O futuro é chinês?
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Depoimento

Como é a vida na China?

Brasileiros e brasileiras que moram ou já viveram no país asiático falam sobre o cotidiano chinês e como foram impactados pela cultura e tecnologia

Ana Elisa Faria 03 de Agosto de 2025

Como é a vida na China?

Ana Elisa Faria 03 de Agosto de 2025

Brasileiros e brasileiras que moram ou já viveram no país asiático falam sobre o cotidiano chinês e como foram impactados pela cultura e tecnologia

Viver na China é uma experiência no mínimo desconcertante, segundo relatos de brasileiros ouvidos pela Gama. Surpresa, choque e deslumbramento são sensações descritas por quem cruzou o mundo e esteve no gigante asiático para trabalhar ou estudar.

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As ruas das grandes cidades são seguras, os serviços funcionam com extrema eficiência e a rotina é organizada por superaplicativos.

Essa vida ultramoderna, que parece uma viagem ao futuro, ocorre sob forte controle, num regime de partido único, acusado de violar a liberdade de expressão e os direitos de adversários políticos e minorias étnicas.

Nos relatos reunidos, a convivência com esse paradoxo é constante. Enquanto o cotidiano urbano é moldado por tecnologias avançadas e práticas coletivas que promovem um senso de comunidade, como os exercícios em grupo nas praças, há também o cuidado com o que se diz em público, especialmente sobre o governo.

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“Dentro das universidades há uma ampla liberdade de discussão de ideias. Claro, criticar o Partido Comunista vai ter um custo, mas o ambiente intelectual para a difusão de pensamentos é impressionante”, afirma Elias Jabbour, professor e pesquisador.

Outro ponto frequente nos depoimentos é o acolhimento por parte dos chineses. Apesar da barreira linguística, muitos relatam o esforço local em compreender quem vem de fora. Essa abertura, somada à qualidade da infraestrutura e à sensação de segurança faz com que a vida no país asiático seja lembrada como transformadora, ainda que desafiadora.

Abaixo, apresentamos relatos de pessoas que vivem na China atualmente ou que passaram temporadas por lá, em cidades e épocas diferentes. Essas vozes nos ajudam a conhecer um pouco melhor um país enorme e complexo, de tradições milenares, uma potência global que fascina e assombra o Ocidente.


“Uma pessoa consegue fazer tudo o que precisa no país com apenas dois aplicativos: o Alipay e o WeChat”
Stefany Maran, estudante

 Arquivo pessoal

“Morar na China é uma aventura. O choque cultural e a barreira do idioma fazem a vida parecer um desafio no começo, mas, com o tempo, simples coisas do dia a dia, como pedir uma comida em um restaurante, tornam-se conquistas a serem comemoradas. O primeiro grande impacto que tive ao chegar aqui foi em relação à segurança. Dos 30 países que já visitei, a China é o mais seguro deles. Você pode ficar relaxada e não se preocupar tanto com os seus pertences, sabendo que ninguém vai furtá-los e, caso aconteça, a punição será severa. Andar à noite é seguro, até para as mulheres. Mesmo em uma viela ou numa rua pouco iluminada, é possível andar sem sentir medo. A tecnologia também é algo chocante. Basicamente, uma pessoa consegue fazer tudo o que precisa no país com apenas dois aplicativos: o Alipay e o WeChat. Desde fazer compras no supermercado ou pegar um táxi até ter acesso a um plano de saúde.” Stefany Maran vive em Nanjing há um ano e meio e, além de estudar mandarim, compartilha sobre o seu cotidiano na China no Instagram.


“Você se sente muito seguro, não há ameaça. É possível andar livremente”
Thiago Cheng
, professor de mandarim

 Arquivo pessoal

“Meu pai é de Taiwan e a maioria da minha família é chinesa, por isso, sempre tive uma relação com o país, mesmo antes de morar lá, em 2008. O maior impacto cultural que tive foi com a segurança. Você se sente muito seguro, não há ameaça. É possível andar livremente, sabendo que ninguém vai pegar seu celular ou colocar a mão no seu bolso. Viajei bastante pela China e nunca me senti em estado de insegurança, de medo. Outra coisa é a receptividade que os chineses têm com os estrangeiros. Apesar da barreira linguística ser grande até hoje — poucas pessoas falam inglês fora das áreas mais turísticas —, eles tentam entender, ajudar, fazem mímica. Falo mandarim, mas a minha esposa e os meus sogros, não, e, mesmo assim, quando estivemos lá recentemente, eles foram bem-recebidos, os chineses tentavam ajudá-los. Eles estão sempre abertos a compreender quem vem de fora. Em relação aos impactos tecnológicos, as coisas mudaram muito de 2008 para 2025. Hoje, praticamente tudo é feito pelo celular. Tudo, tudo, tudo. É surpreendente. A dependência do smartphone é gigantesca, tanto que há muitos pontos para carregar o celular pelas cidades.” Thiago Cheng morou em Pequim durante o ano de 2008 e acaba de voltar de uma nova viagem pelo país com a família. Ele leciona na escola Irmãos Mandarim.


Um impacto cultural marcante foi ver como as pessoas cultivam hábitos coletivos, como se exercitar em grupo nas praças”
Natália Rocha
, criadora de conteúdo

 Arquivo pessoal

“A vida na China é intensa, segura e altamente tecnológica. Tudo funciona com eficiência: transporte, saúde, trens-bala e entregas rápidas. Os super apps WeChat e Alipay permitem resolver tudo na palma da mão. Um impacto cultural marcante foi ver como as pessoas cultivam hábitos coletivos, como se exercitar em grupo nas praças. O contraste entre inovação e tradição está presente em cada detalhe do cotidiano. Todos deveriam conhecer a China pelo menos uma vez na vida.” Natália Rocha morou na cidade de Tianjin de 2022 a 2024.


A revolução na mobilidade urbana permite que um trabalhador leve no máximo uma hora de casa ao trabalho”
Elias Jabbour
, professor

 Arquivo pessoal

“Visito a China há 20 anos. Em 2004 e 2009, passei cerca de cinco meses no país fazendo pesquisas para o meu doutorado, viajando como mochileiro, em trens de baixa velocidade. Entre 2023 e 2024, voltei como consultor sênior do banco dos Brics [Novo Banco de Desenvolvimento] e refiz aquele trajeto, agora em trens de alta velocidade. O impacto é imenso. Antes, uma viagem de Xangai a Pequim levava 14 horas; agora, quatro. Trechos que duravam até 40 horas hoje são feitos em no máximo oito. Essa mobilidade reduz custos, melhora a vida da população e conecta mercados regionais. Metrôs de Xangai e Pequim disputam qual tem mais linhas no mundo — e cobrem toda a cidade. A revolução na mobilidade urbana permite que um trabalhador leve no máximo uma hora de casa ao trabalho. O 5G funciona em todo o território, de Xinjiang ao Tibete, com internet super rápida. Outro contraste em relação a metrópoles ocidentais é a ausência de usuários de drogas nas ruas, de locais como a cracolândia e de pessoas em situação de rua. A polícia anda desarmada e você pode sair a qualquer hora com o celular na mão que nada acontece. Isso se deve a um planejamento urbano eficaz. As periferias são muito diferentes das brasileiras. Quem não está na cidade vive num pedaço de terra no campo garantido pelo Estado. E, ao contrário do que se imagina, dentro das universidades há uma ampla liberdade de discussão de ideias. Claro, criticar o Partido Comunista vai ter um custo, mas o ambiente intelectual para a difusão de pensamentos é impressionante.” Elias Jabbour é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coautor do livro “China: o Socialismo do Século XXI” (Boitempo, 2021).


“Os chineses são humildes, acham que têm muito a aprender com a gente, mas penso que é o contrário”
Gabriela Portes, empresária

 Arquivo pessoal

“O primeiro impacto cultural que tive foi sacar meu salário no banco e receber blocos de notas de 100 yuan em uma sacola transparente com a inscrição Bank of China. Eu saía exposta, mas não havia perigo algum — achava engraçado. Hoje, 12 anos depois, já fazemos pagamentos com reconhecimento da palma da mão. O Brasil tem o Pix, que é ótimo, mas na China essa realidade é antiga. Dois anos após a minha chegada, começamos a usar o WeChat, que é como o WhatsApp, mas com mais funções: dá para pagar contas, dividir despesas no restaurante com amigos, por exemplo, transferir dinheiro com um clique. A China também acolhe bem os estrangeiros. Os chineses são humildes, acham que têm muito a aprender com a gente, mas penso que é o contrário. A qualidade de vida é excepcional, com segurança, parques, muitas áreas verdes, sem contar a infraestrutura e os meios de transporte. A saúde também funciona bem. Temos um sistema que, embora seja pago, é barato, bom e tecnologicamente avançado.Gabriela Portes, que está na China desde 2013, vive em Shenzhen. É diretora da Loen Impex, empresa de comércio exterior.


“Há tanta gente nas ruas que ninguém liga para o que você faz ou como se veste”
Gabriel Valdetaro
, estudante e influenciador digital

 Arquivo pessoal

“Pequim tem um pouco de tudo da China: é uma cidade milenar, cheia de cultura e história, mas também é moderna, com grandes prédios, um centro financeiro importante e uma enorme comunidade internacional. Um impacto imenso que tive ao chegar aqui foi em relação à segurança — você simplesmente esquece que o risco de assalto existe. O transporte público é extremamente eficiente, com redes de metrô extensas e serviço barato, custando entre 3 e 5 yuan [em torno de R$ 2,33 e R$ 3,89]. Ônibus custam 1 ou 2 yuan. Há ciclovias por toda parte, para bicicletas e motos elétricas. O trânsito pode ser caótico, mas a gente se adapta. A internet é ótima e acessível, o 5G funciona em praticamente todo lugar — pago 401 yuan por ano num plano estudantil, o que dá por volta de R$ 300 e pouco. Como já conhecia a cultura chinesa, não tive um grande choque inicial, mas precisei me adaptar a diferenças: aqui, estudantes não questionam tanto os professores, vistos como figuras sábias; a pontualidade também é levada a sério. Outra coisa positiva é a liberdade. Há tanta gente nas ruas, com estilos variados e diversos comportamentos, que ninguém liga para o que você faz ou como se veste. Os chineses são mais curiosos que julgadores.Gabriel Valdetaro vive em Pequim há dois anos e quatro meses, onde faz doutorado em ciência política na Tsinghua University. No perfil @vimprachina, compartilha vídeos sobre a vida na China.


Nos impressionamos com a limpeza e a organização, mesmo quando desorganizada‘”
Marcus Pires, professor de inglês

 Arquivo pessoal

“A Rebeca, minha esposa (na época, namorada), recebeu uma proposta para trabalhar na China. Nos casamos e imigramos. Fomos para Xangai que, como dizem, ‘não é China’. É uma cidade internacional, cheia de arranha-céus e adaptada para receber expatriados. Assim que chegamos, nos impressionamos com a limpeza e a organização, mesmo quando ‘desorganizada’. A segurança foi algo que nos chamou a atenção de imediato. Havia muitas bicicletas destrancadas e crianças brincando nas calçadas, até nos centros comerciais mais movimentados. Entre 2011 e 2012, começamos a reparar nas pessoas gravando mensagens de áudio no celular. Na época, era algo bem diferente. Eles também já tinham apps para táxi. Outra inovação que vimos primeiro por lá foi o e-commerce: uma plataforma local chamada TaoBao vendia de tudo e entregava em 24 horas! Naquela época, isso era algo inimaginável. Culturalmente, nos chamou a atenção a falta de necessidade de formalidade entre os chineses. O próprio idioma já é bem direto, mas depois aprendi que, como praticamente todos eles são descendentes da etnia han, não havia a necessidade de ser formal. E, claro, a ausência de contato físico, como abraços e apertos de mão, era marcante.Marcus Pires morou em Xangai de 2010 a 2015.


“Meu trabalho é trazer brasileiros para entender o ecossistema digital chinês e inspirar essa transformação no Brasil”
Vinicius Oliveira
, empreendedor

 Arquivo pessoal

“Cheguei na China em 2013 pelo programa Ciência sem Fronteiras. A infraestrutura aqui já era mais avançada em relação ao Brasil, mas o dia a dia ainda não parecia tão diferente. Quase tudo era pago em dinheiro, e comprar online era complicado. Tudo mudou em 2015, quando o WeChat distribuiu, via celular, US$ 80 milhões em uma única noite por meio de sorteios e interações no app. Mais do que uma jogada de marketing, a ação convenceu milhões de chineses de que pagamentos digitais eram possíveis, seguros e até divertidos. Foi a faísca da revolução dos pagamentos na China. Em semanas, até a senhora que vendia arroz frito por 5 yuans (cerca de R$ 2 na época) já aceitava pagamento por QR code. Hoje, pedir online e receber em 30 minutos é o padrão. O celular virou carteira, shopping, restaurante, banco e balcão de atendimento. Esse avanço me fascina. Por isso, meu trabalho atual é trazer brasileiros para entender o ecossistema digital chinês e inspirar essa transformação no Brasil. Na última vez em que estive no Brasil, minha noiva, chinesa, estranhou o fato de ainda existir fila no supermercado, delivery que demora horas, garçons que precisam ser chamados para pedir a conta… coisas que, na China, já parecem pertencer a outra era.Vinicius Oliveira é head da StartSe na China, empresa que conecta executivos brasileiros ao ecossistema de inovação chinês. Vive em Pequim e está na China há 12 anos.

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