Cancelar ou ensinar? — Gama Revista

Sociedade

Cancelar ou ensinar?

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No BBB e em casos envolvendo celebridades, as redes sociais é que definem quem cancelar e quem merece ser ensinado; mas é possível estabelecer esse limite?

Leonardo Neiva 03 de Maio de 2021

“A gente está com o cabelo quase igual ao do João.” A fala do cantor sertanejo Rodolffo no Big Brother Brasil 21, comparando o black power do participante João Luiz à peruca desgrenhada de homem das cavernas que usava, como castigo do programa, repercutiu mal dentro e fora das telas. Mais tarde, ao pensar sobre isso, João chorou e disse que não esperava precisar estar na posição de ensinar sobre racismo dentro da casa.

O incômodo surgiu por uma questão ao mesmo tempo antiga e infelizmente atual: o preconceito contra cabelos afro. Pior ainda, a comparação foi com o cabelo de um homem das cavernas, parecendo conceder uma posição inferiorizada a João.

Na sequência, Rodolffo acabou eliminado por votação popular. Mas as opiniões nas redes sociais foram no mínimo divisivas. Houve quem defendesse o cantor e acusasse João de, em vez de tentar conversar com ele sobre o problema, usar da situação para ganho próprio, acabando por eliminar um concorrente. Para muitos, Rodolffo não agiu com maldade e sim por desconhecimento da causa. Para outros, a fama e o dinheiro que tem aqui fora invalidam o argumento de que o cantor não sabia da questão.

Não somos tão racionais como imaginamos ser, e as conquistas civilizatórias acabam se mostrando mais tênues e frágeis do que gostaríamos

Desde o início, o BBB 21 foi uma montanha-russa de cancelamentos e endeusamentos. Se, por um lado, o comportamento de participantes como Karol Conká, Lumena e Projota os levou a receber um ódio enorme aqui fora, falas consideradas bifóbicas e até mesmo racistas — chegando a concordar momentaneamente com a comparação feita por Rodolffo — de Juliette, a queridinha do público, acabaram tendo uma repercussão consideravelmente menor. Nas redes sociais, a opinião corrente é a de que a maquiadora é bem-intencionada, foi infeliz em alguns posicionamentos e precisa apenas aprender mais sobre o assunto.

Mas afinal, o que define quem ou quais comportamentos merecem o cancelamento sumário nas redes e quais devem ter a chance de aprender com seus erros? Existem critérios claros para essas escolhas?

Micropolítica dos afetos

O cancelamento é uma prática que, assim como outros atos comuns em sociedade, acaba ganhando força e sendo largamente amplificado nas redes sociais, explica o psiquiatra Rodrigo Martins Leite, diretor de relações institucionais do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. “Fatores como imediatismo, tribalismo, polarização e a dificuldade de lidar com a pluralidade são características que tornam a prática do cancelamento mais corriqueira”, afirma Leite, que é especialista nos males da sociedade.

Fatores como imediatismo, tribalismo, polarização e a dificuldade de lidar com a pluralidade são características que tornam a prática do cancelamento mais corriqueira

Além de totalitária e avessa ao diálogo, a prática seria também um poço de hipocrisia. Isso porque o cancelamento é determinado por nossas preferências afetivas. Em outras palavras, é mais fácil cancelar alguém de quem não gostamos e muito mais difícil uma pessoa com a qual sentimos algum tipo de identificação. “Somos intrinsecamente injustos”, define o psiquiatra. “Não somos tão racionais como imaginamos ser, e as conquistas civilizatórias acabam se mostrando mais tênues e frágeis do que gostaríamos.”

Por outro lado, o caminho do diálogo e do “aprendizado”, pregado por muitos, pode nem sempre estar disponível. Para Leite, pessoas são movidas por paixões e emoções intensas e raramente estão dispostas a abrir mão de seus pontos de vista. O que, no caso brasileiro, é ainda mais prejudicado pela falta de acesso crônica e o pouco valor geralmente dado à cultura e educação.

Uma andorinha só…

O cancelamento nasce de um sentimento genuíno de indignação com questões como racismo, bullying e exclusão, diz a psicóloga Andrea Jotta. Num ambiente como as redes sociais, é possível dar uma resposta imediata a isso na forma de post. Além disso, fazer parte de um coletivo de pessoas indignadas leva sua voz a reverberar muito mais do que se aquilo saísse só da sua boca, afirma Jotta, que é professora do Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação da PUC-SP.

A diferença entre cancelar e a simples necessidade de aprender, segundo ela, mora na repetição. Ou seja, uma só atitude questionável raramente leva a um cancelamento em grandes proporções. Tanto pelo fator humano, que é o de um fácil esquecimento, quanto o tecnológico, já que os algoritmos não costumam deixar essa informação se alastrar demais numa primeira onda. Porém, quando o comportamento se repete uma e outra vez, a história é outra.

“O Rodolffo mesmo teve outros comportamentos do tipo, foi ensinado, repetiu e várias vezes tentou se justificar jogando a culpa para o outro. É nessa repetição que o algoritmo vai pegando, junta num bolo só, e se cria um rótulo de que a pessoa é daquele jeito”, explica.

Segundo ela, um reality show como o BBB também favorece a criação de narrativas que parecem abraçar a reação do público, ainda mais por meio de uma certa manipulação da emissora. Portanto, se Karol Conká foi rapidamente reconhecida e reforçada como vilã, a participante Juliette virou a mocinha, a ponto de fazer esgotar nas lojas aqui fora os produtos que consome dentro da casa mais vigiada do Brasil.

Nem anjo nem demônio

O caso, no entanto, não é de demonizar a cultura do cancelamento nem cancelar o cancelador, aponta o professor de comportamento do consumidor Fábio Mariano Borges. Primeiro porque “o BBB não caracteriza a cultura do cancelamento”, que geralmente trata de temas sérios e teve uma de suas origens no importante movimento Me Too, contra o abuso e o assédio.

“Uma das principais estratégias do cancelamento é minar os ganhos financeiros de seus alvos”, afirma Borges. “Isso ficou muito patente no caso da Karol Conká. Não foi só deixar de seguir nas redes sociais. Os envolvidos também acessaram páginas de empresas que tinham contrato com ela para questionar se continuariam apoiando. Avon, Skol, a própria Globo, que mantinha um programa com a Conká no GNT… todas essas marcas foram ameaçadas.”

Uma das principais estratégias do cancelamento é minar os ganhos financeiros de seus alvos

Além disso, embora todo julgamento seja enviesado de alguma forma, o cancelamento não leva necessariamente em conta o fato de uma figura ser ou não muito querida. “A Conká perdeu muitos seguidores que eram fãs de carteirinha. Monitorei as redes na época, e muitos ex-frequentadores diziam que nunca mais iriam a um show dela.”

Para o professor, o movimento de cancelamento pode também ser motivado por uma crença incorreta: a de que a punição é capaz de ensinar. “Por isso me recuso a expulsar um aluno da sala de aula. Não funciona” Portanto, da mesma forma, é preciso levar em conta que o cancelamento, a perda de contratos e de dinheiro raramente vão forçar alguém a aprender algo.

Esse tipo de comportamento coletivo, em que as pessoas baseiam suas ideias e autoestima na aprovação de uma massa, dificilmente deve deixar de caracterizar as redes sociais num futuro próximo, diz Jotta. Atitudes consideradas negativas continuarão sendo canceladas, e as positivas, louvadas. O que não dá para prever ou controlar é que comportamentos serão esses, tanto de um lado quanto de outro.

“Vinte anos atrás, o cancelamento da Karol Conká não aconteceria porque não existia todo esse levante contra o bullying. Da mesma forma, se brincava de forma natural com a cor da pele, o cabelo…” Nesse caso, portanto, só o futuro pode revelar o cancelado de amanhã e quem deve ganhar uma nova chance de “aprender”.

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