O que vai no prato das crianças?
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Ilustração de Isabela Durão

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Conversas

Ana Maria Segall: "Nós não zeramos a fome no Brasil"

Médica sanitarista e pesquisadora da Rede Penssan fala sobre como é possível termos, num mesmo contexto, famílias com mães obesas e crianças desnutridas

Isabelle Moreira Lima 28 de Setembro de 2025

Ana Maria Segall: “Nós não zeramos a fome no Brasil”

Isabelle Moreira Lima 28 de Setembro de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Médica sanitarista e pesquisadora da Rede Penssan fala sobre como é possível termos, num mesmo contexto, famílias com mães obesas e crianças desnutridas

Subnutrição e obesidade. Esse paradoxo define a situação de insegurança alimentar que vivem muitas crianças no Brasil. A subnutrição está em bolsões de fome do país e a obesidade se espalha à medida que a alimentação tradicional vai perdendo lugar para os alimentos ultraprocessados. A análise é da médica sanitarista Ana Maria Segall, professora aposentada da Unicamp e pesquisadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), que produz estudos sobre segurança alimentar no Brasil, feita em entrevista a Gama.

“O fato dessas crianças serem obesas não quer dizer que elas estejam em segurança alimentar; pelo contrário, são crianças que têm um padrão alimentar muito deficitário e problemas de nutrição específicos, como anemia, deficiência de vitamina A e de outros micronutrientes”, explica Segall. “Você pode ainda ter, numa mesma família, mães obesas e crianças desnutridas, como acontece em populações muito pobres e sobretudo nessas populações tradicionais, algo que chamamos de ‘dupla carga da desnutrição.”

 Divulgação

A pesquisadora chama atenção para o fato de que, apesar do país ter saído do Mapa da Fome, conforme anunciado pela FAO, o braço da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, isso não significa que não exista fome no país. Apesar de muitas definições biológicas, ela fala sobre o “componente social da fome” e diz que os programas emergenciais são importantes, mas é fundamental ter políticas estruturantes para dar segurança alimentar à população brasileira, um direito de todos os cidadãos, e que requer uma abordagem multisetorial. Ela ressalta a estagnação do salário mínimo por sete anos, um dos motivos que levaram 33 milhões de brasileiros à condição de fome.

“Hoje esse percentual ainda é muito alto, em torno de 4 milhões. Se você somar os 15% de pessoas em situação de insegurança moderada e grave é como fechar a cidade de São Paulo e falar que não entra alimento, que é o que está acontecendo em Gaza”, diz Segall na entrevista abaixo.

Temos que ter uma alimentação sustentável, permanente, de qualidade, e esse é um direito básico de todas as pessoas

  • G |O que é a segurança alimentar exatamente e, no Brasil, há alguma especificidade neste conceito?

    Ana Maria Segall |

    No Brasil, desde 2006, a definição formal da segurança alimentar é o direito de todas as pessoas a terem acesso aos alimentos suficientes e de qualidade por todo o tempo, sem que isso venha competir com outras necessidades básicas das pessoas. Essa alimentação, se apoia em hábitos saudáveis e condições sustentáveis. Temos que ter uma alimentação sustentável, permanente, de qualidade, e esse é um direito básico de todas as pessoas. É uma definição muito abrangente, intersetorial. Requer múltiplos olhares, dada a sua multidimensionalidade.

  • G |Qual o limite entre insegurança alimentar e fome?

    AMS |

    A segurança alimentar tem diferentes graus. Uma família que tem acesso permanente aos alimentos em quantidade e qualidade está numa condição de segurança alimentar. À medida que essa condição começa a ser comprometida, ela vai entrar em graus de insegurança. Quando começa a haver insuficiência de quantidade de alimentos, a moderada, ela afeta primeiro os adultos da família, que começam a diminuir a quantidade de alimentos para sobrar para as crianças. Passa a ser uma insegurança grave quando faltam alimentos inclusive para as crianças.
    Existem definições de fome que são muito biológicas. Quando falta comida, a pessoa não consegue se alimentar, sente fome e o organismo passa a ter déficits nutricionais. Mas essas são muito restritas porque a fome tem um componente social muito forte.

  • G |O Brasil saiu recentemente do mapa da fome. Mas qual é a situação do país, ter saído do mapa da fome não significa que a gente está em segurança alimentar 100%, certo?

    AMS |

    Nós não zeramos a fome no Brasil. Existem vários indicadores que medem a situação de segurança alimentar e fome no mundo. A FAO utiliza dois importantes, e um deles mede a segurança alimentar a partir de vários dados e, ao final de uma conta com uma modelagem estatística muito complexa, chega a um tanto de caloria disponível per capita no país.
    Esse indicador é muito importante porque permite analisar a série histórica da disponibilidade de alimentos de um país, só que ele não mede o acesso efetivo das pessoas. O acesso aponta para outras questões, como renda, eventos climáticos extremos, etc. E aí, a FAO tem um outro indicador que chama FIES, que é o Food Security Experience Scale, que é um derivado da nossa escala de medida de segurança alimentar e que pergunta diretamente às pessoas sobre o acesso que elas têm aos alimentos. Então, quando a FAO disse que o Brasil saiu do mapa da fome, saiu porque a disponibilidade per capita não está em condição de insuficiência calórica. Quando a gente mede a partir das escalas, a gente vai ver que ainda tem um contingente importante da população brasileira em situação de insegurança alimentar e mesmo de fome.

A obesidade aumenta porque há uma transição alimentar no Brasil: estamos largando a alimentação tradicional pelos ultraprocessados

  • G |Pela primeira vez na história, a obesidade superou a desnutrição entre crianças e adolescentes no mundo, segundo a Unicef. Qual desses problemas é maior entre as crianças brasileiras? Como essas duas realidades podem coexistir?

    AMS |

    Não são coisas separadas, antagônicas. A insegurança alimentar convive com a obesidade. Há um percentual grande de obesidade na população mais pobre, onde a insuficiência da alimentação, tanto em termos quantitativos, mas basicamente em termos qualitativos, está afetada. Realmente a desnutrição no Brasil vem diminuindo progressivamente. Temos bolsões de desnutrição que não são pequenos porque a nossa população é muito grande — quando se fala em 2%, são milhões de pessoas. Há algumas crianças negras de periferia, populações indígenas e tradicionais vivendo em situações mais precárias. Por outro lado, a obesidade aumenta porque a gente está vivendo uma transição alimentar muito importante no Brasil: as pessoas estão largando a alimentação tradicional e usando alimentos não saudáveis, os ultraprocessados, que são os industrializados com muitos aditivos e pouco valor nutricional. Começou entre as mulheres adultas, depois os homens, e agora está afetando muitos adolescentes e também as crianças pequenas. E o fato dessas crianças serem obesas não quer dizer que elas estejam em segurança alimentar; pelo contrário, são crianças que têm um padrão alimentar muito deficitário e problemas de nutrição específicos, como anemia, deficiência de vitamina A e de outros micronutrientes. Você pode ainda ter, numa mesma família, mães obesas e crianças desnutridas, como acontece em populações muito pobres e sobretudo nessas populações tradicionais, algo que chamamos de “dupla carga da desnutrição”.

  • G |Um relatório da FAO de 2022 afirma que a dieta saudável mais cara do mundo está na América Latina e no Caribe. Esse é o nosso maior entrave? Quais os outros desafios?

    AMS |

    O preço dos alimentos é um fator muito importante. A primeira coisa que as pessoas retiram da sua alimentação quando falta recurso em casa são as frutas, as verduras e os legumes. São considerados alimentos que podem ser substituídos ou não fazem falta do ponto de vista calórico, de manter a energia para o trabalho e as atividades diárias. Depois disso tiram as carnes, o leite e os derivados, e fica uma alimentação monótona, de muito carboidrato, macarrão e arroz. Até o feijão tem diminuído. As pessoas usam estratégias para se manter de pé e manter as suas atividades diárias, mas isso afeta muito a qualidade da alimentação. O custo de uma alimentação saudável no Brasil é realmente alto. Comprar “porcaritos” para as crianças, basear-se nessa dieta monótona de muito carboidrato, especialmente os processados, como é o macarrão, sai muito mais barato. Os sucos industrializados, que não são sucos, são misturas de ingredientes com quase nada de fruta ou nutriente, a não ser açúcar, são baratos. E, com isso, a saúde das pessoas fica afetada: têm as doenças crônicas, a anemia, outros déficits nutricionais que vão afetar a saúde, o crescimento dessas crianças, o bem-estar, o futuro. Se a gente pensar nos primeiros mil dias, fica muito grave. A segurança alimentar e a saúde das crianças pequenas é muito dependente de aleitamento materno exclusivo pelos primeiros seis meses. E a gente sabe que, no Brasil, a prevalência disso está abaixo de 50%.

  • G |E, além disso, a mãe também precisa ter uma boa nutrição.

    AMS |

    Exato. Os mil dias começam na gestação, porque se a mãe não tem uma alimentação adequada nesse período, a criança já sofre as consequências no útero. Se pensarmos em termos de políticas públicas, temos que pensar desde o início da vida dessas crianças intraútero e com muita prioridade até completar três anos de idade. Para as mães trabalhadoras, a questão da licença maternidade, se fala em alimentar exclusivamente até o sexto mês, mas a licença maternidade é de quatro meses — à exceção de alguns serviços públicos.

O que falta são mais políticas públicas que sejam estruturantes

  • G |Que estratégias o país adota e ainda precisa adotar para enfrentar a insegurança alimentar na infância?

    AMS |

    Para promover e proteger o aleitamento materno, temos políticas muito importantes, somos referência, mas não conseguimos avançar para garantir durante os dois anos de vida. O exclusivo não consegue passar dos quatro meses. A licença maternidade é importante, só que nós temos um contingente muito grande de mulheres no trabalho informal, sem a proteção dos quatro meses de licença. São diaristas, comerciantes de pequenos negócios nas ruas. Além disso, temos políticas de promoção e de financiamento da agricultura familiar e a de alimentação escolar, em que 30% dos alimentos vêm da agricultura familiar mantendo hábitos alimentares da região. Tem também as políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada, que dão uma segurança para as famílias mais pobres do Brasil. Há alguns problemas quando se fala em populações tradicionais, na população indígena, como o deslocamento para receber os recursos: as pessoas já gastam um percentual desse recurso só no transporte, porque não há Caixa Econômica em todos os locais do Brasil. As políticas, em geral, são muito importantes, mas precisam sofrer adaptações para atender as necessidades específicas de segmentos da população de maior vulnerabilidade.

  • G |E, de uma forma geral, tudo parece ter a ver com a renda.

    AMS |

    Sim, talvez a política mais importante seja a garantia de reposição do salário mínimo acima da inflação, uma vez que a renda ainda é o maior obstáculo para as famílias. Nós passamos sete anos sem reajuste acima da inflação do salário mínimo e isso teve um impacto que chegou naquele contingente absurdo de 33 milhões de pessoas em situação de fome. Hoje esse percentual ainda é muito alto, em torno de 4 milhões. Se você somar os 15% de pessoas em situação de insegurança moderada e grave é como fechar a cidade de São Paulo e falar que não entra alimento, que é o que está acontecendo em Gaza. A gente tem o Guia Alimentar Brasil, que é uma referência muito importante para as políticas públicas, mas não adianta você convencer a pessoa que ela precisa comer, ter um prato colorido, se essas pessoas não podem comprar. Nós temos instrumentos muito importantes para combater a insegurança alimentar e a fome no Brasil, mas todos precisam de aprimoramento para chegar à população vulnerabilizada.

  • G |Tem a ver com as nossas desigualdades também.

    AMS |

    Exatamente. Enquanto a gente viver essa mazela, não se resolve. O problema tem características estruturais. Você trabalha com políticas públicas, questões emergenciais e questões conjunturais. É necessário ter assistência para os segmentos de maior vulnerabilidade. Mas o que falta são mais políticas públicas que sejam estruturantes.

  • G |Um estudo recente da Unicef sobre nutrição infantil destacou o Brasil como referência mundial pela adoção das diretrizes do Programa Nacional de Alimentação Escolar na rede pública. Ao mesmo tempo, cantinas de escolas privadas vendem ultraprocessados. Poderia comentar?

    AMS |

    Você pode identificar uma família em segurança alimentar porque ela diz que tem acesso aos alimentos de quantidade e qualidade suficientes. Mas as crianças estão anêmicas, estão obesas, com vários problemas. Doenças crônicas como hipertensão e hipercolesterolemia estão afetando crianças em idades cada vez mais precoces e os adolescentes sobretudo. Se formos a fundo, essas crianças não estão em situação de segurança alimentar porque elas estão se alimentando de forma inadequada, que vai comprometer sua saúde. Algumas cidades já têm leis que controlam a questão da alimentação escolar, inclusive nas escolas privadas. Mas eu acho que vale uma conscientização do setor, que visa muito o lucro.

  • G |Algum país tem uma experiência que pode ser inspiradora pro Brasil?

    AMS |

    Há aqueles que se aproximam mais de uma situação adequada, como os países nórdicos. Mas a busca pela segurança alimentar é uma questão planetária, assim como é o clima. Os hábitos alimentares tradicionais estão perdendo espaço.

logo infinis

Este conteúdo integra uma série especial sobre segurança alimentar de crianças e adolescentes no Brasil, produzida com apoio do Infinis – Instituto Futuro é Infância Saudável. O Infinis é a frente de filantropia e advocacy da Fundação José Luiz Setúbal, e atua em defesa da saúde pública voltada a crianças e adolescentes, além de contribuir para o fortalecimento do terceiro setor e para o desenvolvimento da filantropia no país.

Um assunto a cada sete dias