forma diferente de agir, que não consegue quando está na rua ou navegando pelas microagressões que sofre no trabalho. Outra forma de controle foi sua capacidade de encontrar prazer em vez de dor nessa dinâmica. Queria que a personagem fosse livre o suficiente para poder fazer sexo da forma que quisesse, apesar dos precedentes históricos. Que esse contexto histórico não estivesse dentro do quarto com ela, ainda que tecnicamente fosse impossível não estar.

Se você existe à margem da sociedade e seu corpo está em perigo constante precisa estar consciente do que acontece à sua volta, para sua sobrevivência

  • G |No livro, todos os relacionamentos, amorosos ou não, parecem estar repletos de uma carga social e política indissociável. Dá para dizer que hoje essas questões são mais presentes nas relações do que no passado?

    RL |

    Só posso falar por minha experiência pessoal. Se você existe à margem da sociedade e seu corpo está em perigo constante — não estou falando só de mulheres negras, mas da população não branca, não hétero, não-binária —, precisa estar consciente do que acontece à sua volta, para sua sobrevivência. Você não pode se dar ao luxo de ignorar sua situação sociopolítica porque isso impacta diretamente sua vida. Para qualquer um que vive na margem, essas questões saltam à frente num relacionamento, afetam como conseguimos amar, o quão abertos conseguimos ser e quem podemos escolher para estar ao nosso lado. Também como interagimos com eles, dependendo do quanto nos alinhamos sociopolítica, racial ou sexualmente. Quando existem diferenças, como no caso de Edie e Eric, há uma necessidade de um certo nível de tradução. E existem muitos momentos no livro em que ele não consegue entender porque ela funciona de uma determinada forma. Ela é esse punho fechado, que  aguarda e tenta entender se é seguro se mostrar totalmente aberta e vulnerável com ele. Essa é a sobra residual de política que existe entre eles. E a confusão de Eric é o que resta desse contexto sociopolítico ao qual ele acha que não precisa prestar atenção. Então essa necessidade existe, e sua habilidade de olhar para o outro lado ou confrontar isso diretamente costuma ter ligação com o quanto seu corpo e sua saúde estão em risco.

  • G |Ainda que estejam longe de ser resolvidas, a maior visibilidade dada hoje a questões relacionadas a racismo e preconceito parece estar levando a narrativas mais diversificadas em diferentes meios. Como você gostaria que “Luxúria” se inserisse nessa realidade?

    RL |

    Estou bastante animada e encorajada pelo quanto a arte queer e trans está mais visível. Esses autores estão por aí desde sempre, a diferença é que estamos tentando ser mais assertivos com aquilo que consumimos. Tentamos dar mais espaço a pontos de vista e experiências de vida diferentes. Falamos disso como se fosse uma torta, em que um pedaço maior vai para pessoas negras e haverá menos pedaços para os outros. Não acredito que seja assim, há espaço para todo mundo. É realmente encorajador ver que essas histórias estão recebendo mais investimentos e sendo lidas de forma mais crítica. Acho lindo poder pegar um livro e me enxergar dentro dele, sentir que não estou sozinha. É assim que me sinto sobre esse verdadeiro renascimento da arte negra, queer, trans e toda aquela que desvia do cânone branco tradicional que tem sido o foco durante séculos. Como existia essa escassez de personagens negros, muita gente pensava que o ideal era representá-los de forma respeitável, em seus aspectos mais irrepreensíveis. Agora que temos mais deles, podemos nos permitir ter uma maior variedade, personagens que sejam bagunçados, imorais, até medíocres. É importante ter uma variedade completa dentro do cânone negro. Espero que Edie se encaixe nessa variedade, como uma personagem complicada e profundamente falha, e que pode ser assim porque os autores negros que vieram antes de mim tornaram possível assumir esses riscos.

  • G |Isso me lembrou da passagem do livro em que Edie está sendo demitida. Quando ela deixa a editora onde trabalha, se depara com uma pilha de livros sobre diversidade, que você retrata de forma irônica como obras em que o protagonista está sempre numa posição subalterna, de escravo ou empregado. Já estamos avançando para além desse tipo de representatividade ou ainda há muitas representações que permanecem nessas caixas?

    RL |

    Definitivamente estamos chegando lá. Nos últimos anos, vi muito mais representações de personagens negros a quem é permitido ser normal. Histórias modernas, não apenas ficção histórica como esses gêneros que você evocou. Sempre tem mais trabalho a se fazer, e existem muitos autores e artistas fazendo isso, ainda que nem todos estejam recebendo os investimentos necessários. Tive muita sorte de ter conseguido ser publicada e ter uma comunidade que investiu nessa história. Mas essas histórias estão por aí, o que torna a coisa toda uma questão de permitirmos que elas sejam contadas. Estamos deixando para trás a ideia de que a negritude é uma coisa estreita e confinada e caminhando para um momento em que teremos ainda mais personagens negros ricos e variados. Estou bastante animada pelo que vem a seguir. Enquanto puder, quero escrever nessa veia e continuar me desafiando em relação a como retrato pessoas negras nas minhas páginas.