Contar histórias é bom para a memória?
Usadas para desabrochar a imaginação em crianças, contar e ouvir histórias também estimula o cérebro de idosos, retardando doenças como Alzheimer
Numa voz enfraquecida pela idade mas calejada por décadas de contação de histórias, Maria Ignez, 84, relembra que começou pequena com “essa mania de inventar coisas”. Rodeada de irmãos homens, no início precisou imaginar até mesmo uma melhor amiga para si. “Eu ficava muito sozinha. Por isso criei uma menina que só eu via no espelho. E eu brincava com ela.” Além de vir de uma família de ávidos leitores, Ignez foi influenciada muito cedo por duas babás que adoravam lhe contar causos.
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Quem apresenta Ignez à reportagem é sua neta, Clarice Rios, 33, que é roteirista. A vivência quando criança na casa da avó contadora de histórias inspirou a carioca a criar o argumento de uma série em que uma menina curiosa tem seu faro de jornalista despertado justamente pelas conversas com a matriarca da família.
“Quando eu e meus primos íamos à casa da minha avó em Nova Friburgo, a primeira coisa que a gente fazia era pedir para ela contar uma história”, relembra. “Nos fundos, tinha um terreno com uma pequena floresta de pinheiros. Lembro que ela dizia que duendes moravam ali. Todo dia de tarde, a gente dava café e bolo para os duendes comerem e eles devolviam em bala. Até hoje a gente fala deles, o Salazar, a Violeta e a Margarida.”
Se você ouve essas coisas quando criança, acaba levando para a vida inteira, diz Ignez. “Eu estou com 84 anos e várias coisas boas e ruins sobre mim hoje eu aprendi na infância.” Ela não é contra boa parte das histórias hoje virem enlatadas em telas de TV ou celular, mas considera que algo se perde pelo caminho. “Quando você conta uma história, a criança é quem vai dizer se a personagem é loira, ruiva, gorda, magra… Ela se descreve na heroína ou na bruxa e a imaginação vai fluindo.”
Do outro lado da linha, Ignez soa como uma das principais contadoras de história da nossa literatura: a velha Totonha, que de vez em quando aparecia na casa do “Menino de Engenho”. “Que talento ela possuía para contar as suas histórias, com um jeito admirável de falar em nome de todos os personagens”, descreve José Lins do Rego.
Assim como Totonha, que pintava um reino como um engenho fabuloso e o Barba-Azul feito um poderoso senhor de engenho, Maria Ignez sabe que a história precisa ganhar cores regionais que tenham a ver com o dia a dia das crianças, para encantá-las. “A fada da Cinderela vira um peixe numa vila de pescadores, uma vaca numa fazenda. De acordo com o lugar, a história vai sendo contada de uma determinada maneira.”
Boa parte das histórias que Ignez ouviu das babás foi parar nos livros de contos infantis que escreveu quando adulta. Todos, é claro, repletos de histórias que vão do folclore nacional a contos com reinos e princesas. Formada em fonoaudiologia, ela integrou por anos o grupo carioca de contadoras de histórias Confabulando. Mas seu público mais fiel estava em casa.
Até antes da pandemia, Ignez dedicava uma noite da semana para receber os oito netos na sua casa, em geral às quartas-feiras. “Ela fazia o prato de que cada um mais gostava. Era uma forma de estarmos juntos”, lembra Dias. Quando conversei com avó e neta, em junho de 2022, a pandemia ainda assustava, mas o contato com a família estava voltando aos poucos.
Dos oito netos, as histórias de Ignez influenciaram as trajetórias de pelo menos duas delas. Além da roteirista Clarice Rios, a atriz Alice Wegmann, de novelas como “Órfãos da Terra” e “Onde Nascem os Fortes”, sempre que pode revela a inspiração que teve na avó, das leituras que compartilha com seus seguidores até a vontade que mantém de escrever um livro. “É legal pensar o quanto minha avó tem esse poder e o quanto ela trouxe para nós. É um trunfo enorme desse universo que ela criou ao nosso redor”, afirma Rios.
Arte Maria Luiza Bastos-Tigre @malu.tigre
Aulas de memória
Além das reuniões com os netos, a pandemia interrompeu os encontros que Ignez fazia toda semana com suas alunas. Mas, em vez de crianças ávidas por escutar contos de fadas, ela montou uma turma com cerca de 40 mulheres idosas, com a intenção de exercitar a memória delas.
Quem dá mais detalhes é a neta, que frequentou as aulas durante um tempo. De acordo com ela, a coisa começava sempre com um aquecimento. “Exercícios de alongamento da língua e do corpo, de coordenação motora. A aula é de memória, mas várias coisas ajudam pessoas mais velhas.” Para cada turma, Ignez inventava novos exercícios. “Se via uma obra de arte que adorava, ela imprimia e levava. Aí a pessoa tinha que olhar a figura por alguns minutos e dizer tudo de que se lembrava.”
O principal ganho, porém, estava em outra parte, diz Rios. “A maioria delas tinha perdido o marido ou grande parte das conhecidas, então era uma oportunidade de fazerem novas amigas depois dos 80 anos. Era quase uma terapia grupal, porque elas falavam das suas questões pessoais e contavam tudo que estavam vivendo.” Segundo Ignez, o melhor momento geralmente vinha na hora do lanche pós-aula, quando todas sentavam para conversar. “Elas gostavam desse convívio com gente que fala a mesma língua e recebeu a mesma educação. Porque muita coisa mudou da nossa época para cá”, conta Ignez.
O neurologista Diogo Haddad, coordenador do Núcleo de Memória do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, diz que contar uma história, seja real ou fictícia, ajuda a gerar reserva cognitiva, recurso acumulado pelo cérebro ao longo da vida e que impede ou retarda doenças como o Alzheimer. “No idoso, essas coisas fazem parte do estímulo. Se quero que ele fique ativo, o simples fato de ouvir ou contar histórias já é algo extremamente positivo”, aponta Haddad.
Pelo que diz o neurologista, é um erro deixar de incluir o avô em conversas e atividades do dia a dia, por acharmos que ele não entende ou não demonstra interesse em participar. “O idoso já tem deficit de linguagem, memória e atenção. Se você larga ele parado ou isolado, vai ficar assim o dia inteiro. Cabe a quem está do lado estimular que ele participe ativamente das coisas”, afirma Haddad. Portanto, conversar, contar o que está acontecendo no mundo e fazer perguntas sobre sua percepção ao longo do dia são formas importantes de estimular o idoso e criar novas conexões cerebrais, podendo reduzir o avanço da doença.
“Sinto muita falta das aulas porque via a possibilidade de conversar. Agora fico sem ter o que fazer”, conta Ignez. “Ainda mantenho contato com as alunas por Whatsapp ou telefone. Algumas morreram de covid, então dispersou bastante. O jeito é se reinventar.”
Resgatando histórias
Foram as histórias da tia Maurícia, que ouvia numa escuridão sem luz elétrica, que fizeram o educador e jornalista indígena Maickson Serrão ter a ideia para o podcast “Pavulagem”, lançado por meio do programa Sound Up, do Spotify. Com a intenção de reencontrar seres que o faziam tremer de medo nas noites na infância, como o Taú, pássaro que come gente, a Ingerada, mulher que vira onça, e o Patauí, andarilho das noites, ele retornou à Vila de Boim, que fica a dez horas de barco de Santarém (PA), onde nasceu e cresceu, para gravar as histórias na voz dos contadores da região.
“Essa geração vem quebrando o hábito dos nossos pais, que ouviam muito mais nossos avós nessas noites de contação de histórias. Hoje na vila onde cresci muita gente tem TV, celular, outras formas de entretenimento”, conta o jornalista. Não que não existam jovens contadores de histórias, “mas é muito mais difícil encontrar”, ele diz. “Das entrevistas que fiz, a pessoa mais nova tinha 39 anos. Os outros estavam todos acima de 50””
Além de apresentar muitos desses seres míticos a uma geração de crianças que nunca ouviu falar deles, Serrão quer usar o programa para registrar uma rica gama de conhecimentos que ainda depende da transmissão oral para sobreviver. “Esses contadores são uma biblioteca viva, ambulante, mas que infelizmente também sofrem perda de memória ou acabam morrendo. Neles estão registrados os conhecimentos de gerações de comunidades ribeirinhas e indígenas da Amazônia.”
A psicóloga Carla Guth diz que contar histórias pode ajudar crianças no desenvolvimento de habilidades como linguagem, imaginação, compreensão emocional, concentração e até consciência cultural, levando-as a compreender outras culturas e a ter uma consciência mais ampla do mundo. “Essas habilidades são importantes para o desenvolvimento cognitivo e social das crianças.”
A necessidade de contar novas histórias para o enteado antes de dormir levou o dramaturgo Lucas Moura e a esposa Estela a idealizar um podcast recheado de contos infantis. Mas “Calunguinha – O Contador de Histórias” também vai além de João e Maria. Em vez de se ater a histórias tradicionais, o casal optou por se aprofundar nos relatos de personagens negros menos conhecidos, reais ou fictícios, como Xica Manicongo, considerada a primeira travesti brasileira, e a lenda da princesa moura Teiniaguá.
“Eu e a Estela somos pessoas pretas filhas de nordestinos. Existe uma prática muito grande de contação de histórias na minha família, mas contação de causos, crônicas mesmo”, lembra Moura. “A gente tem uma vivência de contação de histórias, mas não é Chapeuzinho Vermelho ou os três porquinhos, e sim coisas que tinham a ver com pessoas que a gente conhecia.”
“Calunguinha”, que também foi selecionado pelo Sound Up, busca uma forte conexão com o cotidiano da criança. O podcast é baseado em acontecimentos do dia a dia do jovem personagem, como o bullying que sofre por conta de seu cabelo ou a doença da avó, através dos quais a mãe de Calunguinha vai recontando histórias importantes do povo preto. Cada episódio é narrado por um convidado especial, o que inclui Lázaro Ramos, Margareth Menezes e Luedji Luna. “Todas essas histórias passam por nós de alguma maneira. Sobre a Luisa Mahin [quituteira que teria participado dos levantes de escravos na Bahia do século 19], nossa comida tem muita influência dos povos em que ela estava inserida. Então, com brasileiros, essas histórias nos atingem mas não recebem nome. Para nós, dar nomes a essas pessoas é importante.”
Arte Maria Luiza Bastos-Tigre @malu.tigre
Histórias de vida
Se, num primeiro momento, o impacto é apenas lúdico, ouvir histórias também permite à criança desenvolver mecanismos para que uma lição ou atividade se torne mais interessante, afirma o neurologista Diogo Haddad. “Mais tarde, ela vai conseguir usar essa imaginação para aprender coisas formais, sair de situações adversas e até desenvolver habilidades no trabalho.”
Oito meses após a entrevista original, com a pandemia mais controlada, Ignez diz que ainda não pôde retomar as aulas de memória. Principalmente por conta do marido, que está doente e requer cuidados constantes. Já as visitas dos netos e bisnetos, com os quais mantém uma relação próxima, têm acontecido com frequência. Só que os jantares, em vez de semanais, passaram a ser mensais. “A coisa de toda quarta-feira infelizmente acabou. A família ficou muito grande”, conta Ignez. “A convivência é uma coisa muito boa. Ficamos mais amigos, um se interessa pelo outro. É uma pena que a pandemia tenha partido isso.”
Mesmo com o período de distanciamento, a neta Clarice Rios ainda leva fresca na cabeça uma pequena anedota sobre a primeira vez em que Ignez foi visitar a cidade de Ouro Preto, aos 15 anos de idade. “Como a nossa tataravó era de lá, ela jura que conhecia as ruas da cidade mesmo sem nunca ter ido”, conta. Para Rios, é um exemplo de como a avó vivencia na pele as histórias que conta.
Ignez confirma a lembrança. “Realmente fiquei muito aflita porque conhecia tudo sem nunca ter estado lá. Sabia que, quando fosse virar uma esquina, ia encontrar um chafariz. Numa farmácia, perguntei ao atendente se ali já tinha sido a casa de um médico e ele confirmou”, relembra. “História de vida cada criança faz a sua. Sei disso muito bem porque das coisas que aconteceram quando era menina, até hoje eu lembro.”
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