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ConversasAlana Portero: "Todos têm um armário do qual sair"
Em romance elogiado por Almodóvar, escritora que é presença confirmada na Flip narra o cotidiano de autodescoberta de uma jovem trans
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Alana Portero: “Todos têm um armário do qual sair”
Em romance elogiado por Almodóvar, escritora que é presença confirmada na Flip narra o cotidiano de autodescoberta de uma jovem trans
“Vi uma geração inteira de rapazes cair como anjos em estado terminal.” Dessa forma a protagonista de “Mau Hábito” (Amarcord, 2024) inicia o relato sobre como, contando ainda cinco anos, presenciou a queda de um jovem seminu, uma seringa enfiada no pé, após saltar de um apartamento acima do dela para a calçada. Na época, revela a personagem, o empobrecido distrito de San Blas, em Madri, onde as drogas afetaram uma infinidade de jovens no final do século 20, era também uma das localidades da capital espanhola onde a polícia “fazia corpo mole para trabalhar”.
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O forte início desse romance inaugural da escritora espanhola Alana Portero, no entanto, esconde também uma história de amor. Aquele jovem vítima de overdose, com o rosto marcado por traços suaves “de quem não chegou a ser homem”, foi a primeira pessoa que a pequena protagonista teve vontade de beijar. “Se aos cinco anos alguém é capaz de se apaixonar, me derramei completamente por aquele pobre desgraçado”, narra.
Elogiada pelo cineasta Almodóvar, de quem é fã confessa, a estreia da autora madrilenha acompanha a infância e juventude de uma garota aprisionada no corpo de um menino, que, a passos curtos, ela está aprendendo a habitar. “Não queria que, por minha personagem ser trans, ela se movesse exclusivamente no terreno do trauma ou da tragédia. Essa história já foi contada e, no final, acabou se mostrando um fetiche de pessoas que não são trans”, conta a escritora em entrevista a Gama.
Nascida e crescida no mesmo bairro madrilenho onde sua narrativa se passa, Portero vem de uma longa trajetória no teatro e na poesia, mas foi sacudir mesmo o universo literário espanhol este ano com seu primeiro romance. Um fenômeno por lá, a obra, que por aqui ganhou tradução de be rgb, chega oficialmente ao Brasil no início de 2024, inaugurando o novo selo Amarcord, do Grupo Editorial Record.
A escritora será também uma das principais atrações da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece em novembro. No evento, ela compartilha uma mesa da programação oficial com a equatoriana Mónica Ojeda, autora do romance “Mandíbula” (Autêntica, 2022), do recém-lançado livro de contos “Voladoras” (Autêntica, 2023) e criadora de um estilo que ela mesma apelidou “gótico andino”.
Portero pretende desafiar em sua obra as caixinhas nas quais costumam ser colocados livros de autoras mulheres e trans, defendendo com unhas e dentes sua posição dentro da literatura universal. “Posso anunciar meu romance como quiser, posso dizer que é um romance trans, feminino, uma autoficção, mas isso sou eu quem decide”, afirma.
Dona de um estilo narrativo repleto de cores e descrições, ela constrói com ternura a galeria de personagens marcantes que fazem parte do cotidiano juvenil de sua protagonista. A riqueza de detalhes com que narra seu entorno, no entanto, fala não apenas do poder de observação da garota, mas de uma sensação, presente ao longo de todo o livro, de estar assistindo a tudo de forma inerte, oculta num armário do qual ela teme sair — sentimento que, mais tarde, veremos englobar outros personagens da história.
No papo com Gama, a autora revela também suas inspirações profundamente religiosas, trata da conexão íntima entre desejo e morte e da rede de intersecções entre os vários tipos de marginalidades que ajudam a compor os personagens de sua obra.
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G |Hoje a experiência de pessoas trans vem aparecendo com mais frequência na literatura, como no seu caso, no da argentina Camila Sosa Villada ou da Amara Moira aqui no Brasil. Qual a relevância dessa variedade de retratos, e o que falta para que isso avance?
Alana Portero |Falta justamente que as histórias com personagens ou escritas por pessoas trans, neste caso mulheres trans, se incorporem à cultura como qualquer outra. Até agora, a maneira que o mundo encontrou para se aproximar das nossas histórias tem sido, por um lado, o fetiche e, por outro, o escárnio. E, em relação à cultura, esse movimento tem acontecido por meio de estudos e ensaios. Creio que isso traz um componente de desumanização. Só vamos nos incorporar de verdade ao humano quando nos convertermos em narrativas universais. E nós temos esse direito, eu reivindico meu direito de ser universal. A prova é que, quando tivemos acesso a narrativas como as de Camila Sosa Villada ou as minhas, nossas histórias foram recebidas com entusiasmo e o mesmo interesse que qualquer outra. Então passa por nos incorporarmos à cultura a partir de uma perspectiva cultural, não acadêmica.
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G |Ainda que viva uma realidade difícil e crua, a protagonista de “Mau Hábito” mantém sua curiosidade e esperança frente ao mundo. Para você, era importante construir esse equilíbrio tanto na personagem quanto no tom da narrativa?
AP |Não me apetecia nada contribuir com outro relato cínico. Não queria que, por minha personagem ser trans, ela se movesse exclusivamente no terreno do trauma ou da tragédia. Essa história já foi contada e, no final, acabou se mostrando um fetiche de pessoas que não são trans. É o que se espera que contemos: um grande drama, uma tragédia sem solução e uma obscuridade que não tem saída. E eu não queria escrever isso, queria me mover num terreno em que a escuridão tivesse seu protagonismo, mas a esperança também. É o que acontece em qualquer vida, na realidade. Todo mundo atravessa alguma escuridão, mas em muitos casos a esperança se conserva.
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G |É comum acharem que o livro é uma autobiografia ou autoficção? Qual a sua visão sobre os rótulos colocados no trabalho de autoras mulheres, LGBTQIA+, negras?
AP |O rótulo dado a certos romances como literatura feminina, LGBT+ ou trans responde à lógica do mainstream e foi pensado para diminuir essas obras, para colocá-las fora do universal. Esses rótulos, as únicas que têm direito a aplicar somos nós mesmas. Posso anunciar meu romance como quiser, posso dizer que é um romance trans, feminino, uma autoficção, mas isso sou eu quem decide. Quando catalogam minha obra logo de cara dessa forma, é para diminuí-la, colocá-la numa estante diferente daquela que há séculos vem sendo considerada literatura. Não vou permitir que tornem minha obra pequena, porque ela não é. Quando começarem a perguntar a todos os escritores homens se os personagens parecidos com eles são autoficção, aí passarei a responder essa pergunta. Mas isso geralmente não acontece. Se lermos autores maravilhosos como Philip Roth, Cormac McCarthy e Paul Auster, seus personagens se parecem muito com eles. Ninguém toma suas narrativas como autoficção ou cataloga sua literatura como masculina.
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G |Me encantam as descrições vívidas que você faz de personagens como a Peruca ou Raul. Como faz para escrever com tanta riqueza de detalhes e brilho a existência de tipos tão únicos?
AP |Cada personagem tem alguma coisa ou é desenvolvido a partir de uma soma de características de pessoas que conheci na vida real. E também possui algo das ficções que me construíram como leitora e fizeram parte da minha educação cultural. Desde os romances góticos, filmes de Almodóvar e obras de ficção científica, minhas obsessões culturais e fetiches estéticos, até minhas próprias vizinhas, amigas da rua, mulheres trans e travestis que conheci ao longo da vida. Há um pouco de tudo isso.
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G |O livro vem sendo bastante comparado com a obra de Almodóvar, que inclusive elogiou e recomendou o romance. Ele foi de fato uma inspiração importante?
AP |Essas comparações me deixam orgulhosa, as aceito com muito carinho. Não pretendia escrever uma ficção almodovariana, mas é inevitável que a obra de Pedro se infiltre naquilo que faço, porque ele é uma referência inegável, absoluta para mim. Cresci com seus filmes. A primeira vez que assisti a um longa de Pedro eu tinha oito ou nove anos, e continuo vendo-os regularmente. Para mim é importantíssimo, uma referência pessoal, cultural e uma pessoa a quem devo muitas horas de intimidade, diversão e drama. Que ele tenha gostado de “Mau Hábito” e falado publicamente do livro é um privilégio absoluto. Agradeço muito a ele por isso.
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G |O romance envereda pelo cotidiano da classe trabalhadora de Madri e por questões como as drogas, a desigualdade e a violência. A posição marginalizada da protagonista ganha novos contornos dentro dessa realidade também periférica?
AP |Queria narrar de maneira justa e precisa o componente de classe, que para mim era muito importante. No romance, ele tem o mesmo peso que a questão trans ou a cidade de Madri, quase uma personagem do livro. Fazer isso com justiça implica não idealizar nem narrar um conto maravilhoso sobre a luta trabalhadora, no qual toda a classe está unida, porque não é real. Dentre os trabalhadores também há classes e hierarquias. É importante falar sobre isso. As mulheres ocupavam um lugar secundário no imaginário trabalhador, mas eram elas que permitiam que os maridos saíssem às ruas para lutar por seus ideais. Quando voltavam, a casa estava arrumada, os filhos bem cuidados, a comida sobre a mesa. Elas sustentavam esse mundo. A vida das pessoas LGBT+ já era complicadíssima, e elas constituíam uma marginalidade dentro dessa margem, uma subclasse. Idealizar as coisas, por mais que você as ame, desumaniza. Acabamos pintando retratos injustos que não vão a lugar algum.
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G |O primeiro desejo amoroso e sexual da protagonista de “Mau Hábito” se confunde com a morte, a violência e a religiosidade. Por que você escolheu esse momento específico para iniciar a história?
AP |Porque tudo que já desejei nesta vida me deu medo. Eros e Tânatos para mim estão inevitavelmente unidos. Além disso, tenho grande influência da iconografia católica na minha obra. Ela é que levou ao meu despertar sexual. Essas imagens me davam sentimentos muito estimulantes, e essa mescla de carnalidade e dor me golpeou desde muito pequena num lugar que deixou uma marca inapagável. Esteticamente, é um lugar de desejo do qual não consigo me separar. É ele que responde às minhas fantasias. A Espanha é um país católico, e isso se solidificou na minha infância, mantendo-se como um fetiche e uma pulsão da qual não consigo me separar. Ela me parece muito útil na hora de criar arte e ficção.
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G |Como surgiu a figura do armário no livro? Muitos outros personagens, além da própria protagonista, estão escondidos em seus próprios armários?
AP |Todos têm um armário do qual sair, isso não é exclusividade das pessoas trans ou LGBT+. Todo mundo possui um componente da vida que causa vergonha, que a pessoa não mostra aos outros e condiciona sua maneira de se relacionar. O armário é o local de inexistência, um lugar no qual se vê a vida, mas não se pode tocá-la. É uma frase de Fernando Pessoa, do “Livro do Desassossego”, que descreve o armário melhor do que qualquer outra no mundo. Com isso dá para fazer uma ótima literatura, há muitas possibilidades poéticas e expressivas. Eu queria que essa experiência de confinamento, claustrofóbica, fosse bem contada. O romance também utiliza a figura do cadáver animado, como se a pessoa habitasse o corpo de um morto. Aquelas não são suas mãos, mas a pele de outro, com uma experiência vital muito reduzida. É como ver a vida de muito longe. Me esforcei muito para que tudo que acontece no romance, até a protagonista tomar as rédeas de sua existência, fosse como assistir à vida através de uma fechadura, de um buraco, do outro lado de um muro.
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G |Sua obra engloba teatro, poesia, contos e agora romance. Como todas essas formas de escrita convergem ao longo da sua trajetória?
AP |Comecei a escrever poesia muito influenciada pela música. Meus primeiros impulsos literários foram devido a The Doors e The Velvet Underground. Escrevia poemas porque era o mais próximo do que eles faziam, e me permitia explorar sem medo, imitá-los mais facilmente. Com o tempo, fui afinando minha voz poética, foi o que sempre escrevi com mais naturalidade. O teatro é minha outra grande paixão. Mas o teatro que escrevo tem muito dessa voz poética que, no fim das contas, é minha música interior. Não me custaria muito ir de um gênero a outro, mas a narrativa de um romance é muito mais difícil. Ainda não me sentia madura literariamente para começar. Isso mudou graças a minhas colunas nos meios de comunicação. Elas me ajudaram a tornar meus textos mais sólidos, a conectar a abstração poética com o chão, com uma estrutura que lhe desse sentido. Foi aí que encontrei minha voz narrativa. Mas precisei de muito tempo de escrita, muitos ensaios e erros para encontrar essa voz.
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G |O que você está lendo atualmente? Quais as suas principais referências literárias?
AP |Tenho muitíssimas. Na Espanha, a obra de María Sánchez é muito importante para mim, os livros de Elena Medel, Lucía Lijtmaer, uma escritora hispano-argentina que admiro muito. Mariana Enríquez foi uma autora que me colocou em dificuldade, porque me estimulou muito, assim como Mónica Ojeda, com quem vou me encontrar na Flip. Ela me parece superdotada, e sua literatura me golpeou muito fortemente nos últimos anos.
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G |Na Flip, você vai compartilhar um debate com a Mónica Ojeda. Como diria que suas escritas se conversam?
AP |Acredito que haja uma linguagem estética que compartilhamos, o que falamos anteriormente sobre iconografia. Talvez a dela esteja dentro do que denomina “gótico andino”, com figuras latino-americanas muito poderosas. Mas há algo icônico, iconográfico, gótico e obscuro muito feminino, que me parece gerar um diálogo entre as duas obras. Não sei se ela enxerga da mesma forma, mas o que escreve me estimula muitíssimo e me faz realmente querer escrever a partir desse lugar de fetiche.
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