Psicanalista Maria Homem fala das dificuldades da meia-idade — Gama Revista
Qual é a sua crise?
Icone para abrir
Divulgação

1

Conversas

Maria Homem: "Quase nunca a gente é totalmente harmônico com quem somos"

A psicanalista Maria Homem fala sobre as dificuldades de chegar a uma fase da vida em que o passado dá saudade e o futuro assusta

Luara Calvi Anic 23 de Outubro de 2022

Maria Homem: “Quase nunca a gente é totalmente harmônico com quem somos”

Luara Calvi Anic 23 de Outubro de 2022
Divulgação

A psicanalista Maria Homem fala sobre as dificuldades de chegar a uma fase da vida em que o passado dá saudade e o futuro assusta

Se a vida fosse uma montanha a ser escalada, os 40 anos seriam o pico. Não necessariamente representando o auge profissional, pessoal, muito menos a felicidade plena. Mas uma fase em que é possível olhar para o passado e para as escolhas feitas até aqui com alguma maturidade. Pensar se elas ainda fazem sentido e, então, imaginar o futuro que se almeja.

A psicanalista Maria Homem faz essa analogia com uma montanha para explicar o ponto de vista de quem, a partir dos 40, tem o privilégio de fazer essa revisão. Acontece que, às vezes, a paisagem não é agradável. Não à toa, pesquisas mostram que, nessa fase da vida, há uma alta incidência de depressão, ansiedade e insônia.

As causas são diversas e incluem, além da responsabilidade com pais, filhos, com nós mesmos e com o trabalho, a consciência da finitude. “A vida não é infinita. Não é que eu posso fazer tudo. Você vai enrolando até hoje tal assunto, até que não dá mais”, diz a Gama.

Na conversa a seguir, ela fala dos desafios de uma fase que se inicia aos 40 e do poder da conversa — com nós mesmos e com nossos pares — para encarar desafios, medos e crises.

  • G |A chamada crise da meia-idade, que no geral parece chegar a partir dos 40 anos, existe de fato?

    Maria Homem |

    A crise da meia vida existe certamente. Tem que existir. O que é esse momento? É a consciência do arco da vida. Como estamos falando de meia-idade eu vou dividir em primeira metade e segunda metade. Quando você está no inicio é tão vasto o caminho que aparentemente não tem fim. A primeira grande parte é você se formar, se constituir, quem sou eu. Como eu ando, falo, o que o outro vai achar do que eu sou, como vou usar essa roupa, o que é o meu corpo, como vou encostar no corpo do outro, como eu vou existir, com o que vou trabalhar, o que é o mercado, o que remunera, o que é competição, o que é reprodução da vida, com quem eu vou me aliar para fazer essa reprodução da vida, como eu vou criar o pé-de-meia, pra qual diabo eu vou vender a alma, etc. Tudo isso vai até os 30, 40 anos. Então é uma longa constituição do humano e da sua posição dentro do grupo. São todos os indícios que você vai coletando e colocando no currículo, na timeline para que a gente mostre nossos processos de constituição. A gente nostalgiza, romantiza essa primeira parte, mas é uma fase com suas tarefas, com suas angústias, com a ralação para se formar.

  • G |E quando acontece a entrada na próxima fase?

    MH |

    Chega num certo momento do arco que é como chegar numa montanha. É muito bom alcançar essa montanha e entender que está descendo, mas pode haver uma sensação de angústia porque o término, o fim, a mortalidade é um dos grandes pesos do humano. A vida não é infinita. Não é que eu posso fazer tudo. Você vai enrolando até hoje tal assunto, até que não dá mais. E quase nunca a gente é totalmente harmônico com quem somos. Então surge a pergunta: “Eu fiquei ralando para me formar, me esforcei, coloquei tempo, dinheiro, libido, fiz redes, fiz propagandas e construí este avatar. Tem a ver comigo, tou confortável?”. Então acontece esse repensar ao olhar como se você estivesse em um drone, você tem elementos para ver. Na adolescêcia você tenta fazer isso, mas só tem 14 anos.

  • G |É possível se reconstruir caso o que se vê não seja satisfatório?

    MH |

    Aos 40, 50 você pode se reinventar, se repensar, cada vez mais a gente tem esse direito. Isso é uma especificidade da crise da meia-idade no contemporâneo. No século 21, é possível ser um adulto que vai largar medicina e fazer cinema. No capitalismo de transformação cada vez mais veloz você tem direito à reinvenção. A gente vive hoje uma era que tem um lado angustiante porque você pode e deve se construir, e isso te dá trabalho, é um risco. Era muito mais fácil obedecer, seguir a tradição. Esse empreendedor de si mesmo é um projeto da modernidade. É ela que diz para esquecer os deuses, os patriarcas, a família porque você pode escrever o seu destino. O imperativo contemporâneo é reinvente-se. E você tem que se reinventar continuamente para não perder um valor de mercado.

  • G |Com as redes sociais podemos assistir a vida e as escolhas do outro. Esse contato pode nos fazer questionar mais as nossas escolhas e trazer sofrimento psíquico?

    MH |

    A gente se reinventa e se constitui a partir de sucessivas identificações e desidentificações com ideais de eu, pega pedaços do outro e se constitui. A modernidade propõe se distinguir do antigo regime, o contrário de uma repetição da tradição. Eu não quero saber como tem que pintar o quadro, eu quero descontruir as formas. No século 21, é você o tempo todo dizendo não vou repetir, vou reinstaurar algo com as ideias que vou pegando dos pares. Você deveria parar de ver internet? Pode fazer isso, mas vai ver seu vizinho, vai ver você mesmo em uma foto de dois, três anos atrás. O nosso eu é estruturalmente sempre insatisfeito porque ele fica se ajuizando com os ideais. Ideais sociais que ele vai comprando, pegando, introjetando do mundo. Normalmente quem emplaca os ideais sociais é quem tem poder, que significa hoje ter dinheiro.

  • G |Os 40 e poucos são uma idade em que, no geral, temos de encarar nossos pais envelhecendo. Como lidar com esse espelho da finitude?

    MH |

    É um espelho realmente porque se você teve um trabalho de subir a montanha. E sempre dá trabalho, não importa se você veio de uma família mais privilegiada ou não, sempre deu algum nível de trabalho real, social, político, econômico, psíquico. Quando você está no alto desse arco e consegue ver a sua própria finitude também e sobretudo é porque vê alguns dos seus pares já morrendo e o seus pais envelhecendo, se vulnerabilizando, adoecendo e eventualmente morrendo. Então há esses dois confrontos com a morte. Pessoas que você ama estão se fragilizando e morrendo, tanto os mais velhos quanto os da sua geração. Nessa fase, já começa a ouvir que alguém próximo teve um ataque fulminante do coração, que se perdeu para as drogas, que morreu de covid. A vida é mortal, de risco. Com o tempo, você vai tendo apropriações desse conceito de que há a mortalidade, há o fim e há o luto. Com 40 [esse assunto] está muito perto, como se o cerco fosse se fechando.

  • G |E como costuma ficar a relação com pais e familiares nessa fase?

    MH |

    Aos 40 você tem que fazer uma dupla jornada, começa a entender que é um arrimo senão econômico, mas tem algum lugar de responsabilidade com três gerações, a do seu filho, a sua própria vida e alguma ajuda com os pais, os avós. Passa a entender que você é a força produtiva. Tem um peso a carregar, não que necessariamente não deveria carregar ou que é pesado demais. Embora tenham muitos que preferem inverter e escapar, num patriarcalismo à brasileira que acaba onerando muito as mulheres. Mas em princípio, se a gente nao sacaneia no jogo, essa crise da meia-idade é também porque estamos no ápice em relação a todas as idades sociais. Quando faço a metáfora do arco, da montanha é que sim, a gente está no ápice da força produtiva. Tem mais energia, mais conhecimento e, no geral, mais salário. Com 40 você ainda não foi totalmente ejetado pela sociedade neoliberal. E de alguma maneira está sustentando essas três gerações, ainda que com diferentes formas de sustentação.

  • G |Quais os sinais de que essa crise existe?

    MH |

    Você pode estar achando pesado tudo isso e vira um bebê. Descobre que quer fumar um baseado com seu sobrinho, tomar um MD, um ácido, ter amigos jovens, ir pra balada, fazer uma suruba, deixar os filhos não sei onde e aprender a tocar um instrumento, a surfar, vai fazer esporte. Estou aqui dando exemplos de brincadeira, mas deu para perceber que é uma forma de nostalgia. A nossa cultura de lógica capitalista valoriza o novo, desvaloriza o presente para valorar o futuro. Mas, nessa fase, como o futuro é o envelhecimento e a morte, você recusa isso e faz uma defesa maníaca voltando para uma idealização de lógica adolescente. E isso reforça a crise da meia-idade. Porque aí você tem que mudar seu corpo e ficar sempre jovem, o feminino mais ainda. O que acontece? Mais angústia cada vez que tem de lidar com mais um cabelo branco, mais uma ruga…. Ou quando você foi fazer snowboard ou uma trilha e percebe que ficou mais cansado, caiu, quebrou, não conseguiu. Aí vai achar que está muito mais velho do que está.

  • G |E como lidar com essa crise?

    MH |

    É claro que você pode fazer o que quiser da vida, cada vez menos a gente se sente atrelado a bolas de ferro nos pés. Temos percursos e dúvidas, não precisamos apenas de tristeza e depressão. Mas também se a gente se defende muito do envelhecimento e da morte, que é o que a nossa cultura maníaca faz, paga um preço muito alto. Aí tem depressão, ansiedade porque você vê que não produz tanto quanto produzia, não corre tanto quanto corria, não goza como gozava. Mas que privilégio é envelhecer e não ser barrado da vida. A gente vai conseguir amar o envelhecimento como uma das faces do vivo. E se a gente puder fazer isso juntos, é a graça do laço social. É difícil envelhecer, ficar adulto e ir pendendo as suas capacidades, mas vamos nos amparar nisso. É ter menos medo pra que tenhamos uma postura menos fóbica.

  • G |O que muda em relação ao sexo?

    MH |

    Dá para aproveitar. Eu sempre gosto de um conto da Clarice Lispector que chama Ruído de Passos. Tem uma narradora que é mais velha e diz “quando isso vai passar? Não aguento mais desejar”. O desejo é impulso e uma prisão porque você vai ter que ir atrás. Somos fadados a erotizar enquanto estamos na vida. Você só vai deixar de se impulsionar na morte. Claro, pode sabotar, inibir, sintomatizar, é o que a gente faz. Mas não precisa. Se tem uma relação com você menos cheia de véus vai entrar em contato com o erótico que pulsa no humano. Como vou viver isso? Tem tantas formas de conexão com o outro e seu corpo. Acho também que a gente tem que ir rompendo tabus. A velhice é um tabu, não só a doença e a morte. A Adélia Prado fala que o ponto G está no ouvido. O sexo e a relação erótica com o outro tem a ver com linguagem, compartihar fantasias. Não é só uma questão de dilatar vasos sanguíneos com uma pílula azul, tem a ver com o quanto você se conhece e escuta o outro. Como a gente se erotiza, como a gente brinca? O sexo é também brincar, é uma dança, você vai fazendo na hora, vai sentindo na hora. O outro te dá um braço aqui, você pega aqui leva pra lá. É uma dança e ela nao é pré-coreografada. Pode ser e tem gente que diz que o sexo quando se é mais velho é melhor do que o sexo mais novo, mesmo dentro do casamento. Quando tem casamentos interessantes, que as pessoas continuam interessadas umas nas outras, que a parceria não é tóxica nem muito neurótica, ela é interessante. Quando aconteceu uma sexualidade profunda, o outro te convidou a entrar nas fantasias e vice-versa, você vai se descobrindo junto com o outro. Não precisam ser grandes surubas radicais, mas pode incluir também, pode ir abrindo e fechando a relação, pode colocar parcerias, montagens, histórias, viagens, cenários, narrativas. Cada um vai criar, a sexualidade é uma construção de si junto com o outro. As suas fantasias edípicas se casam com as fantasias edípicas do outro na medida do possível.

  • G |Quais você diria que são as vantagens da sexualidade nessa fase?

    MH |

    Você estaria muito mais íntimo das suas próprias fantasias inconscientes. Nessa fase, você talvez não esteja com a bunda tão dura, mas você sabe o que fazer com a bunda [risos]. Às vezes é mais interessante, mais sedutor e você sabe o que te dá tesão e como você convida o outro a ocupar esse lugar. A fazer aquilo que te dá uma virada pra te ligar, para te dar tesão. Aque coisa “nossa, peraí, gostei dessa frase, desse gesto, dessa pegada, tal pessoa entrou de um jeito que eu gostei, é sexy”. Você conhece melhor o que te dá tesão, o que é sexy e erótico para você. E o erotismo é uma arte.