Como mudar de vida? — Gama Revista
Qual é a sua crise?
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Domínio público/ Papierlaternen–Fabrik Riethmüller

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Depoimento

Hora de mudar de vida?

O marco da metade da vida traz revisões importantes. É normal olhar para trás e querer mudar o que vem pela frente. Diferentes pessoas contam suas novas escolhas nessa etapa

Manuela Stelzer 23 de Outubro de 2022

Hora de mudar de vida?

Manuela Stelzer 23 de Outubro de 2022
Domínio público/ Papierlaternen–Fabrik Riethmüller

O marco da metade da vida traz revisões importantes. É normal olhar para trás e querer mudar o que vem pela frente. Diferentes pessoas contam suas novas escolhas nessa etapa

Se você já quis abandonar o único e pacato estilo de vida que conhece, ou seja, se já quis abrir mão do emprego formal, tentar a sorte em outro país, assumir a própria identidade (que por anos ficou reprimida) ou investir uma rotina mais saudável – saiba que você não está sozinho. É inclusive natural, em determinado momento da vida, já com certa experiência, que façamos uma revisão do que passou e do que ainda queremos viver.

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“Nossa expectativa de vida é muito maior do que no passado, e com muito mais qualidade”, afirma a professora e doutora em psicologia social pela USP Flávia Feitosa. Com mais disposição e energia, quem chega ao marco da metade da vida, tende a repensar uma série de escolhas, como explica Feitosa. “É uma reflexão que vem com a idade, quando já experimentamos boa quantidade de vivências e nos questionamos sobre a forma que administramos o nosso viver.” E especialmente depois de uma pandemia, guerras em potencial, crise política e econômica – a psicóloga aponta para esses eventos como fatores que intensificam a revisão da metade da vida.

É uma reflexão que vem com a idade. Nos questionamos sobre a forma que administramos o nosso viver

A permuta, a mudança e a transformação são parte da existência, acredita Flávia Feitosa. E ao longo da história, sempre aconteceram. “A diferença é que, na sociedade contemporânea, mudar é mais possível. Temos mais tempo para pensar e mudar de profissão, de país, de casamento.” O mundo líquido de Zygmund Baumann nunca esteve tão próximo: a psicóloga explica que a estrutura social não é mais a mesma, que “antes, ficar menos de cinco anos em um emprego queimava seu currículo. Agora, aceitamos a velocidade da mudança, o mundo permite diversificação. E isso é ótimo”.

Claro que a possibilidade de mudar é um privilégio: apenas uma pequena parcela da população pode largar o emprego, mudar de país, ter tempo na rotina e acesso a hábitos saudáveis. Se crise da meia idade tem a ver com classe social, tentamos responder nesta edição. Mas fato é que revisar escolhas e decidir alternar os rumos é um luxo, centrado nas classes de maior poder aquisitivo.

A seguir, Gama ouviu histórias de pessoas que, em diferentes cenários, revisaram desejos e sonhos e resolveram abandonar a vida como conheciam. Deixaram carreira, país, gênero e velhos hábitos para trás, e mostraram que, com alguma segurança financeira, nem sempre é tarde para mudar.

‘Se tudo acabar hoje, valeu a pena?’

Foi isso que a jornalista e professora Ligia Sales se perguntou, no meio da pandemia, ao completar 40 anos. Recém-demitida de um emprego de ritmo insano, que lhe rendeu um episódio de burnout, além de uma renda que não pagava as contas, viu seu marido ser internado por dez dias. Foi quando o questionamento veio: “Repensei a vida inteira. O que fiz e o que deixei de fazer. É essa a vida que quero?”

Repensei a vida inteira. O que fiz e o que deixei de fazer. É essa a vida que quero?

A vontade de viver pelo menos uma temporada fora do Brasil sempre existiu, mas o acaso e o destino adiaram os planos. Casou, engravidou, tornou-se mãe. Em 2019, começou a procurar oportunidades de doutorado no exterior. Como família, bateram o martelo sobre a cidade que iriam, bairros interessantes e opções de universidades para Sales se inscrever. O número extremamente reduzido de vagas quase desanimou. “Fiz o que pude. O que não, joguei pro universo.” E a resposta foi positiva.

Única brasileira do programa de doutorado de comunicação da universidade canadense McMaster, ela brinca que é “eita atrás de vixe”. “Se tudo acabar hoje, percebi que queria estar em um lugar que amo – no frio, de preferência, por mais que eu seja cearense — e fazendo o que me realiza. Só aprendemos isso com o passar dos anos, infelizmente.” A jornalista pondera, entretanto, que de nada adianta buscar resoluções para crises internas em outro país. “Tive que resolver minhas questões antes, ou traria elas comigo para cá. Pelo menos os 40 vieram com sabedoria, já colágeno…”, brinca.

Coragem para se assumir

Antes de se reconhecer (e acima de tudo, se aceitar) como mulher, a cartunista Laerte passou mais de 50 anos vivendo nos termos da masculinidade. “A mudança começou com a orientação sexual, quando entendi que tinha desejo por homens. Por mais de 30 anos tentei recusar isso.” A transição de gênero veio nessas águas, como ela explica. “Já tinha expressado esse questionamento em cartuns, e me perguntei se era algo que também deveria aceitar.”

Claro que, se pudesse, ela teria realizado a mudança antes, até pela possibilidade de tratamentos hormonais – coisa que não fez, entre os motivos, pela idade que não contribuiria para o resultado mais efetivo. Porém, diz respeitar os processos da vida, que levam tempo, e são resultado de diversos arranjos: “Entre os quais esse tipo de negociação com os próprios medos e dificuldades. Sofri e fiz pessoas sofrerem nesse tempo. A frustração de bloquear um desejo absolutamente legítimo produz vivências agressivas”. “Mas é uma frustração abstrata, o tal do ‘e se’. Foi como foi e paciência. Na próxima vida, pensarei melhor”, brinca.

A frustração de bloquear um desejo absolutamente legítimo produz vivências agressivas

Hoje aos 71, Laerte relembra seu personagem Hugo, que se travestia para fugir de ladrões, em uma função farsesca nas histórias, como ela define. Em determinado cartoon, Hugo aparece depilado, de peruca e vestido e diz que “às vezes um cara tem que se montar”. O episódio foi catártico: “Ficou uma sensação estranha de que a tira estava pronta em algum lugar da minha cabeça há um tempo”. A partir daí (e do email de uma leitora trans que instigou a reflexão), foi em busca de grupos e comunidades. “Um dos maiores dilemas para essas pessoas é se sentirem sozinhas”, afirma. Felizmente, Laerte pode contar com os filhos e a família: “Quando contei para minha mãe, ela disse que tinha alguns vestidos que me serviriam. Pois é, essa é minha mãe”.

Ao cruzar a linha de chegada, tudo mudou

Fernando Hirama começou a correr por volta dos 35 anos. Não por vontade – queria parar de fumar e viu o esporte como meio para ajudá-lo na missão. Pouco mais de dez anos depois, passados divórcio, nascimento do filho, incerteza sobre trabalho e corridas curtas, de 5 a 10 km, Hirima se viu frente a frente com um desafio: correr a Maratona de Nova York. Em 2017, por acaso, ganhou um sorteio para correr os inéditos 42 km.

O acaso virou seu projeto. Depois de quatro meses de treino intenso, atendimento com nutricionista, fisioterapeuta e treinador, ele foi a Nova York, correu por quase cinco horas e completou seu objetivo: cruzou a linha de chegada. “Foi surreal, chorei muito e tudo mudou ali.” Desde então, já correu inúmeras maratonas, incluindo a de Berlim e Chicago. “Tudo que surgia, me inscrevia. Virou meu dia a dia.” O sonho é chegar a de Boston, mas o planejamento foi interrompido pela pandemia.

Além dos benefícios de bem-estar, saúde, sono e estresse – “tudo melhorou para mim”, diz ele –, a corrida abriu portas importantes para Hirama. “Academia passou a ter outro significado, prestei mais atenção à alimentação, hoje trabalho em um lugar que me permite tempo e espaço para a corrida”, conta. “Sinto que vou para outro mundo quando estou correndo, o foco e a paixão florescem.” Ainda que tenha sido por acaso, ele brinca que agarrou a oportunidade e fez dela muito mais do que sua válvula de escape. “Antes, corria para aliviar tensões do divórcio, repensar o trabalho, tentar parar de fumar. Percebi que não era só pra isso que servia.”

Tem que se entregar

Felipe Almeida é formado em marketing e sempre trabalhou na área comercial, apesar do gosto pelo estudo de artes. Por volta dos 35 anos, cansado do estilo de vida, sem ver valor no que fazia, um amigo lhe apresentou o pão de fermentação natural – e foi amor à primeira vista. “Gosto de cozinhar, de comer, me informar sobre comida e cultura, e passei a ler sobre fermentação natural. E enxerguei ali tudo que eu queria.”

Ele explica que o pão foi apenas um subproduto: o tempo da fermentação, o resgate de técnicas ancestrais, o uso de ingredientes naturais foi o que deu match com seus interesses. “Além de ser um pão extremamente saudável e saboroso.” Assim, conversou com o amigo, passou a ajudá-lo na venda e pegou gosto pelo ofício. Na pandemia, o amigo desistiu do negócio, e foi quando Felipe e a esposa decidiram aprender a arte da panificação e continuar a produzir.

“Nosso dinheiro acabou. Pedi empréstimo, fiquei no limite em todos os bancos, sujei meu nome. Mas nunca deixei de acreditar”, pontua ele. Mesmo na crise, com as portas fechadas durante a pandemia, Felipe Almeida tem a opinião forte: independentemente da idade, não pensou duas vezes em largar o que há tempos não fazia bem, e se entregar a um novo desafio. “O pão veio por acaso, mas resume todos esses aprendizados.”