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ReportagemPor que a fanfic queer é tão relevante?
Gênero criado por fãs de produtos culturais diversos, como livros, filmes, séries e novelas, ajuda jovens na descoberta da própria sexualidade, no empoderamento e na representatividade LGBTQIA+
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Por que a fanfic queer é tão relevante?
Gênero criado por fãs de produtos culturais diversos, como livros, filmes, séries e novelas, ajuda jovens na descoberta da própria sexualidade, no empoderamento e na representatividade LGBTQIA+
Coadjuvantes que caíram nas graças do público da novela “Terra e Paixão”, da rede Globo, os personagens Kelvin (Diego Martins) e Ramiro (Amaury Lorenzo) são, na internet, protagonistas de inúmeras histórias no fértil mundo das fanfics — narrativas ficcionais escritas por fãs de produtos culturais diversos, como obras televisivas, literárias e cinematográficas, além de grupos musicais e jogos de videogame.
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Na trama de Walcyr Carrasco, o garçom do bar Naitandei e o capataz do fazendeiro Antônio La Selva (Tony Ramos) vivem uma relação confusa: uma amizade cheia de química que pode vir a ser um romance, mas que tem toques reprimidos, sonhos insinuantes e um único selinho “sem querer querendo” ao estilo da animação “A Dama e o Vagabundo”. Já nas fanfictions online, a dupla Kelmiro, apelido que o casal-não-casal ganhou, se assumiu, se beija livremente na frente do restante da cidade, namora e transa.
Geralmente escritas por adolescentes e jovens adultos, ficções do tipo, que podem ser abrigadas em plataformas tais como Wattpad, Spirit Fanfiction e Histórias e Tumblr, são mais do que uma forma de entretenimento.
Ao imaginar em um universo LGBTQIA+, por exemplo, figuras centrais de livros bem-sucedidos, da saga “Crepúsculo”, de Stephenie Meyer, à série de aventuras do detetive Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle, essas fics servem, para muitas pessoas, como uma poderosa ferramenta de autoconhecimento, de descobertas sobre a própria sexualidade, de confiança, de empoderamento e, também, de representatividade.
Para saber mais sobre a importância desse gênero que se popularizou com a ampliação da internet, Gama ouviu autores, ilustradores e estudiosos de fanfics queer.
As fanfics como comunidades e redes de apoio
Na opinião de Júlia de França Leme Izabela, que coordena projetos de traduções, é formada em letras pela USP e publicou em 2020 o estudo “Fanfiction LGBTQ+ do Universo Marvel: Um fenômeno global e seus impactos na representatividade na mídia”, a relevância dessas fics, para além da questão da representatividade, que, segundo a acadêmica, é a mais fundamental, se dá porque elas são transgressoras ao empoderar as pessoas a contar, da maneira que quiserem a partir da flexibilidade criativa do gênero, as próprias histórias, sem passar pelo controle editorial de qualquer corporação.
“A fanfic é uma forma de tirar as narrativas do controle corporativo e passá-las novamente às mãos do povo”, afirma. Ela ressalta ainda que as fanfictions oferecem, por meio das plataformas interativas em que são publicadas, um espaço empático e confortável para que fandoms (grupos de fãs) e escritores compartilhem experiências e se apoiem mutuamente, contribuindo assim para a formação de uma comunidade mais aberta e diversificada.
Escrever fanfic é um meio de criar laços e comunidades. Além disso, até alguns anos atrás não existia um contexto tão amplo para a literatura LGBTQIA+
De acordo com Júlia, as fics proporcionam um ambiente seguro em que todos podem falar abertamente sobre os próprios problemas e refletir a respeito de questões que ainda não conseguem expor dentro de casa ou na escola.
“Escrever fanfic é um meio de criar laços e comunidades. É uma atividade por meio da qual os autores podem expressar algo que não conseguem em outros lugares. Além disso, até alguns anos atrás não existia um contexto tão amplo para a literatura LGBTQIA+. Hoje em dia já está saindo muita coisa, muitos livros estão sendo publicados, inclusive de autores que cresceram fazendo fics”, diz.
No livro em quadrinhos “Gênero Queer – Memórias” (Tinta da China, 2023), traduzido por Clara Rellstab, em que Maia Kobabe fala sobre sexualidade, elu também comenta a respeito das sensações de conforto e pertencimento que as fanfics LGBTQIA+ causam nos leitores.
Mariama Soares, licenciada em letras pela Unicamp e autora da pesquisa “Raça, Etnicidade e Classe Social nas Fanfictions: Um estudo com base nas experiências dos leitores e autores do spirit fanfics e histórias”, publicada em 2023, concorda com o senso de comunidade que as fanfictions são capazes de criar. Para o trabalho, ela conversou com muitos autores sobre como a identidade de cada um aparece nos seus escritos e o impacto disso na vida desses escritores.
É bem bacana e importante ter esse ambiente ‘gratuito’ de descobertas, poder entrar em contato com autores e ter representatividade
A investigação de Mariama não se voltou às questões de gênero e sexualidade, mas mesmo assim elas apareceram nas entrevistas. “A fanfic tem o papel de ser uma literatura mais acessível, basta ter internet para ler, então não há um filtro de editoração, o que amplia a quantidade de conteúdos possíveis de serem encontrados e lidos. Atualmente, no mercado literário tradicional, muita coisa vem sendo escrita com a temática LGBT, mas na fanfic esses temas são antigos, eles rodam nos fóruns há muito mais tempo”, conta.
“Há muito mais histórias com esses pontos de vista, com gente contando as próprias experiências e podendo ter contato com experiências de sexualidade diversas. É bem bacana e importante ter esse ambiente ‘gratuito’ de descobertas, poder entrar em contato com autores e ter representatividade.”
O poder transformador das fanfics
Escritor nas horas vagas e ilustrador de fanfics para editoras do gênero — as fics queer cresceram tanto que hoje têm selos editoriais próprios, como a Euphoria e a Violeta —, Yuri Peach, 19, compartilha sobre o impacto, profundo e pessoal, que o contato com essas histórias teve, e ainda tem, na sua trajetória.
O rapaz, que se identifica como demissexual, relata que as fanfics se tornaram um refúgio durante momentos complicados. “Elas me ajudaram muito, é como se fossem um mundo à parte onde posso esquecer da minha realidade, e eu acredito que outras pessoas também se sintam assim”, revela.
“Muitos jovens da comunidade LGBT que gostam de ler já passaram pela experiência do Wattpad. Creio que as fanfics têm um papel fundamental, principalmente no desenvolvimento do autoconhecimento, na autodescoberta. Fora da bolha, quem ouve falar de fanfics pode pensar que são histórias bobas, sem profundidade, mas as fanfics, às vezes, salvam vidas por trazerem temáticas e mensagens muito fortes para quem está vivenciando algo parecido.”
Por muito tempo, me questionei se tinha alguma coisa errada comigo, e as fanfics me ajudaram a entender que é normal ser quem eu sou
Yuri relata que, após algumas leituras específicas, notou uma mudança considerável em si. “Comecei a me sentir mais confiante comigo mesmo, a não ter vergonha de quem eu sou. Por muito tempo, me questionei se tinha alguma coisa errada comigo, e as fanfics me ajudaram a entender que é normal ser quem eu sou. Hoje, eu não vejo problema nenhum em assumir isso para as pessoas”, desabafa.
Fics: identidade, representatividade e refúgio
Beatriz Magalhães, 26, é estudante e uma das apresentadoras do podcast Fanfiqueiras ON, dedicado a fanfics queer. Mulher lésbica, ela começou a ler ficções criadas por fãs na adolescência, aos 14 anos, principalmente as histórias ambientadas no universo do seriado “Xena: A Princesa Guerreira”.
Ela destaca como as fanfics permitem que jovens encontrem personagens e relacionamentos queer, oferecendo um escape seguro para explorar identidades e desafiar normas sociais, além de proporcionar um meio de escapismo e de autodescoberta, especialmente para quem busca compreender melhor sua sexualidade.
Acabei achando nas fanfics um jeito de me ver em alguma coisa enquanto pessoa queer
Para Beatriz, mesmo em um contexto fictício, as fanfics oferecem representatividade real, mostrando relacionamentos bem aceitos e finais felizes para personagens LGBTQIA+.
“Acabei achando nas fanfics um jeito de me ver em alguma coisa enquanto pessoa queer”, declara. A podcaster aponta que as fics também se tornaram uma forma de driblar a fiscalização — seja de pais, responsáveis ou pessoas preconceituosas —, permitindo que os leitores explorem temas LGBTQIA+ de maneira discreta. A jovem destaca que, por meio do podcast que faz com mais quatro amigas, os ouvintes contam que encontraram na fanfic uma forma de se sentir representados.
“Eu diria que as fanfics são a democratização da representatividade. Elas são um meio em que, finalmente, nos sentimos representados. Tudo o que eu sentir que é válido para mim, eu posso procurar ali nas plataformas e, com certeza, vou achar uma história sobre porque uma pessoa já se sentiu daquela forma e resolveu escrever a respeito. A fanfic é de extrema importância para a comunidade no geral.”
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