Seu trabalho afeta sua saúde mental?
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Ilustração adaptada da capa de “A Armadilha da Perfeição” (Fontanar, 2023)

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Conversas

Thomas Curran: "A sociedade te humilha se você não for bem-sucedido"

O psicólogo, autor de “A Armadilha da Perfeição”, aponta como o perfeccionismo ajuda a explicar a atual crise de saúde mental no trabalho

Leonardo Neiva 04 de Maio de 2025

Thomas Curran: “A sociedade te humilha se você não for bem-sucedido”

Leonardo Neiva 04 de Maio de 2025
Ilustração adaptada da capa de “A Armadilha da Perfeição” (Fontanar, 2023)

O psicólogo, autor de “A Armadilha da Perfeição”, aponta como o perfeccionismo ajuda a explicar a atual crise de saúde mental no trabalho

Quem nunca listou o perfeccionismo como seu maior defeito durante uma entrevista de emprego? Pesquisas afirmam que a resposta, aliás, é uma das mais repetidas nesse tipo de encontro profissional. Independentemente de ser uma resposta honesta ou não, essa tendência aponta a dualidade através da qual enxergamos o perfeccionismo: como o mais desejável ou o menos reprovável dos defeitos. Afinal, por que seria tão ruim ser obcecado em dar o melhor de si em tudo que você faz? Segundo o psicólogo britânico Thomas Curran, um dos poucos estudiosos inteiramente dedicados ao tema no mundo, por uma série enorme de razões.

“Essa energia ansiosa, o desejo de nos aperfeiçoarmos, o trabalho duro, todos esses comportamentos são uma compensação excessiva pelo fato de nos sentirmos incompletos, por acharmos que não somos bons o suficiente”, declara em entrevista a Gama. Para o professor de ciências psicológicas e comportamentais da London School of Economics, a sensação de falta que define nossas tendências perfeccionistas está na raiz de muitas das questões hoje relacionadas à saúde mental no mundo do trabalho. E poucos escapam do problema — incluindo ele mesmo.

 Foto de David Chang

“Sim, sou perfeccionista”, admite Curran no prólogo de seu livro “A Armadilha da Perfeição” (Fontanar, 2023), escrito como “um presente de consolo de um perfeccionista a outro”. O psicólogo também conta na obra que acabou adentrando o assunto como uma forma tanto de se entender quanto de compreender melhor as implicações do problema para a sociedade ao redor.

Até porque, de acordo com o pesquisador, o perfeccionismo está bem longe de ser sinônimo de eficiência. Em vez disso, uma pessoa perfeccionista tende a gastar mais tempo e esforços em tarefas menos desafiadoras, evitando atividades em que tem a chance de falhar. Além disso, na visão do especialista, as pressões externas e internas por uma perfeição inalcançável ajudariam a explicar a crise de saúde mental no trabalho que enfrentamos hoje — em 2024, o Brasil registrou recorde de afastamentos por esse motivo em uma década.

Numa época marcada por expressões como quiet quitting — movimento de trabalhadores que limitam seus esforços ao estritamente necessário — e a mais recente betterment burnout — a exaustão causada pela tentativa de se aperfeiçoar obsessivamente —, Curran aponta também que a insegurança do trabalho atual é a responsável por muitas das tendências contemporâneas negativas dentro desse universo. O psicólogo e escritor ainda destrincha, num papo com Gama, como o avanço da IA pode embaralhar essa equação e de que forma as redes sociais intensificam nossa busca constante por aprovação.

  • G |Como você define o perfeccionismo? Por que nossa sociedade é tão obcecada pela perfeição, por mais que seja um ideal impossível de alcançar?

    Thomas Curran |

    O perfeccionismo é uma característica de personalidade. Há um componente genético, cerca de 30 a 40%, mas o restante do perfeccionismo é aprendido por meio da socialização, o que inclui a criação dos filhos. É uma característica da personalidade enraizada numa sensação de falta, de déficit. A ansiedade básica de um perfeccionista é não ser suficiente. Ele sente que tem uma deficiência, uma fragilidade, uma falha fatal. Portanto, o perfeccionismo é simplesmente uma compensação pelo que está faltando. Essa energia ansiosa, o desejo de nos aperfeiçoarmos, o trabalho duro, todos esses comportamentos são uma compensação excessiva pelo fato de nos sentirmos incompletos, por acharmos que não somos bons o suficiente.

  • G |De onde surgiu a vontade de pesquisar o tema?

    TC |

    Foi um pouco de tudo. A curiosidade intelectual e o fato de eu ser influenciado por tendências perfeccionistas foram uma grande força motriz. Não havia e ainda não há muitas pesquisas sobre o assunto. Então, parte do trabalho que desenvolvi nos últimos dez anos foi tentar me entender e entender o que está acontecendo na sociedade. Acho que o perfeccionismo é um ótimo indicador para muitas outras tendências, especialmente quando se trata da saúde mental dos jovens.

  • G |Somos uma sociedade obcecada por performance, que enfatiza a meritocracia na educação ou no trabalho, como o ponto mais importante para o sucesso. Hoje tem como escapar da armadilha do perfeccionismo?

    TC |

    Na sociedade atual, sempre seremos um pouco perfeccionistas, um pouco neuróticos. Sempre teremos um conflito interno entre quem somos e quem achamos que deveríamos ser. Isso é inevitável. Existem certas culturas e formas de viver onde você não veria nada disso, mas elas são raras. A maioria das pessoas no mundo desenvolvido sente isso. Então, a questão é: quanto e com qual intensidade? No momento, parece que muitas pessoas enfrentam os efeitos do perfeccionismo, e a meritocracia faz parte disso, a ideia de que os melhores ficam com o prêmio e todos os outros devem se contentar com as sobras. É uma motivação psicológica individual muito poderosa. Nunca é o suficiente. Mesmo que você consiga, sempre há alguém melhor. E, se não chegar lá, a sociedade lhe diz de forma brutal que você não vale nada.

  • G |Quais as principais consequências para os que não correspondem a esse padrão de sucesso?

    TC |

    Uma das principais mensagens é não conseguir comprar uma casa, não ter um salário que garanta um bom padrão de vida, ou mesmo um padrão básico. A sociedade pune, praticamente te humilha se você não for bem-sucedido. E a meritocracia é uma grande parte disso, mas não a única. As mídias sociais criam uma hiper-realidade de imagens e estilos de vida perfeitos. As pessoas sentem que, se não estão vivendo assim, há algo errado com elas. O que, novamente, remete à ideia de não ser bom o suficiente. O comportamento dos pais também está mudando. Eles sentem que precisam pressionar mais seus filhos porque sabem que, se não o fizerem, os jovens vão despencar nessa hierarquia. Talvez isso não se aplique ao Brasil, mas é o que vemos nos EUA, Canadá e Reino Unido.

  • G |Aqui no Brasil, batemos recentemente um recorde no número de afastamentos do trabalho por questões de saúde mental. Padrões como esse têm a ver também com a pressão pela perfeição?

    TC |

    A explicação clássica é que trabalhamos demais e ficamos esgotados, o que é verdade. Mas há algo mais profundo: o ambiente profissional moderno cria um trabalho sem sentido. Não se trata apenas da intensidade, mas do significado por trás do trabalho. Se não sentimos que temos propósito, podemos desanimar muito rapidamente. Se adicionar a isso uma pressão intensa e a sensação de que não estamos subindo na hierarquia corporativa, você cria uma tempestade perfeita de desconexão, esgotamento, estresse e questões de saúde mental. Então, além do perfeccionismo, importa o significado e propósito que tiramos do nosso trabalho, algo que vem sendo eliminado. Não temos mais tempo para dominar uma tarefa, aprender uma coisa nova ou construir algo. Tudo se tornou muito nebuloso em termos de resultados. Você não conclui seu trabalho, só faz continuamente uma coisa, depois a próxima, e nunca desfruta do sucesso que consegue, porque tem sempre que seguir em frente.

  • G |Vejo amigos cada vez mais sobrecarregados e exaustos, atuando em vagas temporárias ou em vários trabalhos ao mesmo tempo. Como a IA impacta hoje esse cenário já tão inseguro?

    TC |

    A IA é uma grande disrupção, e não consigo me animar com isso. Acho que ela vai substituir muitos empregos — talvez não tantos quanto você imagina, mas vai. A questão é para onde irão esses ganhos de produtividade. Se forem para um grupo pequeno de empresas de tecnologia e acionistas, pode ser um problema enorme, porque haverá uma redução ainda maior de oportunidades. Isso deve criar comportamentos mais perfeccionistas, porque teremos que nos esforçar ainda mais para nos elevar não só acima das outras pessoas, mas também da máquina. Esse futuro distópico pode se tornar um grande peso na saúde mental. O futuro mais otimista para a IA ​​é que os ganhos de produtividade não sejam privatizados, e sim democratizados. Eliminar trabalho desnecessário e preencher com tarefas criativas, que permitam que as pessoas encontrem esse significado. Ou podemos dizer a elas para tirarem um dia extra de folga. Aliviaria o estresse, nos permitiria passar mais tempo com nossas famílias e ser mais criativos e inovadores, correr mais riscos. Portanto, há um lado negativo e um otimista. Mas, se escolhermos o primeiro, sim, isso criará muito mais perfeccionismo e problemas de saúde mental.

  • G |Apesar de as pessoas citarem em entrevistas de emprego o perfeccionismo como um defeito, muitos acreditam que ele é essencial para o sucesso profissional. Mas de fato buscar a perfeição é eficiente?

    TC |

    Os dados são bastante claros: se você é perfeccionista, irá mal em tudo o que fizer. Um dos motivos é que o perfeccionista aloca de maneira ineficiente seus recursos. Ele tende a se torturar por coisas irrelevantes e fáceis de controlar, como e-mails ou reuniões. Do trabalho pesado, não quer nem chegar perto, porque é incontrolável e ele pode falhar. Significa que cria problemas de produtividade e se esgota muito mais por causa dessa estratégia. Ele percebe que não está progredindo, mesmo trabalhando muito duro. Isso cria muita insatisfação e esgotamento. Se você olha para os dados, não tem relação com a perfeição.

  • G |Qual a melhor forma de agir para evitar isso?

    TC |

    Você precisa encontrar o ponto ideal. Perfeccionistas são super otimistas e alocadores ineficientes. Mas você não quer ser o completo oposto, apenas cumprindo as obrigações no trabalho. O ponto ideal está na busca por padrões altos, mas alcançáveis, na capacidade de saber quando as coisas estão boas o suficiente e deixá-las como estão, sem sentir que há algo faltando. Essa habilidade de deixar as coisas irem é a única maneira de seguir em frente. Esse é provavelmente o ponto ideal entre trabalho demais ou de menos.

  • G |No livro, você inclui na busca pela perfeição uma questão importante sobre a necessidade de validação, que hoje está nos apps como Uber, nas redes… Como lidar com isso se a sociedade incentiva essa busca?

    TC |

    A maneira mais fácil é se desligar dos aplicativos. Sei que é uma estratégia extrema, mas funcionou para mim. Não tenho nenhuma rede social além do LinkedIn, que é estritamente profissional. A versão menos extrema é manter um uso rigoroso das redes sociais, tornar sua conta privada e acessível apenas a familiares e amigos próximos, para garantir que a esteja usando pelos motivos certos: compartilhar experiências e descobrir o que as pessoas têm feito. Se conseguir isso, não precisa se preocupar com curtidas ou menções. O objetivo é usar as redes sociais como uma ferramenta social, já que elas foram originalmente projetadas para nos aproximar de outras pessoas. Não existe atalho. Dessa forma, você começa a se preocupar menos com as validações digitais e mais com as experiências no mundo real. Claro, é mais fácil falar do que fazer.

  • G |Temos visto movimentos como o quiet quitting ou exemplos como o de Simone Biles desistindo de uma Olimpíada para cuidar da saúde mental… São tendências que crescem em oposição a essa pressão pela perfeição?

    TC |

    Não, porque comportamentos sutis de desistência já existem em perfeccionistas. Eles escolhem se afastar de certas situações e tarefas, passando a evitar críticas ou julgamentos. Pesquisas mostram que, quando um perfeccionista tem quase certeza de que vai fracassar, ele evita fazer aquilo. Se você diz que falharam em algo e pede que tentem novamente, eles pensam: ‘Eu já fracassei e não quero sentir esse constrangimento de novo, então não vou tentar uma segunda vez’. Na verdade, existem outros fatores por trás desses fenômenos. O maior é essa falta de significado e propósito em nossos empregos. [O historiador e escritor] Rutger Bergman acaba de publicar um livro sobre o tema: profissões que não nos dão sentido nem usam nossas habilidades para melhorar a sociedade [veja aqui entrevista de Bregman para Gama]. Acho que essa é uma parte importante do quiet quitting.

  • G |Aceitar que somos o suficiente ou que não precisamos nos aprimorar o tempo inteiro é desafiador? Tem como escapar das pressões sociais que estão por todos os lados?

    TC |

    Não acho possível aplicar soluções individuais para um problema tão profundamente enraizado nas expectativas e mensagens sociais sobre quem devemos ser. É um enorme gaslighting, que inclusive resume toda a indústria da autoajuda. Um projeto que diz que suas neuroses são um problema seu, mas não fala nada sobre a cultura e as forças sociais que as criam. Então, eu não poderia escrever esse livro sem abordar extensivamente a sociedade. Se concordamos que há fatores sociais em jogo, é tão importante nos concentrarmos neles quanto no indivíduo. Não importa se não somos capazes de controlar essa sociedade. A mera consciência de que ela gera essas neuroses vale dez vezes mais em termos terapêuticos. No último capítulo, tentei explorar algumas ideias utópicas que nunca se concretizarão. Quero que o leitor imagine um mundo em que essas coisas existem. Ainda precisaríamos ser perfeccionistas? Espero que a resposta seja não.

  • G |Nesse caso, o que é mais importante fazer neste momento?

    TC |

    O mais importante é: como garantir que as pessoas se sintam seguras? A insegurança é a chama por trás do perfeccionismo. Para trazer segurança a uma sociedade, é preciso reduzir a desigualdade. E isso inclui coisas como uma renda básica universal. Também precisamos repensar o crescimento econômico como único indicador de prosperidade. Os EUA tiveram uma expansão econômica de US$ 10 trilhões nos últimos dez anos, mas a expectativa de vida caiu. A escolaridade caiu. O vício em drogas está em seu nível mais alto da história. Qual o sentido do crescimento se ele não melhora os indicadores humanos? Não acho que estamos prontos para essa conversa, mas talvez a geração dos meus filhos sim. Não podemos continuar nesse caminho, obtendo altas taxas de crescimento ​​e sociedades cada vez mais irritadas porque os lucros não são compartilhados. Isso leva a menos oportunidades, mais problemas de saúde mental e mais perfeccionismo. Temos que colocar os indicadores humanos de prosperidade acima dos econômicos. Isso é o que eu recomendo. Se vai realmente acontecer é outra questão.

Produto

  • A Armadilha da Perfeição
  • Thomas Curran (trad. Guilherme Miranda)
  • Fontanar
  • 320 páginas

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