Dia de Iemanjá: conheça mais essa orixá — Gama Revista
Qual a sua história com o mar?
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Rennan Peixe via Wikimedia Commons

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Reportagem

Dia de Iemanjá: por que você precisa conhecer mais essa orixá

Celebrada principalmente no ano novo e em fevereiro, Iemanjá foi embranquecida no Brasil para assumir o papel de “mãe de todos”

Gabriela Bacelar e Leonardo Neiva 21 de Janeiro de 2024

Dia de Iemanjá: por que você precisa conhecer mais essa orixá

Gabriela Bacelar e Leonardo Neiva 21 de Janeiro de 2024
Rennan Peixe via Wikimedia Commons

Celebrada principalmente no ano novo e em fevereiro, Iemanjá foi embranquecida no Brasil para assumir o papel de “mãe de todos”

“Minha jangada saiu/ Pescador já se rezou/ E Iemanjá abençoou/ Sua saída ao alto mar.” Ao entoar essas palavras, a cantora, atriz, produtora e dançarina baiana Nara Couto, 37, costuma viver um dos momentos mais emocionantes de sua participação no Festival Oferendas, evento que acontece anualmente no início de fevereiro no Rio Vermelho, bairro de Salvador.

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A canção “Brilho do Mar”, do Olodum, única do próprio repertório que a artista performa no evento, sempre ao por do sol, celebra a Festa de Iemanjá, uma das mais tradicionais da capital baiana e que acontece sempre no segundo dia de fevereiro. Iniciada há oito anos para Iemanjá no candomblé, Couto afirma que pretende se apresentar pelo resto da vida no festival, que invariavelmente desperta nela emoções intensas. “É sempre emocionante, a gente chora junto antes de começar. Fazemos isso tudo por Iemanjá.”

Na data anterior ao show, no dia 1º, ela também organiza anualmente um grupo de pessoas dedicadas ao aprendizado e diálogo sobre o culto a Iemanjá e Oxum. “A gente passa um dia juntos, numa imersão ancestral que busca entender como cultuar essas divindades no seu corpo no dia a dia.” Após longas conversas com iniciados mais velhos do candomblé e uma “roda de cura”, em que os participantes se abrem sobre questões íntimas, é enfim chegada a hora do presente para Iemanjá.

Cantora Nara Couto carrega balaio com flores em cerimônia de oferenda à orixá das águas
Cantora Nara Couto carrega balaio com flores em cerimônia de oferenda à orixá das águas
Reprodução / Instagram @nara_couto

Dentro de dois balaios produzidos com materiais orgânicos — escancarando a preocupação também das novas gerações em dar uma pegada mais ecológica à prática tradicional —, todos depositam suas oferendas e realizam uma reza coletiva. “Preciso desse dia todo para colocarmos nossa energia em uníssono e as pessoas fazerem pedidos”, afirma Couto. Alguns deles, ela conta, já foram atendidos, como o que sua irmã fez para ter um filho. “Talvez ele esteja nascendo hoje.”

Da Casa de Iemanjá em Salvador, antigo alojamento de pescadores que criaram o hábito de oferecer presentes à orixá, à estátua da divindade recentemente inaugurada em Santos; do costume de saltar as sete ondinhas no réveillon à Festa de Iemanjá no 2 de fevereiro, patrimônio cultural de Salvador; das canções de Dorival Caimmy às de Maria Bethânia, Iemanjá é sem dúvida uma das divindades de matriz africana mais celebradas e conhecidas no Brasil.

Com a popularização de sua figura, porém, veio também uma série de problemas, como o gradual embranquecimento da imagem da orixá e até o descolamento da santa, para alguns, de religiões como o candomblé e a umbanda. “Já ouvi pessoas perguntando se Iemanjá não é uma santa católica, tamanha sua popularidade e a maneira como sua imagem se estabeleceu no imaginário popular”, conta o babalorixá e antropólogo Rodney William Eugênio.

Mas afinal, quem é Iemanjá? Por que precisamos conhecer a fundo essa orixá ligada à maternidade e às águas, mas que, por aqui, acabou ficando mais conhecida por sua conexão com o mar?

“Iemanjá é a água, a água às vezes é mar, às vezes é rio, córrego ou lago”, aponta o babalorixá e doutor em semiótica Sidnei Nogueira, autor do livro “Intolerância Religiosa” (Jandaíra, 2020). “Iemanjá é a senhora da sanidade mental, da harmonia familiar. Ela é a senhora da família e a nutridora. Costumamos dizer que as mulheres de Iemanjá são dela para não perder a sanidade mental, porque no Brasil a gente recebe o orixá que precisa, não o que nós somos.”

“Eu sou iniciada para Iemanjá, sou mulher de Iemanjá”, declara Nara Couto. “Para mim, faz todo sentido trazer Iemanjá para minha arte porque faço um trabalho baseado na honestidade artística e na minha essência. Tudo que lanço para o mundo são coisas que refletem e passam por mim de forma intensa e marcante, meu trabalho fala de quem eu sou. Essa essência matriz, no meu caso a água, existe dentro de mim e utilizo não só no culto, mas no meu dia a dia.”

Ma(r)ternidade

Iemanjá, assim como todos os orixás das religiões afrobrasileiras, aportou no Brasil junto com a multidão de escravizados trazidos ao país entre os séculos 16 e 19. Segundo Nogueira, Iemanjá tem origem iorubá, um dos maiores grupos étnico-linguísticos da África, e que veio em maior número ao país a partir do século 18. Com eles, chegaram divindades como Exu, Ogum, Oxóssi, Obaluaê, Iansã e muitos outros orixás hoje menos ou mais conhecidos, entre eles a que hoje chamamos de Rainha do Mar.

Barco com presentes para Iemanjá durante festa dedicada à orixá no Rio Vermelho, em Salvador
Barco com presentes para Iemanjá durante festa dedicada à orixá no Rio Vermelho, em Salvador
Andréa Farias

Originalmente, o babalorixá conta que Iemanjá sempre foi uma divindade conectada às águas — não exclusivamente ao mar. A essa relação também remete sua figura maternal. “O mito de Iemanjá é o da grande mãe ancestral, a mulher dos seios fartos que nutre todos os orixás. A natureza de Iemanjá, na sua origem iorubá, é nutridora”, explica Nogueira.

Já a trajetória da divindade pelo Brasil é um pouco mais obscura e difícil de precisar. “Temos várias possibilidades e regiões de origem para formas diferentes de cultuar Iemanjá”, explica o antropólogo e babalorixá Rodney Eugênio.

Para Nogueira, a figura que se consolidou de Iemanjá no Brasil tem a ver com a tradição da população de celebrar a praia, o que teria feito com que ela se conectasse de forma inevitável ao mar por aqui. Além disso, na opinião do babalorixá, sua imagem no país é uma resposta à eterna carência social e psicológica do brasileiro por uma figura materna.

“Aí vem a grande mãe, a mãe preta que amamentava os filhos dos grandes senhores de engenho. Iemanjá vira essa mãe”, afirma. “Ela é associada à maternidade no sentido de quem cuida, porque as negras que amamentavam assumiam a maternagem dos filhos dos seus algozes. Elas educavam, elas cuidavam, elas nutriam, elas amamentavam.”

Sete ondas

Se você aderiu à tradição de se vestir inteiro de branco para jogar oferendas ao mar e pular sete ondas no último réveillon, fique sabendo que o costume também tem origem direta dos iorubás. De acordo com Nogueira, a cultura da oferenda é própria desses povos da África Ocidental, entre os quais é comum fazer ofertas a divindades em rios, árvores ou encruzilhadas. “A partir daí, começou a se oferecer flores, champanhe e perfume a Iemanjá. É uma mulher, então houve essa associação”, aponta.

Segundo Eugênio, a prática teve influência da umbanda, mais especificamente dos costumes estabelecidos pelo influente pai de santo umbandista Tata Tancredo (1904-1979) no período do ano novo nas décadas de 1950 e 1960 no Rio de Janeiro. “Personagem fundamental da história da umbanda no Rio, ele começou uma celebração acendendo velas, fazendo despachos e tocando atabaque em Copacabana, se apropriando do espaço público”, conta o babalorixá.

Apesar do repúdio e da perseguição que Tancredo sofreu da elite na época, as práticas acabaram sendo adotadas ao longo do tempo também por um público que nada tinha a ver com as religiões de matriz africana.

“Houve um processo de gentrificação desse réveillon, com os elementos afrorreligiosos se apagando e a celebração tomando outro sentido. Sendo explorada pelo turismo e entrando na lógica da sociedade de consumo, como aconteceu com o 2 de fevereiro em Salvador”, explica Eugênio. “Hoje as pessoas jogam no mar alfazema, sabonetes, perfumes, flores e champanhe, mas não sabem o porquê.”

Todo ano, devotos carregam balaios com flores e presentes para homenagear Iemanjá no réveillon e na festa dedicada à divindade
Todo ano, devotos carregam balaios com flores e presentes para homenagear Iemanjá no réveillon e na festa dedicada à divindade
Tatiana Azeviche/Setur

Iemanjá loira?

No Brasil, a representação popular de Iemanjá de hoje é diferente da divindade que desembarcou por aqui séculos atrás e que é cultuada dentro dos terreiros. Nas palavras do babalorixá Sidnei Nogueira, ela acabou passando por um longo processo de embranquecimento para surgir como a grande mãe de todos os brasileiros.

Segundo Eugênio, houve uma fusão entre Iemanjá e a cabocla Janaína, espírito encantado da tradição umbandista, de origem indígena. O fenômeno é uma demonstração do sincretismo que atingiu a divindade, uma mistura entre diferentes crenças religiosas em que seus elementos são reinterpretados. “Veja que Iemanjá tem cabelo liso até a cintura, que é uma marca indígena”, diz o babalorixá. Com o tempo, outras transformações ocorreram com a imagem de Iemanjá, que se tornou uma mulher branca em boa parte das imagens atuais. “Hoje você tem até Iemanjá loira”, conta Nogueira.

Para ele, “é fundamental devolver a negritude de Iemanjá”, porque Iemanjá branca é uma distorção racista da orixá. “Precisamos falar por nós. Quem sabe sobre Iemanjá é quem está lá na hora que ela recebe seu carneiro, sua cabra ou sua galinha. Se você não estava lá, você não sabe quem ela é”, declara o babalorixá. Também existe uma “dimensão didático-pedagógica” no culto aos orixás que Nogueira convoca todos a assumir, de forma a impedir a descaracterização das divindades africanas e combater a intolerância religiosa.

Na visão de Eugênio, o povo brasileiro atualmente tem duas grandes mães: Iemanjá e Nossa Senhora Aparecida. O interessante nesse caso, é que, “se a figura de Iemanjá, uma deusa africana, embranqueceu no Brasil, a de Nossa Senhora, uma santa católica, enegreceu”, ele aponta. “Ela encontrou no culto dos escravizados à sua imagem uma maneira de se popularizar. Nossa Senhora é uma santa negra e é a padroeira do Brasil.”

Intolerância e esvaziamento

Em 20 de dezembro, alguns dias antes da celebração do réveillon, a Casa de Iemanjá, patrimônio cultural de Salvador, foi invadida e depredada, numa demonstração de intolerância e racismo religioso. Desde 2020, vêm crescendo os ataques a religiões de matriz africana, principais alvos de intolerância no Brasil, segundo relatório da Unesco.

Apesar dos sucessivos ataques racistas à religiosidade africana e ao povo negro, eles vêm resistindo, inclusive em sua capacidade de influenciar e formar muitos aspectos da cultura brasileira. “Se a gente reivindica o enegrecimento de Iemanjá a partir do momento que percebe todo o processo de sincretismo, uma violência imposta, ao mesmo tempo vai trazendo elementos que conectam culturalmente as construções negras neste país”, afirma Eugênio.

O esvaziamento semântico, negro e religioso de Iemanjá, afirma Nogueira, serve a um público de “macubeiros de ano novo”, não praticantes que participam pontualmente dos festejos. Fora dali, “voltam a ser racistas, a falar mal de Iemanjá, da mãe preta”.

E a preocupação com o respeito à orixá hoje também engloba cada vez mais o respeito à natureza. Nos balaios que prepara todos os anos como oferenda a Iemanjá, produzidos com materiais ecológicos, Nara Couto evitar incluir objetos como perfumes ou plásticos. Em vez disso, os recheia com flores e alimentos orgânicos, de forma a não agredir o ambiente.

Nogueira conta que, certa ocasião, avistou pessoas arremessando garrafas de vidro ao mar e questionou: “Você acha que o oceano quer isso, quem o destrói? Você está levando para Iemanjá marcas que escravizam. Você acha que Iemanjá vai receber isso aí?” Para ele, raramente há nas oferendas de ano novo uma consciência ambiental ou racial. “Iemanjá é a senhora da água, a senhora da harmonia. Desequilibrar o rio ou o mar é desequilibrar Iemanjá.”

Tanto indígenas quanto as comunidades de terreiro são defensores da natureza, explica o babalorixá. “Se não tiver rio, mar, terra, água, se não tiver um córrego, se não tiver uma árvore, um pombo, não tem candomblé. Nós precisamos dessa tomada de consciência”.

Eugênio também defende retirar os presentes da lógica de consumo. “Iemanjá não precisa de espelho porque ela já sabe que é linda, todo preto sabe que é lindo. Quanto mais cristalinas forem as águas, mais ela consegue se mirar”. No lugar, propõe subverter a prática. “Se, em vez de levarem um vidro de alfazema, doarem 15 reais para a associação dos pescadores, vão fazer um bem muito maior. Ou se substituírem o perfume por um maço de manjericão ou macaçá, flores super cheirosas, estimulando a produção dessas ervas e movimentando uma economia sustentável.”

Altar da Casa de Iemanjá, em Salvador, que foi depredada em dezembro
Altar da Casa de Iemanjá, em Salvador, que foi depredada em dezembro
Paul R. Burley

Quantos nomes ela tem?

Lembrada de forma mais generalizada nessas épocas, a orixá não é celebrada só no período que vai de dezembro a fevereiro. Dentro das casas de religiões de matriz africana, Iemanjá segue sendo cultuada ao longo do ano inteiro. Como “a mãe de todas as cabeças”, Eugênio explica que ela é uma divindade fundamental. “Cada vez que a gente faz um rito à cabeça, ao Ori [primeiro orixá que todos possuem], cultuando o princípio de individuação, de consciência, ela é lembrada.”

Para Nara Couto, além do papel de mãe que prepara para a vida, também é importante pensar em Iemanjá pela perspectiva do equilíbrio emocional e psíquico. “Água parada não é boa. Quando deixa que as dores passem por você, te atravessem sem bagunçá-las, isso acaba te tornando mais forte.”

“Quanto nome tem a Rainha do Mar?”, pergunta Maria Bethânia no início da música “Yemanjá Rainha do Mar”, que explora essa pluralidade da orixá e de maneiras de cultuá-la. E logo responde: “Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá…” Na visão de Eugênio, o sincretismo com religiões indígenas, que aproximou a orixá de manifestações como a sereia amazônica Iara, tem sido também um processo de sobrevivência para religiosidades vítimas de opressão no país, que hoje permite que elas se reconstruam e se ressignifiquem.

“Bethânia vai citando nomes africanos e indígenas”, explica Eugênio. “Iemanjá e Janaína são maneiras de olhar para uma mesma divindade a partir do que o povo foi aprendendo e construindo no seu imaginário. Como maiores são os poderes do povo, o que a gente pode fazer?”