Tortura psicológica é entretenimento? A TV e a audiência — Gama Revista
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Reportagem

Eles topam tudo por audiência

Reality shows, tortura psicológica, violência e sexo: as estratégias da TV e do streaming para atrair o público e gerar polêmica nas redes sociais

Leonardo Neiva 04 de Junho de 2023

Eles topam tudo por audiência

Reality shows, tortura psicológica, violência e sexo: as estratégias da TV e do streaming para atrair o público e gerar polêmica nas redes sociais

Leonardo Neiva 04 de Junho de 2023

“Tortura psicológica não é entretenimento.” “Esse programa me dá ansiedade.” “Vou parar de assistir porque ele está ativando vários gatilhos em mim.” Comentários como esses são encontrados aos montes nas redes sociais quando reality shows de grande popularidade estão no ar, a exemplo do Big Brother Brasil ou A Fazenda. Mas será que as situações limite a que os participantes são submetidos e as brigas constantes, incentivadas diariamente em dinâmicas criadas pela produção, estragam o entretenimento? Ou são diretamente responsáveis por atrair o público?

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Se observarmos os números, é seguro dizer que o BBB é a versão do Big Brother de maior sucesso no mundo. Em nenhum outro país a atração se iguala em audiência, votos o programa da Globo contabilizou 1,5 bilhão de votos num único paredão em 2020, cifra inédita para qualquer reality show do mundo — ou relevância cultural. Mas mesmo uma das edições de maior sucesso dos últimos anos, o BBB21 — sim, o da Juliette — veio acompanhado de um coro de reclamações: o programa precisa de mais leveza; os “vilões” pegam pesado demais; a Globo tem que intervir; isso vai acabar mal…

Colocar pessoas comuns em situações limite é a razão de existir de boa parte dos reality shows atuais, explica Bruno Campanella, professor de estudos culturais e mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF). O reality estreante A Grande Conquista, da Record, levou participantes a enfrentar a fome e passar noites ao relento na busca pelo prêmio de R$ 1 milhão — uma cena do ex-BBB Dicésar dormindo do lado de fora da casa chegou a gerar comparações com a situação de moradores de rua. Imagens como a da atriz Bruna Griphao de olhos esbugalhados, passando frio uma prova de resistência, e de participantes inteiramente sujos após uma dinâmica cujo propósito é apontar os defeitos do adversário e despejar gosma e tinta sobre eles, foram alguns dos memes mais compartilhados do último BBB.

Essas características também ajudam a explicar como o gênero vem mantendo seu sucesso e se renovando há mais de duas décadas — quando a audiência começou a decair, por exemplo, o BBB passou a mesclar famosos e anônimos. Alguns desses programas apostam na dureza extrema das situações para construir seu público, a exemplo do No Limite. Em outros, como A Grande Conquista, A Fazenda e o próprio BBB, esses momentos aparecem durante provas, em dinâmicas específicas e nos desafios diários da convivência e do confinamento.

Vejo uma ideologia que valoriza cada vez mais a capacidade de superação do sujeito no mundo

“Alguns autores apontam uma transformação da sociedade, com pessoas dispostas a ver as outras em rituais de sofrimento. Eu não vou por esse caminho. Vejo como resultado de uma ideologia que valoriza cada vez mais a capacidade de superação do sujeito no mundo, algo que tem a ver até com o mercado de trabalho“, explica Campanella, que conduziu uma pesquisa para entender fãs do Big Brother. Para o pesquisador, as situações limite nos dão uma impressão de autenticidade, de que a pessoa só bota para fora quem realmente é quando está sendo constantemente pressionada e confrontada. “É uma crença reproduzida nesses programas. Segundo essa ideia, em momentos como esses, a pessoa não consegue mais se esconder atrás de uma máscara e mostra sua verdadeira face.”

A perspectiva de participantes de realities como heróis capazes de superar os maiores desafios também captura um público que já sofre de baixa autoestima, diz a pesquisadora e professora de psicologia da UFF Claudia Henschel. “Temos propagado hoje uma ideia muito arriscada: a de que vamos resolver todos os nossos problemas individualmente”, afirma. Para a pesquisadora, essa noção é apenas a ponta do iceberg de um pensamento que desvaloriza cada vez mais instituições e governos em prol da iniciativa individual no mundo todo.

Boninho, o ringue e as redes

Na opinião da professora de sociologia da FGV Silvia Rodrigues, a base desses realities se assemelha a uma composição de fim de mundo, em que não há espaço para todos, numa eterna competição. Como a lógica reflete o funcionamento do mercado de trabalho contemporâneo, esses programas talvez não fizessem sentido 40 anos atrás, mas hoje estão 100% conectados ao seu tempo. “Agora não é só meritocracia, se trata de guerra”, diz Rodrigues, que pesquisa ideologias e a indústria cultural.

Se os realities mantêm pessoas em posições estressantes o tempo todo, em maior ou menor nível, ela não descarta o termo tortura para descrever o que se passa em frente às câmeras. “Quando comecei a estudar o BBB, assisti a uma cena do famoso quarto branco [prova em que os participantes precisam resistir por mais tempo num cômodo inteiramente dessa cor]. É tortura por privação de sentidos”, aponta. Segundo a pesquisadora, a desculpa de que os participantes estão ali por livre e espontânea vontade não cola, pois fere o direito essencial à integridade física e psicológica. “Estamos criando um mundo com um tipo de violência relativamente novo baseado numa concorrência brutal em que, se um ganha, necessariamente o outro tem que perder. Por isso vira vida ou morte.”

É verdade que a audiência vem decaindo, especialmente depois que as pessoas deixaram seus confinamentos particulares do período de pandemia, o que pode apontar para um cansaço do formato. Além disso, a TV enfrenta concorrência feroz não apenas dos streamings, mas das redes sociais — que são, paradoxalmente, cada vez mais foco de produtoras e hoje quase tão importantes quanto a audiência em si. “O produto que consegue estimular e ampliar o escopo das conversas nas redes ganha mais visibilidade e é favorecido na hora de atrair anunciantes”, resume Campanella.

As empresas ofereceram o ringue e nós é que produzimos

De acordo com Rodrigues, as redes mudaram a própria essência do que significa produzir e acompanhar um reality. Se antes a transmissão era unilateral, hoje a reação das redes interfere e pode até ditar os rumos do programa. “As empresas oferecem o ringue e nós é que produzimos”, diz a professora. Na visão dela, a dinâmica nos espaços online está tão desenvolvida que já dispensa a figura de um Boninho e seus paredões. No lugar deles, entra o bom e velho cancelamento. “Tomamos a questão nas nossas mãos, numa brincadeira permanente de selecionar e eliminar pessoas e conteúdos.”

Crime real

“Hoje em dia tudo virou série limitada de true crime“, lamenta a repórter Gale Weathers, interpretada por Courteney Cox, em “Pânico 6” (2023) — seria spoiler dar mais detalhes do que isso. E ela não está errada sobre a notável ascensão do gênero, prestes a completar uma década em evidência. De séries documentais como “Making a Murderer” (2015-2018) e a brasileira “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime” (2021) ao popular podcast “O Caso Evandro”, do Projeto Humanos, não tem como negar a influência das produções que revelam detalhes sobre crimes e criminosos reais.

A roteirista e escritora Mabê Bonafé, 33, sempre foi fã de séries de suspense e investigação como “Law & Order” (1990), mas só foi entrar em contato de vez com o gênero ao ler um de seus maiores clássicos: “A Sangue Frio”, de Truman Capote. Ao lado de Carol Moreira, ela está à frente de um dos mais conhecidos podcasts de true crime do país, o “Modus Operandi”, onde aborda do serial killer americano Jeffrey Dahmer a casos nacionais, como os Nardoni e Pedrinho Matador, o mais prolífico assassino brasileiro.

Mas Bonafé não considera o true crime um fenômeno novo. Na verdade, histórias sobre crimes reais existiam há séculos, muito antes do “Linha Direta” (1990) — que, com apresentação de Pedro Bial, vem trazendo de volta à TV casos como as mortes da jovem Eloá e do menino Henry Borel — ou de programas como o Datena, que explora a violência de forma sensacionalista explicitamente para aumentar a audiência. A forma de narrá-las é que vem mudando, diz a roteirista. “Elas ganharam uma roupagem diferente, um nome mais chique em inglês. E, se antigamente era só a violência e o sensacionalismo que chamavam atenção, hoje existem outros formatos.”

Se antigamente era só a violência e o sensacionalismo que chamavam atenção, hoje existem outros formatos

Contar a história da vítima de forma respeitosa e recriar em detalhes o contexto social e político do crime são aspectos obrigatórios de qualquer true crime que se preze. “Uma abordagem mais racional, sensível, preocupada em não romantizar as situações”, complementa Bonafé. Ela conta que, conforme as pessoas se mostraram mais e mais obcecadas com casos como o de Steven Avery — que “Making a Murderer” argumenta ter sido preso injustamente –, as produtoras entenderam que existia um público ávido por histórias como essa, sempre com os dois pés na realidade.

Segundo a roteirista, embora não aconteça com o podcast que apresenta, o gênero costuma receber críticas. Até por isso, uma das regras que ela segue é nunca abordar crimes ou tragédias recentes. “Não tem como falar desses casos sem um distanciamento temporal, que seja anos depois que a coisa aconteceu e que foi feita uma investigação.”

Para Bonafé, trazer à tona alguns desses eventos tem inclusive relevância história e social, como no episódio que fez sobre o “Holocausto Brasileiro” (Geração Editorial, 2013), livro de Daniela Arbex que trata dos abusos ocorridos no maior manicômio do país. “É chocante saber que isso aconteceu no Brasil, e tem gente que não fazia ideia dessa história. Estamos em 2023 e ainda não aprendemos a falar sobre saúde mental.”

Felizes para sempre?

Talvez essa não seja sua praia, mas a Netflix concluiu há pouco a quarta temporada da versão norte-americana do reality show de relacionamento “Love Is Blind” (2020), conhecido no Brasil como “Casamento às Cegas”. A premissa é simples: vários solteiros conversam com possíveis pretendentes para testar sua compatibilidade, sem ver a pessoa que está do outro lado. Depois optam por um deles e, caso o interesse seja recíproco, propõem casamento. A partir daí, eles têm algumas poucas semanas de noivado e convivência para decidir se querem dizer sim ou não ao parceiro no altar.

O formato tem sido tão bem-sucedido que o streaming decidiu lançar seu episódio final numa raríssima transmissão ao vivo — que acabou sofrendo problemas técnicos e atrasando devido à avalanche de usuários conectados no programa. Toda essa demanda se reflete numa série de outros realities do tipo, a exemplo de “O Ultimato” (2022) ou “90 Dias para Casar” (2014) — este último responsável por uma enxurrada de memes nas redes. Recentemente, uma suposta traição envolvendo participantes da versão brasileira do “Casamento às Cegas”, que acabaram no altar, também levantou questionamentos sobre manipulação e a validade das relações que nascem em programas como esse. Afinal, o intuito é mesmo gerar relações duradouras?

Televisivos focados em relacionamentos amorosos estão longe de ser uma novidade. Que o diga o “Namoro na TV” (1979), criado por Silvio Santos lá no final dos anos 1970. Segundo o psiquiatra Rodrigo Martins Leite, o apelo do tema reside no descompasso entre relacionamentos reais e fantasiosos. “Existe em nós a eterna questão: como os relacionamentos podem dar certo? Por se tratar de uma inquietação universal, esses programas prometem — mas raramente entregam — uma análise aprofundada sobre a vida das pessoas.”

Para a pesquisadora Silvia Rodrigues, outro segredo para o sucesso do formato está na inclusão de uma competição a cada passo do reality. Em “Love Is Blind”, a produção investe em situações nas quais os apaixonados disputam um mesmo alvo, comparam entre si a solidez dos relacionamentos e são tentados a trair seus companheiros. “Realities de namoro têm por trás ideias de superação, autorrealização e concorrência. Em alguns programas, essa competição não é dita, mas pressuposta.” No caso, o prêmio final é o casamento e o felizes para sempre, ao menos até as reviravoltas da vida real.

Topa tudo por audiência

Apesar de perder audiência e espaço para outros programas e plataformas, as telenovelas ainda são o principal produto da TV brasileira. Tanto que os streamings Netflix e HBO Max anunciaram suas próprias incursões no gênero, encabeçadas por nomes de peso como Camila Pitanga e Juliana Paes. Segundo a psicóloga Claudia Henschel, essas estrelas de TV hoje vêm dividindo os holofotes na cultura popular, que antes eram só delas, com influenciadores digitais. A exemplo da influencer Jade Picon, que viveu uma mocinha no horário nobre da Globo.

Ao longo das décadas, os autores de telenovelas também foram criando seus próprios mecanismos para alavancar os números de audiência e atrair novos públicos — muitos deles com foco na violência. É onde entram, por exemplo, capítulos evento, anunciados com antecedência, em que a mocinha dá uma surra bem dada na vilã — botando em prática um desejo de boa parte do público — ou mesmo a introdução de mistérios na reta final da produção, à la “quem matou Odete Roitman” em “Vale Tudo” (1988).

Novelas como “Todas as Flores” (2022), “Travessia” (2022) e “Pantanal” (2022) também lançam mão de um recurso antigo para gerar burburinho: incluir cenas explícitas de nudez e sexo entre algumas de suas estrelas. Em meio às discussões sobre objetificação e superexposição de corpos femininos, atores homens passaram a ganhar até mais destaque nessas sequência, como aconteceu em momentos envolvendo Chay Suede e Caio Castro.

Os próprios reality shows não ficam alheios ao assunto. No Brasil, a principal fórmula está conectada a programas como “De Férias com o Ex” (2016) e “Brincando com Fogo” (2021), realities de “pegação” em que as cenas mais quentes são tão ou até mais importantes para o público do que as interações comuns entre os participantes. “A sexualidade é um dos instintos humanos mais essenciais”, explica Leite. “Portanto, sempre será uma fórmula de sucesso. Por serem emoções evolutivamente primitivas , elas não chegam a evocar sistemas cognitivos muito elaborados.”