Você se identifica com seu nome? — Gama Revista
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Reportagem

Você se identifica com seu nome?

Muitas pessoas trans e não-binárias não têm esse privilégio. Ainda que o processo de retificação de documentos tenha ficado mais fácil nos últimos anos, há muito o que melhorar

Manuela Stelzer 22 de Janeiro de 2023
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Você se identifica com seu nome?

Muitas pessoas trans e não-binárias não têm esse privilégio. Ainda que o processo de retificação de documentos tenha ficado mais fácil nos últimos anos, há muito o que melhorar

Manuela Stelzer 22 de Janeiro de 2023

Pode ser que nunca tenha passado pela sua cabeça que o nome que lhe foi dado ao nascer não reflete sua identidade. Você pode até não gostar tanto ou preferir ser chamado pelo apelido, por exemplo. Mas o problema aqui é outro. Há quem olhe para o próprio documento e não veja sentido no nome ali grafado, chegando até a se isolar em casa para não precisar mostrar o registro e se sentir constrangido em espaços públicos.

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Foi o que aconteceu com o advogado Pedro Ferreira. O nome de batismo era composto e no feminino, características que não lhe agradavam muito. Só aos 18 anos, em meados de 2015, se percebeu uma pessoa trans, e perguntou à mãe que nome ela escolheria se tivesse um filho homem. “João Pedro” foi a resposta. Ao ouvir Pedro, deu um estalo. “Tentei Peter antes, e quando as pessoas me chamavam assim, sentia que não era comigo. Quando pedi que me chamassem de Pedro, passei a me sentir muito mais confortável”, explica a Gama. “Até o significado, que para mim tem tudo a ver: sempre tive que ser forte, resistir a muitos embates. Não consigo nem explicar o quanto me identifico.”

Há quem olhe para o próprio documento e não veja sentido no nome ali grafado

No início, adotou apenas o nome social, ou seja, era reconhecido como Pedro, mas seus documentos ainda traziam o nome composto e no feminino. Em 2017, era estagiário em uma ONG, quando lhe ofereceram auxílio para resolver o processo de retificação de seus documentos, caso fosse sua vontade. Ele aceitou. Na época, o processo era bastante diferente do atual – era preciso abrir uma ação judicial para solicitar a retificação. Um ano depois, o STF reconheceu o direito de pessoas trans corrigirem seus documentos em cartório sem comprovar qualquer tipo de cirurgia de redesignação sexual. Com a retificação, a pessoa altera seu nome civil, o que aparece ao lado da foto 3×4 nos documentos.

Hoje, o advogado acompanha e auxilia diversas retificações e mutirões para mudança do nome de pessoas trans e não-binárias. Apesar de reconhecer a facilitação que ocorreu nos últimos anos, ele tem duras críticas ao processo. Persistem violências e burocracias. Gama perguntou a diferentes pessoas sobre esses desafios remanescentes, e a importância do nome para a identidade desses indivíduos.

Fragilidades, inconsistências e pequenas grandes agressões

O processo é longo e burocrático. Na tentativa de evitar que pessoas saíssem prejudicadas no meio de tanta papelada, além de idas e vindas no cartório, o projeto PoupaTrans organizou uma cartilha com um passo a passo para retificar nome e gênero.

Mas nem só isso dificulta a mudança nos documentos. Patricia Borges, que é produtora cultural, ativista e uma das fundadoras da iniciativa, relembra como essa movimentação pode ser dolorosa emocionalmente: “O nome de batismo nunca lhe pertenceu, já foi morto e sepultado desde o primeiro dia. A retificação é um livramento para muita gente, mas ainda assim é violenta”. Ela diz que muitas pessoas se sentem constrangidas durante a mudança, ao ter que resgatar documentos com o nome que não se reconhecem, ou serem questionadas na hora de escolher como querem ser chamadas, por exemplo.

Pedro Ferreira especula que teve sorte no seu processo, primeiro porque ficou distante de grande parte das etapas, e quando precisou passar por espécie de perícia psicológica, em que acontece uma avaliação da pessoa que quer a retificação e seus motivos, foi atendido por uma psicóloga muito respeitosa. “Entendi que ela estava presa a um sistema, e estava fazendo o melhor que podia com as ferramentas que dispunha.”

Mesmo que hoje essa avaliação não seja mais necessária, o advogado olha para o processo como uma “movimentação emocional muito grande para as pessoas trans, ainda que elas sejam acompanhadas”. E explica como muitas das violências que as pessoas sofrem nesse processo depende da imagem. Como ele tinha uma aparência mais próxima ao que é entendido como masculino e tomou hormônios, foi facilmente entendido por outros como homem. “Não necessariamente a pessoa precisa tomar testosterona para transicionar, mas o uso facilitou a leitura que tinham sobre mim. Se não fosse lido como homem, dificilmente seria respeitado.”

A advogada Clara Serva, que é head de empresas e direitos humanos na TozziniFreire e já participou da organização de projetos e mutirões de retificação do nome de pessoas trans, lista algumas das muitas fragilidades que restam. Entre elas, a pressão por parte dos cartórios pela mudança de nome e gênero nos documentos – sendo que a pessoa pode optar por alterar apenas um. + Outra é a necessidade de apresentar o título de eleitor para a retificação, o que dificulta o processo principalmente para mulheres trans, já que muitas não se alistaram no exército (justamente por não se identificarem com o gênero masculino) e por isso não conseguem o documento. E por fim, a questão do valor. “Muitas pessoas trans estão em situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica e podem desistir da retificação pela cobrança da taxa.”

O STF inclusive discutiu se a cobrança do valor configuraria um descumprimento da lei pelo direito à retificação, já que só aqueles que poderiam pagar a taxa teriam como alterar seus nomes. Mas a conclusão foi negativa.

Além das inconsistências apontadas pela advogada, Serva menciona as consequências do processo burocrático e complexo para diferentes setores, como a saúde. “No SUS, é muito comum a pessoa trans ter que escolher entre ter o nome e identidade de gênero respeitados, ou o acesso ao tratamento médico correto”, afirma. “Se você está retificado com o gênero feminino, por exemplo, vai acessar o tratamento historicamente atribuído àquele gênero. Ou seja, mulheres trans serão direcionadas a um ginecologista. Mas e se ela não tiver feito cirurgia e precisar de outra especialidade médica?”

Falta preparo

Para Patricia Borges, deveria ser obrigatório que os profissionais dos cartórios fizessem um curso específico para retificação do nome de pessoas trans. + “Ainda há um constrangimento que sofremos. Se a pessoa não for bem preparada, pode se tornar um processo frustrante e humilhante.” Ela acredita que, como o PoupaTrans, seria mais interessante se pessoas trans fizessem a alteração, por entenderem a dificuldade em estar do outro lado. A medida ajudaria, ainda, a evitar a repetição de preconceitos e a movimentar a economia e o dinheiro entre pessoas da comunidade LGBTQIA+. “Falando de mim, não sei se me sentiria tão confortável levando meus documentos para uma pessoa cis.”

No âmbito profissional, segundo Clara Serva, também falta um olhar mais atento. Há pouco cuidado, por exemplo, no preenchimento de formulários, principalmente em processos seletivos. Ali, a advogada sugere permitir que seja colocado o nome social, caso exista. “É simples e importante adotar essa prática. Pode impedir que um candidato desista de aplicar para a vaga por não querer preencher aquele campo com o nome do documento.”

Estima-se que crianças trans têm uma evasão escolar aos 14 anos, que coincide com a descoberta da sexualidade

Nas escolas, não faltam problemas relacionados a identidade de crianças trans ou não-binárias. Serva exemplifica alguns: casos de expulsão que já aconteceram, resistência da escola na adoção do banheiro neutro, episódios de preconceito e pouca sensibilidade de outros pais em relação aos alunos trans. E tudo isso acontece durante um período conturbado: um mix de adolescência e processo de reconhecimento da própria identidade. “Estima-se que crianças trans têm uma evasão escolar aos 14 anos, que coincide com a descoberta da sexualidade e todo esse momento.” Mas é importante lembrar que todo jovem pode solicitar o uso de seu nome social dentro da escola, ou seja, mesmo antes da retificação.

Para Clara Serva, por vivermos em uma sociedade extremamente cisheteronormativa, há um desafio grande e complexo que envolve os nomes de pessoas trans. “Se o indivíduo não tem traços de aparência que são atribuídos culturalmente ao gênero com o qual ela se identifica, a sociedade vai insistir em tratá-lo com o gênero de nascimento”, diz a advogada. “Por exemplo, uma mulher trans que decide manter a barba: a sociedade vai insistir em tratá-la no masculino.”

Muito mais que um nome

Por mais importante que seja, a retificação por si só não vai, como definiu Clara Serva, “estancar a sangria do acesso aos direitos das pessoas trans”. O advogado Pedro Ferreira é, inclusive, um grande crítico do processo hoje em dia. “Claro que ele deve ser facilitado e luto muito pela gratuidade, mas enxergo como mais uma forma de facilitar a vida das pessoas cis.” E relembra o pequeno embate que teve com a família na hora de escolher seu novo nome civil, em que a mãe sugeriu que usasse um parecido com o antigo, para ajudar na adaptação dos outros. “É aquela perspectiva de que a pessoa trans deve lutar para socializar e conviver, e não o contrário.” Segundo ele, se anos atrás tivesse sido reconhecido e respeitado como Pedro sem precisar retificar seus documentos para isso, não teria seguido com a mudança.

Apesar da crítica, afirma a relevância das melhorias e facilitações no processo, e o quanto ele dependeu da retificação para fazer coisas básicas, como ir ao banco. “É uma etapa fundamental para garantir nossa socialização. Por muito tempo deixei de sair de casa porque não queria apresentar o RG e ser questionado, não ser reconhecido.” Para ele, a possibilidade de alteração do nome é o mínimo para que a convivência sem tantas violências seja possível – para quem quer alterar o nome, claro. “Ninguém é obrigado a retificar”, relembra o advogado.

Ainda assim, Pedro Ferreira diz já ter presenciado na Casa Florescer 1, um dos espaços de acolhimento para pessoas transexuais e travestis que ele auxilia no processo de retificação, meninas que debochavam da alteração nos documentos. “Ouvi elas dizendo que ninguém ia respeitá-las, não importa o que estivesse escrito no RG.” Reconhecer-se no próprio nome é, claramente, só o primeiro passo no direito a uma vida mais digna para pessoas trans, travestis e não-binárias.