O primeiro evangelho de Cesar MC — Gama Revista
Marcelo Martins

O primeiro evangelho de Cesar

Com participação de Emicida e Djonga, álbum de estreia do rapper capixaba fala sobre racismo e fé

Daniel Vila Nova 17 de Setembro de 2021

“Na nova geração tem muito maluco foda. Sabe o Cesar MC? Sou fã dele. Ele é o tipo de cara que você escuta rimando e te dá vontade de sair fazendo música também”, afirmou Emicida no podcast Podpah. Não é todo dia que um dos principais rappers do Brasil aponta para um novato e o cita como inspiração, mas para aqueles que acompanham o mundo do rap há alguns anos, a admiração generalizada por Cesar não é novidade. O rapper capixaba de 24 anos é considerado há algum tempo um dos maiores MCs das batalhas de rima nacional, tendo se sagrado campeão brasileiro em 2017.

Com versos profundos e ideológicos, ele se destacou nos palcos do Brasil com seu freestyle agressivo e impactante e não demorou muito para que o mundo do rap começasse a clamar por seu primeiro álbum. Após um single de 2019 que acumula 65 milhões de visualizações entre YouTube e Spotify, Cesar MC finalmente lançou o seu tão aguardado disco de estreia. “Dai a Cesar o Que É de Cesar”, que conta com a produção da Pineapple StormTv, tem sete faixas e uma duração de menos de 30 minutos. O tempo, entretanto, é o suficiente para o músico capixaba abordar seus sonhos, o racismo enfrentado por ele e, acima de tudo, a fé que o move e a religião que o afasta.

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O disco ainda conta com a participação de dois gigantes do rap nacional, Djonga na faixa “Neguin” e o próprio Emicida na canção “Antes Que a Bala Perdida Me Ache”. “A perna tremeu no primeiro momento”, fala Cesar sobre trabalhar com seus ídolos, “mas eu rapidamente transformei isso em alegria. Não me senti pressionado, me senti pertencente. Não há honra maior do que somar voz com personalidades tão influentes para mim.”

O rap é uma poderosa arma para passar uma mensagem e eu me vejo em um local de provocação e reflexão

O músico também aponta nomes como Mano Brown, Renato Russo, Charlie Brown Jr., Cássia Eller e Milton Nascimento como suas influências musicais e afirma que deseja contribuir com as discussões sociais com a sua arte. “Sempre fui um cara transformado pelas perguntas certas e não pelas respostas exatas. O rap é uma poderosa arma para passar uma mensagem e eu me vejo em um local de provocação e reflexão.”

Gama conversou com Cesar MC sobre sua trajetória nas batalhas de rima, a concepção do seu novo álbum e os temas que o jovem rapper abordou em seu disco de estreia.

Vai matar ou vai morrer?

Se hoje as batalhas de rimas são sucessos estrondosos na internet, com direito a milhões de visualizações, eventos em todos os cantos do país e diversos MCs com projeção nacional, o cenário era diferente em 2014. Cesar Resende Lemos praticava suas rimas improvisadas como desabafos em um diário. Qieto e introspectivo, o garoto — filho de um funcionário público e de uma professora de português — morava no Morro do Quadro em Vitória, no Espírito Santo, e rimava sobre o seu cotidiano durante viagens de ônibus.

O primeiro contato com as batalhas de MC aconteceu por acaso, enquanto Cesar passava por uma praça. Os gritos animados e a roda de pessoas rimando chamaram a atenção d dele, que daquele dia em diante jamais deixou de comparecer as batalhas. “Me sinto privilegiado de ter chegado ao espaço da música pelas batalhas, senti na rua como a cultura hip hop se manifestava”, afirma o rapper. As noites nas batalhas, entretanto, eram divididas com a faculdade de matemática que cursava.

Marcelo Martins

Apesar de gostar da matéria, ele optou por trocar seu curso — saiu da matemática e entrou na “universidade do rap“. “A faculdade consumia 24 horas do meu dia. Se for para me dedicar, vou me dedicar a algo que amo, mesmo que haja um grande risco de não dar certo.” Ele rodou o Brasil conhecendo outros MCs, se aprofundando na cultura hip hop e escrevendo muita poesia e música. “Isso me fez amadurecer, desenvolvi uma postura que não conseguiria achar de outra forma. Esses momentos construíram o Cesar de hoje”, disse.

Foram várias batalhas sem plateia, na chuva, só eu e o oponente. Construímos esse movimento com muita luta e resistência

Em 2016, ele já era um MC conhecido e respeitado no cenário brasileiro quando foi para Belo Horizonte, em Minas Gerais, para participar do Duelo de MCs Nacional — uma espécie de campeonato brasileiro de freestyle. A derrota nas quartas de final para Sid, que se sagraria campeão naquele ano, foi dura e quase fez Cesar desistir de rimar. Mas o músico insistiu e retornou ao Viaduto Santa Tereza para se sagrar campeão de forma incontestável no ano seguinte. O vídeo da final, onde o rapper venceu Drizzy por 2×1, é até hoje a batalha mais vista do campeonato, com mais de 7 milhões de visualizações no YouTube. “Desde 2014 foram várias batalhas sem plateia, na chuva, só eu e o oponente. Construímos esse movimento com muita luta e resistência e quando eu fui para o palco do Nacional, com quase 20 mil pessoas, e ganhei, só me restou chorar e agradecer.”

Até hoje, Cesar é considerado um dos melhores MCs que já passaram pelo nacional. Suas compilações de melhores rimas ultrapassaram a casa dos milhões de visualizações e sua postura acima do palco, aliado as rimas complexas e bem estruturadas, lhe renderam um espaço cativo no coração dos fãs de batalhas. “Sempre fui um cara quieto e na minha, mas quando entendi que aquilo poderia ser mais do que um simples desabafo, comecei a dar voz ao que eu carreguei dentro de mim por toda minha vida.” No palco, o garoto tímido dá vez a um rapper imponente e agressivo que mandava rimas sagazes e profundas. “A batalha era meu lugar de desabafo, tentava resolver minha vida toda naquelas 45 segundos. As pessoas falam que são rimas ideológicas e agressivas, mas eu só estava devolvendo o que recebi do mundo”, comenta o MC.

Fé em Deus que ele é justo, irmão

Após a vitória no nacional, o rapper capixaba passou a se dedicar mais à composição de músicas. “Eu respirava batalha 24 horas por dia e entreguei tudo o que poderia ter entregado naquele ambiente. Chegou um momento em que, como amante da música e da poesia, senti que precisava ser honesto comigo mesmo.” A honestidade veio com uma dedicação total à carreira musical e Cesar apostou no mundo lúdico como seu cartão de visitas. “O meu primeiro instinto no mundo da música foi gritar uma verdade. Cantava para mim mesmo que era possível, sem ao menos ter realizado. Era um grito de esperança.” Canção Infantil, que conta com a participação do Coral Serenata D’Favela, é uma das suas primeiras músicas e já acumula mais de 40 milhões de visualizações no YouTube.

“Dizem que o primeiro disco de um artista sempre é sobre tudo o que foi vivido por ele até então. Por mais que exista um conceito, não há como negar um teor autobiográfico. Busquei respeitar isso”, diz Cesar. E para além dos temas pessoais, o disco também aborda uma das principais questões na vida do músico — sua fé. “Em um momento onde vemos um slogan político usando o nome de Deus em vão, não haveria como eu ser indiferente a essas questões.”

O título do álbum, além de uma brincadeira com o nome do músico, remete a uma clássica passagem da Bíblia. Nela, Jesus Cristo é questionado se judeus devem pagar impostos aos romanos e responde “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Segundo o rapper, a frase bíblica foi a linha criativa de todo o álbum. Para ele, a depender do que Jesus respondesse, Ele seria colocado em uma caixinha ou em outra, mas a resposta de Cristo passou por cima dessas questões. “A justiça que Ele pregava excedia esse lugar. Quando estão pegando a caixa da fé e a colocando dentro de um único aspecto político, é importante retomar esse diálogo.”

Mais do que afirmar a minha fé, eu preciso denunciar o que ela não é

Cesar, que relata ser alguém transformado pelo amor e fé em Deus, diz que a religiosidade em torno da crença o sabotou inúmeras vezes durante esse processo. Escândalos de corrupção dentro de ambientes religiosos e a utilização da fé para proveito próprio afastaram o rapper de suas crenças. Foi somente quando ele entendeu que sua crença era algo diferente que ele passou a desejar que as pessoas conhecessem, longe dos muros da religião, a experiência que lhe fez tão bem. “O que era muro estou tentando transformar em ponte e espalhar uma experiência honesta, ainda que as pessoas pensem diferente e rejeitem. Minha responsabilidade é transmitir o que é bom.” Acima de tudo, ele presa pela honestidade e acredita que, se quer transmitir a mudança que Cristo fez em sua vida, deve ser sincero. “Mais do que afirmar a minha fé, eu preciso denunciar o que ela não é”, afirma. “A fé pode e deve ser ponte. A fé é amor e não pode compactuar com essa onda de ódio que vem utilizando o nome de Cristo em vão.””

Trabalhando para virar uma referência

Além das referências bíblicas, o álbum também propõe uma forte reflexão racial em faixas como “Neguin” e “Antes que a Bala Perdida me Ache”. O título do disco se torna então uma referência a um dos principais símbolos do Império Romano de César — o coliseu. “Entendo que a favela é um coliseu moderno.” Segundo ele, se no coliseu romano existiam batalhas individuais e coletivas pela própria sobrevivência em meio a aplausos da elite, a vida nas comunidades também é recheada de batalhas individuais e coletivas pela própria sobrevivência em meio a aplausos da elite. “Sabemos que isso não é um acidente.”

A questão racial é algo que, ele acredita, deve permear sua carreira. “Eu quero cantar a vida, mas infelizmente, uma parcela gigante dela carrega racismo. Quando uma pessoa preta se propõe a falar qualquer coisa nesse país, o racismo sempre aparece.” Cesar acredita que estar em um lugar de destaque torna necessário que ele não seja indiferente. “Dentro da cultura hip hop, nós nos escutamos muito. Ouvir uma música sobre a dor de alguém que passa pela mesma situação que eu não trás tristeza, mas sim força.”

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