Seu trabalho afeta sua saúde mental?
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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

O esgotamento mental de quem tem vários trabalhos

Acumular empregos é um fenômeno global apelidado de “polywork”. Corpo e mente cobram um preço caro por essa conta, que poucos profissionais conseguem pagar sem adoecer

Ana Elisa Faria 04 de Maio de 2025

O esgotamento mental de quem tem vários trabalhos

Ana Elisa Faria 04 de Maio de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Acumular empregos é um fenômeno global apelidado de “polywork”. Corpo e mente cobram um preço caro por essa conta, que poucos profissionais conseguem pagar sem adoecer

O mercado de trabalho no Brasil vive uma boa fase. Em 2024, a taxa de desocupação caiu para 6,9%, a menor desde 2014, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Recentemente, o país também registrou o melhor mês de fevereiro, com um saldo recorde de 432 mil empregos com carteira assinada. Mas outro dado do ano passado tem causado preocupação: foram 440 mil afastamentos de trabalhadores ocasionados por transtornos mentais e comportamentais, como ansiedade, depressão e estresse, um salto de quase 67% em relação a 2023, conforme o Ministério da Previdência Social.

Ao mesmo tempo, a quantidade de brasileiros com mais de uma ocupação aumentou 15% na última década, crescimento que impactou principalmente os profissionais mais jovens, de acordo com a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Por trás desses números alarmantes, há histórias de pessoas que acumulam funções, clientes, chefes, contratos, projetos e expectativas. E que estão organizadas de diferentes formas, na informalidade, por contratação CLT, em vagas temporárias, como os famosos freelancers e “freelas” fixos.

É o editor que virou microempreendedor, o designer que atende cinco agências, a professora que leciona em três escolas, a publicitária que presta serviço como redatora, mas também é o RH, a contabilidade, a social media e CEO da empresa, além do motorista que, após bater ponto numa companhia de transporte, ainda faz corridas por aplicativo. O fenômeno, apelidado de “polywork”, tem crescido globalmente, especialmente entre jovens das gerações millennial e Z.

Ter segurança financeira e complementar os ganhos são os principais objetivos de mais da metade dos brasileiros com múltiplos empregos

Ter segurança financeira e complementar os ganhos são os principais objetivos de mais da metade dos brasileiros com múltiplos empregos, diz uma pesquisa da plataforma de hospedagem online Hostinger. Esse movimento, ao contrário do que o senso comum pode imaginar, não fica restrito às classes mais baixas. Pelo contrário, 43% dos que responderam têm graduação completa e 27% são pós-graduados.

Seja por necessidade, por ter de entrar em mais um jogo mercadológico, pelo desejo de possuir mais bens materiais ou por querer provar que dá conta, manter esses vínculos diversos tornou-se o novo normal para muita gente. Mas, entre o empreendedorismo e a precarização, há um custo pouco falado — a exaustão.

O glamour do cansaço

“Estamos vivendo uma glamorização da exaustão”, alerta o psicólogo, escritor e apresentador do podcast Cartas de um Terapeuta Alexandre Coimbra Amaral. Ele conta que o fenômeno do cansaço extremo causado pelo trabalho tem sido apresentado como parte de uma jornada do herói e como sinônimo de prosperidade. “É um jeito de maquiar o sofrimento”, diz.

De acordo com Amaral, essa maquiagem é tão eficaz que acreditamos nela, e não no que faz a gente sofrer. “Nos identificamos mais com a máscara do que com a pele. Na pele, tem sofrimento e, na máscara, há a imagem de superação, resiliência e foco, palavras muito usadas nesse contexto para confundir as pessoas.”

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A lógica da produtividade ilimitada, alimentada pelas redes sociais, precariza inclusive os momentos de lazer, conforme comenta o especialista. “A exaustão é um preenchimento de todas as janelas de tempo com conteúdo. Ou você está produzindo para o mundo ou consumindo.” Seguindo nessa linha, até o que deveria ser o simples e necessário ato de descansar se transformou em uma performance do descanso.

E o trabalho se desdobra para além da função central pela qual o trabalhador — liberal, formal, informal — foi contratado. Hoje, muitos profissionais precisam também divulgar o que fazem no LinkedIn, no Instagram e no TikTok e nem todos têm as habilidades necessárias desenvolvidas para se expôr, se comunicar, editar vídeos ou entrar na trend do momento.

Há um sentimento ansioso: a qualquer momento eu posso perder o que tenho, o meu posto, o meu cargo, a minha relevância, a minha imagem. Eu posso ser cancelado, demitido

“Fora que você não sabe quem é o seu chefe. Porque o algoritmo não mostra a cara. Às vezes, a pessoa faz tudo ‘direitinho’ e ele não entrega o material. Se falamos alguma coisa que o desagrade, vem uma retaliação, e ficamos como ratinhos correndo atrás da cenoura, sem entender se estamos no caminho certo. Trabalhar numa ambiência pouco clara provoca um desgaste emocional, uma insegurança psicológica”, fala Amaral.

O terapeuta enfatiza que, atualmente, “é preciso fazer o dobro para receber a metade”, um dos resultados dos processos de precarização do trabalho na sociedade contemporânea. “O que provoca um sentimento ansioso: a qualquer momento eu posso perder o que tenho, o meu posto, o meu cargo, a minha relevância, a minha imagem. Eu posso ser cancelado, demitido.”

Trabalhar cansa e pode adoecer

O professor Marcelo Afonso Ribeiro, pesquisador do departamento de Psicologia Social e do Trabalho do IPUSP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo), lembra que trabalhar deixou de ser apenas um meio de sobrevivência e tornou-se, para muitos, a única via de afirmação social. “No capitalismo, ou você trabalha, ou você trabalha, e tem que se desenvolver, crescer, progredir e ganhar mais. É tudo mais. E esse tudo mais coloca a pessoa em um looping, numa situação que não tem limite.”

Além disso, ressalta o docente, agora a pressão vem com uma nova roupagem, a do protagonismo e do “dê conta de tudo”. Discurso esse que já chegou à escola. “Na nova lei do ensino médio, as palavras empreendedorismo e protagonismo aparecem bastante. É uma geração que está sendo formatada numa ideia de que você só pode contar com você mesmo para vencer na vida, rompendo com algo que é muito importante no trabalho: a colaboração, o coletivo, o apoio.”

Nesse cenário, quem trabalha por conta própria fica solitária e sobrecarregada, tendo que acumular funções, cargos, chefes, ocupações e clientes, o que pode gerar algum tipo de prejuízo à saúde mental.

No capitalismo, ou você trabalha, ou você trabalha, e tem que se desenvolver, crescer, progredir e ganhar mais

Ribeiro salienta que estar mentalmente saudável não é uma questão individual, implica em não estar doente, mas também em estar tranquilo e conseguir equilibrar papéis. Ou seja, ter condições trabalhistas adequadas e razoáveis, uma relação de sentido com o que se faz, mesmo que pequena, e tempo para o lazer. No entanto, nesta realidade em que o acúmulo de tarefas, metas e conquistas é hipervalorizado, esse equilíbrio está cada vez mais longínquo.

O que começa como uma escolha — crescer mais, receber mais, possuir mais coisas — logo vira uma armadilha. “Você é elogiado por dar conta de três, quatro projetos de uma vez, por trabalhar 12, 14 horas, por nunca parar. Até a hora que você tem um crack”, adverte o professor. “Ninguém tem um ataque cardíaco do nada, ninguém deprime do nada. Nunca é do nada, isso tudo é um processo que vai sendo ocultado, aplacado.”

O estudioso observa ainda que, mesmo descendo na escala social, em que a relação com o trabalho é outra, muitas vezes apenas para a sobrevivência básica, as pessoas também estão com a saúde mental afetada. “Tem uma frase boa para refletir, que ouvi de uma moça que trabalha na informalidade. Ela disse: ‘Eu adoraria trabalhar para viver, não viver para trabalhar’”.

A lógica da peça por demanda

A precarização atinge diferentes camadas sociais e profissionais. Mas há uma lógica que unifica o cenário: o trabalho fragmentado, pago por tarefa entregue, e mediado por ferramentas de controle algorítmico — dos aplicativos à CLT disfarçada de PJ.

“É a reinvenção do trabalho por peça, característica prevalente no século 19, que não deixou de existir, mas que tem crescido atualmente. Então, se eu ganho por atividade entregue, quanto mais demanda pegar, melhor fica a remuneração”, explica a socióloga Luci Praun, professora da Universidade Federal do Acre, pesquisadora do grupo Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses, da Unicamp, e autora do livro “Reestruturação Produtiva, Saúde e Degradação do Trabalho” (Papel Social, 2016).

Na verdade, é uma dinâmica da sociedade que empurra as pessoas a pegarem cada vez mais atividades para fazer

Ela reforça, entretanto, que essa não é uma opção do trabalhador, que aceita todos os trabalhos que aparecem e depois adoece. “Na verdade, é uma dinâmica da sociedade que empurra as pessoas a pegarem cada vez mais atividades para fazer, seja porque recebem dinheiro por demanda, seja porque, apesar de terem um salário fixo, o salário é baixo e precisam buscar algo complementar.”

O caminho do burnout

Apesar de as discussões sobre o burnout estarem em alta, o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, autor de “A Exaustão no Topo da Montanha” (Paidós, 2021), destaca que olhar para o problema só quando há um colapso, ou um diagnóstico, é negar o processo que leva até o ápice do adoecimento.

“Antes do burnout, vem a exaustão. Não estou desqualificando o burnout como uma categoria, mas antes de chegar a ele, existe uma força sacrificial da gestão do trabalho, que é a exaustão. Você pode estar funcionando no seu melhor, você dá conta, não tem um burnout clinicamente diagnosticado, mas há muito sofrimento. Por isso, acho injusto que a gente só possa falar do sofrimento quando existe um diagnóstico, porque não pegamos a trilha toda do desenvolvimento da história”, resume.

Quando paramos, vem os fantasmas ansiosos nos lembrar do que estamos perdendo: oportunidades, dinheiro, relevância

Para os que acumulam empregos, funções e “freelas”, o esgotamento chega mais rápido. Não só pelo excesso de trabalho, mas pela ausência de pausas, de direitos, de lazer, de momentos sem cobrança. “A gente sente culpa por parar. E quando paramos, vem os fantasmas ansiosos nos lembrar do que estamos perdendo: oportunidades, dinheiro, relevância”, diz Amaral.

O psicólogo frisa que fazer um recorte de classe é importante para o debate, sobretudo pelo fato de que o privilégio, nesse caso, está associado à condição da busca por essa pausa, que deveria ser um direito de todos, porém, sabemos, é para poucos. “Isso é um fato, mas eu acredito na insurgência da alma humana. Acredito profundamente na transgressão.”

Embora a solução seja difícil, Luci Praun acredita que a reversão da precarização que leva à sobrecarga emocional dos trabalhadores, cujo marco foram as mudanças na legislação trabalhista em 2017, virá com mobilização social.

Enquanto a transformação não acontece, os especialistas sugerem um movimento interno: cultivar vazios, impor limites próprios, criar rituais de pausa, valorizar o silêncio, enxergar o belo. “O contrário da exaustão não é o descanso”, fala Amaral. “É a beleza. É fazer aquilo que é belo e que te dissocia desse mundo da performance, da métrica. É a beleza da fruição da vida desconectada da performance.”

Colaborou Leonardo Neiva.

Um assunto a cada sete dias