Somos todos narcisistas?
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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

Vivemos em uma sociedade narcisista?

Numa realidade que enfatiza o desempenho pessoal e nos faz focar cada vez mais em nós mesmos, corremos o risco de perder o senso coletivo

Leonardo Neiva 25 de Maio de 2025

Vivemos em uma sociedade narcisista?

Leonardo Neiva 25 de Maio de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Numa realidade que enfatiza o desempenho pessoal e nos faz focar cada vez mais em nós mesmos, corremos o risco de perder o senso coletivo

Talvez você nunca tenha ouvido falar tanto sobre narcisismo como nos últimos anos. Seja em relações amorosas ou no caso de mães narcisistas — um perfil bastante popular ultimamente, ainda que, segundo as estatísticas, haja mais homens narcisistas do que mulheres —, o termo parece ter ganhado tração na cultura popular. Nas redes sociais, vem sendo usado inclusive para “diagnosticar” pessoas e personagens fictícios, geralmente com pouco ou nenhum critério técnico.

A palavra nesse uso mais corriqueiro geralmente descreve pessoas egoístas, inseguras, com uma certa instabilidade emocional, muito voltadas para o próprio umbigo e com dificuldade de se colocar no lugar do outro, explica o psicanalista Alexandre Abranches Jordão. Mas primeiro é preciso separar as referências cotidianas ao comportamento narcisista do termo como é usado na psicanálise.

“O narcisismo está na base da organização psíquica. É o primeiro esforço do que gradualmente vai se configurar como a personalidade da pessoa, com todos os seus traços, defeitos, inibições, desejos e angústias”, afirma Jordão, autor do livro “Narcisismo – do ressentimento à certeza de si” (Juruá, 2009). “Nesse sentido, uma estruturação narcísica precária ou menos estável implica a busca por compensações narcísicas no dia a dia.” Ou seja, o narcisismo em si é uma etapa central do desenvolvimento da nossa personalidade. Um desequilíbrio nessa fase é que pode gerar o narcisismo patológico que conhecemos.

O médico psiquiatra e professor de pós-graduação em psicanálise da UFRJ Julio Verztman lembra que, em Freud, o narcisismo tem a ver com o processo de construção do amor próprio ou autoestima — “o investimento afetivo no eu”, descreve. “Então, é uma etapa da formação fundamental para que a gente sinta que a vida vale a pena, que não é uma coisa robotizada.”

Porém, esse amor por nós mesmos não vem só de dentro, explica Verztman. Na equação, também há um grande impacto do outro, em processos sociais como a relação com a família — durante a infância, especialmente das fantasias projetadas pelos pais. “E essa interdependência do amor próprio com o amor que a gente tem dos outros pode não acontecer de uma maneira mais favorável”, afirma o psiquiatra.

Para o psicanalista Christian Dunker, o interesse recente no tema faz sentido em uma sociedade neoliberal que já vem cultivando o espírito individual em suas diferentes formas. “A linguagem digital e as redes se associam com isso. A gente fala muito no isolamento em bolhas digitais, no fechamento dentro de comunidades que são ecos para os nossos valores e orientações políticas”, aponta Dunker, que está lançando o livro “Eu Só Existo no Olhar do Outro?” (Paidós, 2025), um diálogo com a também psicanalista Ana Suy que aborda vários aspectos do narcisismo na contemporaneidade.

Numa sociedade que cultiva cotidianamente ideais de meritocracia, sucesso e desempenho individual, o comportamento narcisista não pode ser bem visto ou até mesmo incentivado?

As redes podem ser vistas como o ápice desse processo de individualização, “um sistema inteiro para minerar nosso interesse por nós mesmos”, diz o psicanalista e pesquisador André Alves, cofundador do Floatvibes, instituto de pesquisas comportamentais e culturais. “Nelas, o jeito que eu me apresento para o mundo torna-se o centro da vida afetiva e profissional.”

Dentro desse contexto, o comportamento narcisista seria uma novidade que infla e extrapola o processo de individualização hoje considerado natural. Mas, numa sociedade que cultiva cotidianamente ideais de meritocracia, sucesso e desempenho individual, o comportamento narcisista não pode ser bem visto ou até mesmo incentivado? Em outras palavras, não somos todos um pouco narcisistas?

Para começar, Dunker enfatiza que o termo geralmente é utilizado de forma precária, com um sentido de “decaimento moral”. “O que a gente chama de narcisismo é, muitas vezes, egoísmo”, declara.

Como exemplo, aborda o repetido mantra da mãe narcisista. “Muitas vezes, a gente está se referindo a uma mãe que não responde àquele ideal clássico de doação, sacrifício, submissão e amor incondicional. Ou seja, que se preocupa consigo em vez de se preocupar sempre com os filhos, a casa e seu papel historicamente primário — o que vai incluir também aquelas que incorrem em falta de cuidado e desinteresse”, diz o psicanalista.

“É curioso que, no nosso país, os campeões de falta de cuidado e displicência são os pais, mas a gente ouve falar bem menos em pais narcisistas”, ele acrescenta.

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A cultura do narcisismo

Na introdução do livro “A Cultura do Narcisismo” (Fósforo, 2023), o historiador e crítico cultural norte-americano Christopher Lasch (1932-1994) faz referências à “cultura do individualismo competitivo” e à “busca da felicidade em um beco sem saída de preocupação narcísica com o self”. Mais à frente, diz ainda que “o novo narcisista é assombrado não pela culpa, mas pela ansiedade. Ele não busca inculcar suas próprias certezas nos outros, mas encontrar sentido na vida.”

Publicada originalmente em 1979, a obra ganhou sobrevida e tem recebido atenção renovada. Não é difícil entender porquê. Décadas antes das redes sociais ou do universo de influenciadores digitais, Lasch já juntava o culto às celebridades, a perda de vínculos coletivos, a preocupação excessiva com o autocuidado e a fuga dos sentimentos para explicar comportamentos que descreveu como narcisistas, típicos da sociedade norte-americana da época.

“Foi um pensador muito visionário ao perceber como determinadas transformações estavam alterando a forma com que as pessoas passaram a se relacionar umas com as outras e consigo mesmas”, afirma a doutora em ciência política e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), Camila Rocha, que assina o prefácio brasileiro da obra.

Uma das principais argumentações de Lasch é que as pessoas estavam perdendo os vínculos com as famílias, grupos políticos e movimentos sociais para passar a dedicar-se muito mais ao próprio bem-estar. E se, para compor esse fenômeno, o historiador falava do self-made man e do culto a celebridades no esporte, na realidade contemporânea Rocha adiciona à conta fenômenos como os fandoms de influencers e celebridades.

“Da Lady Gaga a influenciadores menores, hoje vários fazem um trabalho de engajamento com os fãs, que se sentem respondidos, enxergados. Isso muda a relação, porque alimenta ainda mais esse culto à personalidade e também a ideia de que você pode ser uma dessas personalidades, usar um filtro para ficar famoso nas redes sociais”, destaca a cientista política. “Acaba intensificando ainda mais o que Lasch chama de narcisismo social.”

Somos todos narcisistas?

A própria realidade das redes, com estímulos eternos no feed e a busca por likes, incentiva impulsos narcisistas, na visão do psicanalista Alexandre Abranches Jordão. O mesmo vale para as inúmeras possibilidades de autogratificação à distância de um clique, desde um vídeo divertido até compra de itens supérfluos como forma de lidar com o dia a dia estressante. “A gente vive num caldo de cultura onde, até em meios corporativos, a autopromoção e o marketing pessoal se tornam um modelo a ser copiado.”

A gente vive num caldo de cultura onde, até em meios corporativos, a autopromoção e o marketing

O narcisismo hiperdilatado dos nossos tempos, como descreve Alves, do Floatvibes, acaba criando uma dualidade: uma sociedade radicalmente individualista precisa ser também radicalmente desigual. “Não há lugar para todos, só para aqueles que conseguem performar um hiperdesempenho. Consequentemente, o único jeito de chegar lá é ser a sua melhor versão.”

Mas o psicanalista também aponta algumas contradições básicas dessa premissa: não é possível ser o melhor o tempo todo, muito menos onipotente. O problema é que somos constantemente bombardeados com a ideia de que podemos sim ser, fazer e comprar tudo que quisermos — construção que Alves apelida de “eu ideal anabolizado”. “Freud nos ensina que isso vira um processo muito masturbatório, em que a gente faz, faz, faz e nunca chega no tipo de prazer que gostaria de alcançar”, reflete.

Certos comportamentos típicos do narcisismo, mas bastante disseminados na sociedade, também podem fazer com que, sem nos darmos conta, deixemos de aproveitar momentos importantes do cotidiano. Por exemplo, uma viagem de férias. “Hoje, existem pacotes de turismo em que até o fotógrafo está incluso”, descreve Jordão. “Ele registra fotos instagramáveis para propagandear nas redes sociais. Nesses casos, o passeio em si fica em segundo plano. O que interessa é a foto.”

Mas alguns comportamentos narcisistas não são até mesmo recomendáveis na realidade em que vivemos? Para o psicanalista, sim. Ele cita o “egoísmo sadio” defendido por Nietzsche, um nível razoável de egoísmo que precisa ser exercitado, cultivado e aprimorado para corresponder às expectativas contemporâneas. Seria uma espécie de antídoto contra o que Jordão chama de narcisismo defensivo — aquele que produz ilusões de onipotência mas, na verdade, oculta um quadro de baixa autoestima e carência de aprovação.

Mesmo assim, não dá para generalizar nem afirmar com todas as letras que vivemos numa sociedade narcisista. Ao menos essa é a visão do médico psiquiatra e professor de pós-graduação em psicanálise da UFRJ, Julio Verztman. “O que podemos dizer é que a gente vive numa sociedade que dificulta muito os laços sociais, tenta controlar de maneira intensa lutas políticas e banalizar determinadas formas de sofrimento”, afirma.

Acontece que, nesse processo social de individualização, cada vez mais gente encontra dificuldade de lidar com suas experiências e seu anseio de viver, e acaba se voltando para dentro de si. “Até porque o narcisismo é um sofrimento, uma defesa contra determinadas dificuldades que a vida impõe, inclusive a partir do meio social”, diz Verztman.

O que não pode, segundo ele, é colocar uma sociedade extremamente diversa e desigual como a nossa — com marcadores de raça, classe, gênero, cultura e língua — toda dentro dessa caixinha do narcisismo. “Aceitar as diferenças é um movimento até antinarcisista, porque uma característica do narcisismo é tentar tornar unitário coisas que são diversas”, explica o psiquiatra.

O espelho da política

A perda do senso de coletividade, um dos pontos centrais levantados por Lasch, nasce do nosso distanciamento de vizinhos, familiares e outras comunidades especialmente nas grandes metrópoles, explica a cientista política Camila Rocha. Muitas pessoas, ela acrescenta, hoje tentam preencher essa ausência de pertencimento e identificação por meio das redes. Outras buscam a ajuda de especialistas, em processos nos quais o indivíduo novamente se volta para dentro de si. “Em vez de desabafar com um amigo, você paga um psicólogo. Ou então procura um coach no lugar do seu líder religioso”, exemplifica.

Essa perda de coletividade pode alcançar um ponto crítico num momento em que os desafios sociais e ambientais se mostram cada vez mais complexos e aparentemente fora do nosso alcance: a Terra vive próxima de um colapso climático, líderes extremistas têm chegado ao poder em boa parte do mundo e a Inteligência Artificial paira como uma ameaça sobre o futuro do mercado de trabalho.

Embora pareça a melhor época para integrar ações coletivas, não é necessariamente isso que está acontecendo. Numa situação limite como essa, muita gente pode acabar se isolando “de maneira compensatória”, aponta Jordão. “A falta de alicerces mais sólidos nos faz buscar compensações narcísicas fortuitas e fugazes que, de alguma maneira, produzam uma estabilidade.”

Segundo o psicanalista, é uma tendência característica dos tempos atuais, que gera uma perda de vínculos emocionais e afetivos. E, consequentemente, leva ao nosso encerramento em bolhas, à impossibilidade do debate e a mais extremismo. “É a frase do Caetano: ‘Narciso acha feio o que não é espelho’. Tudo que não remeta a mim mesmo e à minha opinião passa a ser inaceitável”, diz o psicanalista, para quem o problema hoje perpassa todo o espectro político.

Movimentos populistas, por exemplo, que têm identificação com um grande líder, são sim coletivos mas têm também um funcionamento profundamente narcísico

No caso específico da política, o narcisismo não é necessariamente um processo que individualiza, como aponta Dunker. Movimentos populistas, por exemplo, que têm identificação com um grande líder, são sim coletivos mas têm também um funcionamento profundamente narcísico. “São uma forma de instrumentalizar o narcisismo das pessoas”, afirma o psicanalista.

Para descrever esse estado de coisas, Alves evoca um conceito desenvolvido pela psicanalista francesa Colette Soler: o do “narcinismo”. “Estamos todos bem cínicos, não só no sentido de pessimismo, mas de desprezo pelo outro”, afirma o psicanalista. Uma das complicações disso é que, quando não conseguimos construir pontes com quem é diferente, tendemos a rebaixar nossa inteligência individual em prol do coletivo, ele acrescenta.

Rocha também tem enxergado altas doses de narcisismo na utilização que algumas lideranças, da esquerda à direita, fazem de temas caros aos seus eleitores. “Você usa a defesa de certas pautas para alavancar o seu status social de um jeito muito calculado e consciente”, afirma. O problema dessa motivação focada apenas na própria reputação e status, diz a pesquisadora, é que ela acaba esvaziando a política em seu sentido mais importante: o de construção de valores e ideias para um país que queremos.

Outra questão é que, na ausência do debate, “não tem muito espaço para tons de cinza, paradoxos, incoerências ou erros”, considera a cientista política. “Você tem que ser perfeito, estar sempre performando e sendo uma pessoa de sucesso.”

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