Vale a pena usar apps de rastreamento parental? — Gama Revista
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Reportagem

Apps de rastreamento parental: quando vale a pena usar

Ferramenta é útil para famílias que vivem em cidades violentas e agitadas, mas especialistas alertam para que o uso constante não se torne uma vigilância paranoica sem transparência

Ana Elisa Faria 20 de Agosto de 2023

Apps de rastreamento parental: quando vale a pena usar

Ana Elisa Faria 20 de Agosto de 2023
Isabela Durão

Ferramenta é útil para famílias que vivem em cidades violentas e agitadas, mas especialistas alertam para que o uso constante não se torne uma vigilância paranoica sem transparência

Hoje, a tecnologia permite que pais e mães acompanhem todos os passos dos filhos. Literalmente. No gigante mercado de aplicativos, crescem as opções de ferramentas que permitem rastrear cada movimento das crianças e dos adolescentes, na escola, na casa de colegas, no cinema com a galera ou em deslocamentos para qualquer outra atividade — 24 horas por dia.

De acordo com uma pesquisa da empresa de segurança cibernética Kaspersky, metade dos pais em 19 países, incluindo o Brasil, usam apps de controle parental, softwares que ajudam a monitorar tanto o comportamento juvenil on-line, com bloqueio ao acesso a sites inadequados, limite de tempo de tela e rastreador de chamadas e mensagens, quanto os trajetos da garotada pelo mundo real, nas locomoções cotidianas, por meio do GPS. A Qustodio, desenvolvedora de um popular programa do tipo, divulgou que o número de usuários do produto vem crescendo no país. Em 2021, por exemplo, o aumento foi de 40%.

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Fazer uso de instrumentos como esses pode ser tranquilizador, mas há alguns pontos a refletir: quando esse acompanhamento passa dos limites? E se a preocupação genuína com a segurança da criança vira uma paranoia? Há impactos na vida do jovem caso a vigilância se torne excessiva? Até onde deve ir a autonomia no ir e vir dos filhos que ainda não chegaram à maioridade? Para debater sobre essas questões, Gama conversou com especialistas que deram dicas para que familiares não ultrapassem uma fronteira salutar ao baixar esses dispositivos.

Cordão umbilical tecnológico

A psicóloga Andréa Jotta, do Janus, Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação, da PUC-SP, diz que a linha entre o controle e a independência pode ser muito sutil. Ela não vê problemas na utilização dos aplicativos de monitoramento parental, principalmente por famílias que vivem em cidades grandes, violentas ou com crianças e adolescentes que cotidianamente se locomovem sozinhos, como da escola para a aula de natação, do curso de inglês para casa, mas alerta que a fiscalização demasiada tende a incomodar e até prejudicar o desenvolvimento dos rebentos.

“Se o pai e a mãe estão usando esse serviço para controlar demais ou viver a vida do adolescente, eles ultrapassam um limite aceitável porque, no fim, a adolescência é uma fase de experimentações. Então, se os pais estão num nível de controle que precisam desse rastreamento para suprir a ansiedade em relação aos filhos quando eles estão longe, não é saudável”, explica.

Especializada em ciberpsicologia, Jotta comenta que quando o localizador vira uma espécie de cordão umbilical eterno, é sinal de perigo. A superproteção dos chamados pais-helicópteros — descritos pelo New York Times como aqueles “que pairam ansiosamente perto dos filhos, monitorando todas as atividades” — , é danosa porque atrapalha no amadurecimento dessas pessoas.

Se os pais estão num nível de controle que precisam do rastreamento para suprir a ansiedade em relação aos filhos, não é saudável

A profissional cita alguns comportamentos prejudiciais dos pais ao usar esses apps, que deveriam tranquilizá-los justamente por mostrar a localização exata dos filhos. Uma dessas atitudes é ligar incessantemente para checar se de fato aquele adolescente está onde o GPS aponta e o que está fazendo. “Eu atendo pacientes que dizem: ‘Olha, tento ficar longe do celular, mas de repente, enquanto estou na biblioteca estudando, minha mãe liga. Se eu não atender, ela fica preocupada. Então, fica ligando, ligando, ligando; liga até para os meus amigos’”, conta.

Agir dessa forma, além de interromper momentos de autonomia e individualidade do filho ou da filha, alimenta o uso pesado do smartphone. “Aquele jovem estava ali jogando bola, brincando, estudando, mas por não estar nas vistas dos pais, eles ‘precisam’ telefonar. E uma vez que o adolescente desligou a conversa, com o celular à mão, automaticamente ele vai para as redes sociais, para o joguinho, e fica on-line mais tempo do que deveria”, comenta Jotta.

Imagem do aplicativo de controle parental Qustodio  

Combinados transparentes

A psicóloga lembra ainda de pais que instalam aplicativos de monitoração sem o consentimento dos filhos, o que acaba levando, conforme ela fala, a uma “relação persecutória”. “Não é uma preocupação com o bem-estar do jovem, é o interesse em pegá-lo fazendo alguma coisa errada [seja na rua ou na internet]. Assim, os pais não estão querendo educar o filho, mas persegui-lo”, avisa.

Uma vez descobrindo qualquer atitude errada ou alguma omissão do filho, que, de repente, foi à casa de um amigo sem comunicar, andou sozinho por um bairro desconhecido ou mentiu que navegou por sites impróprios, o que os pais farão com essas informações?, questiona Andréa Jotta. “Se contarem o que viram e como viram, sobretudo, o adolescente pode se sentir traído e condicionado a mentir, a enganar, a ocultar. E ele vai começar a usar artimanhas para se desfazer desse controle”, responde.

Para ela, que defende que o uso desses apps tenha combinados explícitos entre as partes e que todos saibam do que se trata o dispositivo baixado, caso o nível de desconfiança dos pais seja grande ou o objetivo seja a patrulha pela patrulha, o melhor a se fazer é esperar mais um tempo para dar o celular e acompanhar o passo a passo a rotina juvenil “porque a educação tem de ser integral”. “De novo, faz parte da adolescência correr riscos, e dar telas hoje em dia significa você ter que estar junto com o adolescente até que ele prove que tem autonomia para usar aquela ferramenta. É preciso ensiná-lo a lidar com aquele mundo.”

Kelli Angelini, advogada especialista em educação digital e autora do livro “Segredos da Internet que Crianças e Adolescentes Ainda Não Sabem” (Editora InVerso, 2023), concorda. Assim como no comecinho da vida da criança, o adulto a pega pela mão ao atravessar a rua e, aos poucos, vai soltando e observando de longe até que em determinado momento ela consegue ir sozinha em segurança, com a internet, “que é como uma rua digital”, é a mesma coisa. Para caminhar por ali, um local onde há veredas de toda sorte, é necessário primeiro pegar na mão do jovem, ensinar os caminhos, instruí-lo quanto aos riscos e, depois, deixá-lo andar sozinho.

“Os aplicativos de controle parental vieram para, de certa forma, auxiliar os pais nessa incumbência de acompanhar os filhos no uso da internet. E os rastreadores [uma das funções desses programas] têm servido, especialmente em cidades em que a segurança física é mais comprometida, para que os pais saibam onde os filhos estão, acompanhem quando saem desacompanhados, seja para a faculdade, para o colégio ou quando vão a uma festa e à casa de um amigo”, detalha.

O pior cenário é acionar a localização sem uma conversa com os filhos, porque senão o uso vai aparentar que o objetivo é a vigilância, e não o cuidado

Esse, de acordo com Angelini, é o contexto de uso desses apps que ela mais observa nos relatos durante as palestras que oferece para pais, educadores e jovens. “Na maioria das vezes, inclusive, os pais me contam que o rastreamento é compartilhado com toda a família. Ou seja, todos os membros daquele núcleo familiar sabem as respectivas localizações. É um combinado justamente para que haja um acompanhamento de segurança.”

A advogada reforça sobre a importância de os jovens terem consciência da instalação dessa ferramenta como um símbolo de proteção parental. “O pior cenário é acionar essa localização sem uma conversa prévia com os filhos, porque senão o uso vai aparentar que o objetivo é a vigilância dos pais, quando, na verdade, não é, é um cuidado.”

Proteção de dados

Os benefícios de salvaguardar crianças e adolescentes ao usar softwares de monitoramento em metrópoles violentas estão dados. Mas Kelli Angelini, estudiosa da privacidade, atenta para outro tipo de segurança que pais e responsáveis devem ficar de olho ao escolher no mercado digital um dos tantos aplicativos que oferecem esse serviço: a proteção de dados.

“Muitas vezes, a localização que os pais utilizam como forma de cuidado e segurança para com os filhos se torna objeto de análise comportamental por parte das empresas que justamente oferecem esse serviço. Uma vez que essa localização esteja acionada, muitos dados podem ser coletados e tratados a partir do uso desses aplicativos”, pondera.

Segundo Angelini, o tratamento de dados que possam vir a ser coletados por companhias desenvolvedoras que não seguem a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) pode gerar prejuízos, principalmente, às crianças e aos adolescentes, que ainda são seres vulneráveis, se tiverem vazadas informações privadas e imagens pessoais, por exemplo.

Ela indica que, ao baixar apps do gênero, os adultos leiam na íntegra os termos de uso para saber exatamente o que está sendo coletado e quando está sendo coletado. “Alguns aplicativos pedem permissão não só para ver a localização, porque é essa a finalidade deles, mas também para ter acesso a todas as fotos e a todos os vídeos. Qual a necessidade de um aplicativo que vai oferecer um sistema de geolocalização acessar fotos e vídeos que estão na tela daquele aparelho?”, reflete.

É importante ter o conhecimento de que, mesmo com a LGPD, ainda há empresas que não estão em conformidade com a lei e acabam pedindo acesso ou, às vezes, tendo acesso sem a permissão a dados que não fazem parte da finalidade do serviço que estão se propondo a entregar. Por isso, além de fazer uma leitura atenta ao documento de termos de uso, outra indicação é checar as avaliações de usuários. Além disso, trocar com outros pais sobre qual ferramenta usam, saber pontos positivos e negativos, o que acham no geral, pode ser benéfico na hora de escolher qual download fazer.

“É fundamental não aceitar empresas que ofereçam serviços que peçam a coleta de dados, ou o tratamento de dados, além do que é necessário para o uso daquele próprio serviço, o que é, inclusive, vedado pela legislação vigente”, conclui Angelini.