Seu trabalho afeta sua saúde mental?
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Depoimento

O que deveria mudar no ambiente da cozinha profissional?

João Diamante, Irina Cordeiro, Thales Alves, Mari Sciotti, entre outros chefs, elencam mudanças cruciais para promover a saúde mental entre os cozinheiros

Isabelle Moreira Lima 04 de Maio de 2025

O que deveria mudar no ambiente da cozinha profissional?

Isabelle Moreira Lima 04 de Maio de 2025

João Diamante, Irina Cordeiro, Thales Alves, Mari Sciotti, entre outros chefs, elencam mudanças cruciais para promover a saúde mental entre os cozinheiros

Na série “The Bear”, há um aviso na cozinha com um lembrete que dá o ritmo da cozinha: “Cada minuto conta”. A necessidade de precisão, o perfeccionismo e a autocobrança dos chefs são fatores de estresse. Quando ligados ao fato de que o ambiente é quente, as jornadas são longas, há desgaste físico, os salários são baixos e há pouca folga, tem-se uma bomba armada e pronta para explodir.

Profissionais da cozinha ouvidos pela Gama contam um pouco sobre como é a vida nessa trincheira em que muita coisa parece jogar contra a sua saúde mental. Eles sugerem o que poderia mudar a situação. Uma escala de trabalho com um dia a mais de folga (no geral a escala é de um dia de descanso por semana, o formato 6×1), que daria mais tempo para a vida pessoal, e alterações na postura de quem atua na cozinha são dois pontos cruciais.

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    “Precisamos cultivar o respeito e entender que disciplina não precisa vir junto de violência”

    João Diamante, chef do Restaurante Dois de Fevereiro, no Rio

    “A cozinha é um lugar de criação, mas também onde muitos adoecem — física e mentalmente. Precisamos mudar a cultura da exaustão: jornadas longas, calor, gritos e falta de reconhecimento não são ‘parte do ofício’. Outra mudança urgente é no modo como se lidera. A cozinha não pode ser conduzida pelo medo. Precisamos cultivar o respeito e entender que disciplina não precisa vir junto de violência. Além disso, muitas cozinhas são sustentadas por mulheres, pessoas negras, LGBTQIAPN+ e imigrantes, mas nem sempre isso se reflete em oportunidades ou condições dignas. Mudar isso é uma questão de justiça. Valorização real inclui salário digno, pausas e tempo para viver. Quem alimenta o mundo também merece cuidado.”

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    “Ninguém é feliz e nem estável vivendo só para trabalhar”

    Irina Cordeiro, chef do Cuscuz da Irina e do Irina Restaurante, em São Paulo

    “É uma lista infinita, mas hoje trabalho ativamente por mudanças. Se preocupar com a diversidade em todos os sentidos – gênero, orientação sexual ou idade – é o primeiro passo. Meu time é de 90% mulheres, com muitos LGBTQIAPN+ e pessoas mais velhas, essenciais no Cuscuz, onde valorizamos a comida de vó. Optamos por trabalhar apenas no turno do almoço, garantindo que todos tenham tempo para vida pessoal e descanso. Quando abraçamos a diversidade, o clima melhora naturalmente. E aí não precisa fazer grandes ações mirabolantes porque, às vezes, são as simples que mudam o dia a dia: comida digna no refeitório e respeito já transformam. Ninguém é feliz e nem estável mentalmente vivendo exclusivamente para trabalhar.”

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    “O mínimo seria oferecer atendimento psicológico semanal”

    David Cruz, chef do Quitéria, no Rio

    “A saúde mental na gastronomia está muito afetada. Enquanto os profissionais precisam de terapia, lazer e momentos com a família, as rotinas são pesadas. Mesmo entre os chefs, que trabalham menos que os cozinheiros iniciantes, a taxa de suicídio ainda é alta. A escala 5×2 ajudaria, mas muitos restaurantes não têm recursos para contratar mais. O mínimo seria oferecer atendimento psicológico semanal, principalmente para gestores. Palestras frequentes sobre saúde mental são urgentes. Por enfrentarem toda essa carga emocional, os chefs de cozinha acabam sendo mais agressivos com suas equipes. Então, é importante o treinamento para ter uma comunicação não violenta. Além do clima estressante, em muitos lugares, o ambiente é insalubre: precisamos cada vez mais dar atenção a isso.”

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    “Todo profissional conhece alguém que surtou na cozinha”

    Thales Alves, consultor gastronômico e ex-MasterChef

    “Como psicólogo e chef de cozinha, vejo como a saúde mental nesse ambiente é negligenciada. Trabalhamos 6×1, muitas vezes 7×7, com folgas ‘compradas’ [quando os restaurantes pagam pelo dia que deveria ser de descanso] e jornadas triplas por falta de mão de obra. Todo profissional conhece alguém que surtou na cozinha – é um adoecimento coletivo. Para as pessoas negras, que são maioria nas cozinhas, o descaso é ainda maior, com negligência do Estado e do sistema de saúde. Sempre acreditam que é drama, que a gente aguenta mais. O que eu peço sempre para as pessoas é para que elas cuidem muito de quem trabalha na cozinha, que reflitam sobre o trabalho e aproveitem ao máximo a possibilidade da gente conquistar um ambiente mais saudável mentalmente para todos os colaboradores.”

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    Foto de Bruno Geraldi

    “Depois da pandemia, a pressão na cozinha se potencializou”

    Ivan Santinho, chef da La Cura Gastronomia/Baixo Gastronômico, em São Paulo

    “Estou na cozinha há 15 anos e, desde que entrei, me deparei com vários indícios de que era uma profissão delicada. O que é estranho, porque quando pensamos em cozinha, parece uma coisa tão prazerosa, bonita, lúdica – aquela ideia da pessoa fazendo o que ama. Mas há uma pressão muito grande, trabalho em pé com uma variação grande de temperatura, a jornada desgastante. Depois da pandemia, isso se potencializou. A inflação subiu muito, as pessoas demoram para chegar ao trabalho, ganham pouco, voltar para a casa e ter um monte de problemas. Tudo isso vai virando uma bola de neve tão grande que, junto aos fatores próprios da cozinha, vira uma bomba. O que eu vejo como solução é reduzir a pressão. Aqui na La Cura, adotamos um turno só por dia e fazemos escala 5×2 a cada 15 dias. Um dia não é suficiente para a pessoa descansar fisicamente, o que dirá mentalmente.”

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    “A cozinha deve considerar que o colaborador tem uma vida fora dela”

    Mari Sciotti, chef do Quincho, em São Paulo

    “A cozinha deve considerar que o colaborador tem uma vida fora do ambiente profissional, e essa vida tem demandas. Sendo assim, cargas horárias justas, estrutura para que o trabalho seja desenvolvido da melhor forma e investimento interno para que a equipe possa evoluir. É essencial que se compreenda que mães sempre terão demandas externas nas quais elas são insubstituíveis, porém todo pai deve ser atuante no que diz respeito à sua casa e família também. Posso dizer que conto nos dedos as vezes em que um funcionário homem meu faltou pra levar filhos ao médico. Já as mulheres sempre precisam sair. Também é preciso que os profissionais sejam comprometidos e não esperem que todos os direitos lhes sejam garantidos sem os deveres serem cobrados. As coisas levam tempo e é preciso saber disso caso queira ter uma carreira sólida.”

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    “Existe uma glamourização do sofrimento na cozinha”

    Raphael Vieira, cozinheiro que se prepara para reabrir o restaurante 31, em São Paulo, e é sócio do bar Alba

    “Existe uma glamourização do sofrimento na cozinha, como se o cozinheiro fosse como os ‘artistas indomáveis’ ou a estrela do rock que vai trabalhar demais, curtir ao máximo e morrer cedo. Vivi isso por muitos anos quando trabalhava para os outros, e acho que isso muda com a maturidade e o desenvolvimento pessoal. A principal mudança a ser feita é a de cultura: entender que a cozinha pode ser uma forma de se expressar, mas o cozinheiro não precisa ser artista maldito. A rotina 6×1, as jornadas de 20 horas, essas coisas acontecem por essa cultura. Tenho me esforçado diariamente para me desenvolver enquanto pessoa e cozinheiro. É preciso ser mais aberto para receber tanto os sinais externos quanto as dicas dos colegas. O cozinheiro tem que ser uma pessoa mais sensível nos seus relacionamentos e com o mundo, precisa entender qual é o seu lugar no mundo, o que pode fazer por ele.”

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    Foto de Falzer

    “Temos que ficar alertas, mas não estressados”

    Andrea Kaufmann, chef do AK Deli, em São Paulo

    “A cozinha é um lugar quente, úmido, onde as coisas são urgentes e a gente precisa trabalhar com tudo muito limpo. Tem fogo, tem água. Então, isso já faz com que a gente tenha que ficar alerta, mas isso não significa que precisamos ficar estressados. Para isso, algumas coisas podem ajudar, como por exemplo, uma carga de trabalho não tão intensa. Outra coisa que coopera para a saúde mental é fazer oficinas, como a gente faz na AK, de  meditação, yoga… Entender que somos mais do que um corpo: somos corpo e mente. Isso ajuda muito na hora da pressão. Em terceiro lugar, é pensar que vai passar. O serviço de um restaurante é realmente muito intenso, mas o final do dia sempre chega.”

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